Capítulo 63 - Dignidade a 30 reais o quilo
A vida de Quintus já estava de cabeça para baixo, e agora seria televisionada em horário nobre, com comentários clínicos, plateia imaginária e um especialista de jaleco pronto para transformar seu colapso emocional em entretenimento.
Se alguém ainda achava que a insanidade tinha um limite, era porque nunca tinha visto diagnósticos ao vivo baseados em três olhadas e uma prancheta tremendo de empolgação.
— Boa noite, telespectadores! — vociferou Dr. Zaratustra, ajeitando os óculos com o charme presunçoso de um guru de auditório, mirando a câmera que dividia a tela com Lxpe, com o ar solene de quem apresenta uma coletânea definitiva de surtos emocionais não autorizados.
— Como o maior especialista em comportamento humano do Brasil — prosseguiu — E autor dos únicos artigos relevantes da psicologia brasileira moderna, talvez o único que realmente está fazendo algo útil, irei fornecer diagnósticos instantâneos e científicos de nossos participantes involuntários!
— Começando pelo Senhor Nyck! — Dr. Zaratustra apontou para ele na tela — Observo um claro caso de ‘Transtorno Obsessivo por Triangulação Amorosa’, caracterizado pela necessidade compulsiva de abraçar objetos de interesse romântico até que aceitem terapia familiar conjunta.
— É VERDADE! — exclamou o pegajoso ciumento com brilho nos olhos, encarando a câmera feito um fã que acaba de ser notado por seu ídolo — E é exatamente isso, Doutor! O senhor é um gênio! — completou, mantendo o aperto em Quintus, num gesto que misturava afeto e carência, tal qual se ele fosse um travesseiro terapêutico humano.
— Prosseguindo para o Senhor Vento Leste — declarou Dr. Zaratustra, folheando sua prancheta com solenidade — Temos um caso avançado de ‘Síndrome do Impostor Felino Mascarado’, também conhecido por aquele transtorno de Therian em que o indivíduo acredita ser um mestre felino preso em corpo humano e numa coleira… sem pedigree.
— PIKA! — gritou Vento Leste — Não é síndrome, é evolução! PIKA CIENTÍFICA!
— Quanto à Professora Nimsay — disse Dr. Zaratustra, com ar de quem lia os manuscritos do Freud — diagnóstico de ‘Complexo de Édipo Didático’, uma rara condição em que a professora deseja ser simultaneamente mãe, psicóloga e crush do aluno… tudo durante uma aula de reforço.
— EU SÓ QUERO AJUDAR PEDAGOGICAMENTE! — defendeu-se a professora, engolindo o suco com tanta pressa que parecia tentar apagar um incêndio na garganta.
— E finalmente, o elemento catalisador de 92% dessa insanidade… Quintus — anunciou Dr. Zaratustra com um brilho de crueldade científica nos olhos — Diagnóstico: ‘Síndrome do Protagonista Involuntário com Tendências Galináceas Dramáticas.’ Um distúrbio raro, onde o indivíduo reage ao menor sinal de estresse com gritos agudos e desespero digno de uma ave doméstica sendo arrastada para o abatedouro emocional.
— GALINÁCEAS?! — gritou o jovem Maximus, numa explosão tão estridente que fez duas pessoas olharem para o teto instintivamente — EU NÃO SOU UMA GALINHA, SEU MALUCO DE JALÉCO!
— A negação explosiva só reforça o quadro clínico! — declarou Zaratustra, anotando na prancheta com um brilho de triunfo nos olhos.
— Obrigado, Dr. Zaratustra! — disse Lxpe com a empolgação de um apresentador de programa dominical — Nada como uma avaliação psicológica ao vivo pra dar aquele toque de credibilidade à insanidade!
Foi quando as portas do cassino se abriram e uma multidão entrou carregando faixas, cartazes e buzinas.
Quintus reconheceu seus pais, sua irmã, tios, primos e aparentemente metade do bairro onde morava. Todos sorrindo e acenando como se aquilo fosse uma formatura e não um colapso.
Até o Seu Nivaldo da padaria estava lá, vendendo pão francês a 30 reais o quilo, com uma camiseta escrito ‘Reality paga mais que dignidade’.
Era oficial: por dois boletos pagos e um pão com mortandela, todos estavam dispostos a vender o corpo, o voto e até a fé no Tiririca enquanto poeta.
Foi quando algo destoou daquela euforia comprada, uma presença firme, quase deslocada no meio do circo. Uma mulher loira de óculos escuros, segurando uma faixa escrita com letras garrafais: “NYCK, EU TE AMO, MAS VOCÊ ESTÁ DOENTE!”
A seriedade daquela frase atingiu Quintus com o efeito súbito de um corte de energia em plena comemoração. Claro, só podia ser Eloísa, a namorada do ciumento inseguro. E talvez a única alma ali tentando avisar que aquilo tudo tinha ultrapassado qualquer limite.
— Nyck! — gritou Eloísa, empurrando todo mundo — EU ESTAVA ASSISTINDO TUDO EM CASA! VOCÊ ESTÁ ABRAÇANDO OUTRO HOMEM NA TV NACIONAL!
— Eloísa, amor, não era isso que voce queria? O Dr. Zaratustra acabou de confirmar que eu tenho um transtorno! Precisamos abraçar o Quintus juntos para melhorar nosso relacionamento!
— ENTÃO VOCÊ ESTÁ OFICIALMENTE SOLTEIRO! — berrou Eloísa, jogando a faixa no chão — E EU VOU PROCESSAR ESSE REALITY MALUCO!
Do outro lado, um grupo de professores da Illusia apareceu segurando cartazes: ‘NIMSAY, VOLTE PARA A EDUCAÇÃO!’ e ‘BÊBADA NÃO, DESMOTIVADA SIM!’
— Colegas! — acenou a professora — Estou fazendo pesquisa de campo sobre… sobre… pedagogia alternativa!
— Professora — gritou o professor MrRody — você está bêbada na TV abraçando cartas de truco!
— São materiais didáticos! — defendeu-se Nimsay — Matemática aplicada!
— FORÇA, FILHO! — gritou sua mãe, agitando uma faixa que dizia “TORCIDA DO GALO DRAMÁTICO” — VOCÊ ESTÁ VIRAL NO TWITTER!
— VIRAL?! — Quintus puxou o celular pela do bolso com as mãos trêmulas, pela primeira vez naquele lugar, e viu sua própria cara estampada em memes, gifs e vídeos com milhões de visualizações. A hashtag #GaloDramático estava em primeiro lugar nos trending topics.
O ponto no ouvido escolheu aquele momento para se manifestar. A voz do Dr. Zaratustra soou com entusiasmo de empresário descobrindo uma mina de ouro:
— Quintus, meu rapaz! Você está mais famoso que político em época de eleição! Aproveitei o momento e criei um perfil de ‘PixNudes Premium’ para você. Já temos dois mil assinantes pagantes!
— PIXNUDES PREMIUM?! — berrou, sentindo sua dignidade sair sem pagar as contas, apagar o histórico e sumir sem deixar bilhete — EU NEM SEI O QUE É ISSO DIREITO!
— Relaxe, é um projeto de valorização do corpo espontâneo — explicou Dr. Zaratustra com naturalidade constrangedora — Categorizei como ‘Sensualidade Experimental de Baixo Risco’. Tá bombando entre o público alternativo de 60 a 80 anos.
As coisas já estavam suficientemente surrealistas quando outro telão gigante desceu do teto, mostrando o retorno do apresentador Lxpe fantasiado tal qual uma égua sensual, completo com salto alto e crina loira esvoaçante, relinchando para as câmeras.
— IIIIHHHHRRRRR! — relinchou — Bem-vindos ao nosso ESPETÁCULO NACIONAL de transformação humana! E como todos já sabem, eu sou LXPE, seu apresentador desse SHOW!
— E sobre nosso apresentador… — interveio Dr. Zaratustra, atravessando a fala do sedutor de Celeiro com a naturalidade de quem acha que cortar os outros é um serviço público — Observo Zoofilia Performática com Tendências Equinas Sublimadas. Recomendo terapia intensiva com animais de verdade, sob supervisão veterinária.
— ESPERA AÍ! — exclamou Lxpe, com a indignação típica de um cavalo podado no meio do desfile — EU SOU O APRESENTADOR! EU NÃO POSSO SER DIAGNOSTICADO AO VIVO!
— A ciência não escolhe horário nem função profissional. — respondeu Dr. Zaratustra com seriedade médica.
Lxpe desligou abruptamente a transmissão, deixando a tela piscando.
Crimson pigarreou e reassumiu o comando com a precisão de um diretor de cinema lidando com atores problemáticos.
— Muito bem, muito bem! Retomando… — falou enquanto batia palmas, numa energia digna de quem invoca o caos. E logo surgiram funcionários trazendo fantasias tão absurdas que pareciam ter sido recusadas até pelo Carnaval do Rio de Janeiro — Está oficialmente aberta a rodada das fantasias humilhantes! Votadas pelo povo sedento por vergonha alheia!
— VOTAÇÃO ONLINE?! — gritou Quintus — QUANDO TEVE VOTAÇÃO?
— Enquanto vocês estavam se endividando! — sorriu Crimson — O público já estava votando! Tivemos meio milhão de votos em duas horas!
O jovem Maximus olhou para as fantasias com o olhar vazio de quem percebeu tarde demais que caiu em mais uma cilada, e sua dignidade, já acostumada com aquele tipo de golpe, preferiu apenas fingir que não o conhecia.
A fantasia dele era de um galo dramático, com crista rosa-choque, penas amarelo fluorescente e uma placa pendurada no pescoço que dizia, sem piedade, ‘SOFRO POR AMOR’. A cauda de sua fantasia acompanhava seus passos, zombando em silêncio a cada balanço.
— EU PREFIRO A PRISÃO! — gritou Quintus.
— Prisão não paga dívida! — replicou Crimson com lógica empresarial — Mas entretenimento compulsório paga! Quem zerar a dívida com meu cassino hoje pode ir embora. Quem não conseguir… bem, dormirá aqui no mesmo quarto para ‘fortalecer laços familiares’ e continuará amanhã!
— MESMO quarto?! — disse Nimsay, tal qual quem leva um susto muito aguardado — Isso é… altamente irregular! E absolutamente desnecessário! A menos que seja, claro, por falta de opções logísticas. Apenas por isso.
— Posso trazer meus cavalos de pelúcia? — pergunto Lxpe, depois pausou e refletiu — Pera, eu sou só o apresentador, não vou poder dormir com eles… ou vou? ESSE REALITY É CONFUSO!
Vento Leste não recebeu fantasia alguma — e não precisou. Já estava fantasiado por natureza. Com sua máscara de gato colada ao rosto desde o ensino fundamental e uma aura de enigma involuntário, levantou a garrafinha, com o fervor de alguém que celebra o caos, e gritou:
— PIKA! EU NÃO TENHO DÍVIDA, MAS QUERO FICAR! ISSO AQUI TÁ MAIS DIVERTIDO QUE NATAL NA CASA DA VOVÓ!
Nyck recebeu uma fantasia de cupido pegajoso, com setas de ventosa e asas infláveis que faziam barulho a cada passo. Recusou-se a soltar Quintus até mesmo para vestir a roupa, exigindo ajuda dos monitores para ser fantasiado sem desfazer o abraço. Depois disso, apertou-o ainda mais forte:
— PERFEITO! — berrou ele — Terapia familiar vinte e quatro horas! É exatamente o que eu preciso para meu crescimento emocional!
A Professora Nimsay segurava sua fantasia, identificada descaradamente como a ‘Professora do Amor’, que mais parecia um uniforme escolar saído de um pesadelo hormonal. Ergueu o traje com dois dedos e, com um sorriso tão pedagógico quanto malicioso, declarou:
— Se é para ficar mais tempo com o Quintus… — ela pausou, percebendo o que havia dito — Digo! Para aplicar métodos pedagógicos intensivos de recuperação educacional! É… é pesquisa de campo sobre… sobre psicopedagogia! Sim! — ela tomou outro gole olhando para o professor Gehrman na plateia — Vou escrever uma tese sobre isso!
O jovem Maximus olhou ao redor: família torcendo com faixas, amigos que o venderam rindo da situação, professora embriagada falando coisas questionáveis, um obsessivo o abraçando tal qual um coala, um mascarado filosofando sobre gatos, e um reality show transmitindo sua desgraça para o mundo inteiro.
— EU ODEIO MINHA VIDA! — berrou ele para o universo.
Foi quando as portas se abriram novamente, e uma figura familiar entrou caminhando com elegância natural que fazia todo mundo parar para olhar.
Cabelo castanho brilhante, vestido simples mas que parecia ter sido desenhado por anjos, e um sorriso que fazia Quintus esquecer momentaneamente que sua vida tinha virado um episódio de reality show infernal.
Mirela.
Ela parou na entrada, observou a cena com curiosidade divertida: Quintus fantasiado de galo dramático, ainda sendo abraçado por um cupido obsessivo, cercado por câmeras, família torcendo e amigos rindo, e disse:
— Gustavo me ligou falando que vocês estavam numa ‘situação interessante’ e que eu deveria vir urgentemente — ela olhou diretamente para o jovem Maximus e sorriu — Mas não imaginei que fosse… isso.
Quintus tentou se esconder atrás da própria fantasia de galo, que não oferecia cobertura nenhuma para sua dignidade em frangalhos.
— OI, MIRELA! — disse ele, com voz de galo engasgado — ISSO AQUI É… UMA EXPERIÊNCIA SOCIOLÓGICA MUITO AVANÇADA!
— Claro que é! — ela riu, pegando o celular — Posso tirar uma foto? Você está adorável de galinho dramático.
E foi nesse momento que Quintus teve uma revelação: ela tinha vindo por ele. Ou talvez só pelo caos gratuito, feito quem vai ao zoológico esperar o macaco fazer algo vergonhoso. Mas ela tinha vindo. E para alguém com o histórico afetivo de uma planta ornamental ignorada, aquilo já parecia um milagre digno de noticiário.
— E com a chegada de nossa convidada especial. — anunciou Crimson, radiante ao ver os números de audiência escalando à semelhança de fofoca em grupo de família — Oficialmente declaramos aberta a temporada de Big Brother: Vexame Nacional! Que comecem os jogos!
Quintus olhou para Mirela, que estava tirando selfies com ele fantasiado de galo, e pensou:
“Bom, se eu vou me humilhar nacionalmente, pelo menos vai ser na frente da garota mais linda do mundo.”
E pela primeira vez naquela noite insana, ele sorriu de verdade.
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