Capítulo 9 – Gado até na próxima encarnação
Quintus continuava paralisado, vendo Magda desaparecer no meio do restaurante, seus olhos ainda fixos no ponto exato onde ela esteve como um guerreiro que testemunhou a queda de sua fortaleza.
“Amanhã eu te lembro pessoalmente.” — A frase ecoava em sua mente como um feitiço encomendado por um desafeto a um pai de santo, um trabalho espiritual meticulosamente planejado para sabotar qualquer esperança que ele tinha de um futuro digno.
Seu corpo estava presente na mesa, mas sua alma já estava a caminho do além, onde esperava poder negociar uma nova reencarnação em um lugar sem taverna temática e sem garçonetes com físico de halterofilistas.
Quintus não acreditava de que forma tinha se metido naquela confusão. Como tudo tinha acontecido tão rapidamente e sem tempo para se defender. Ele realmente queria se esconder. Talvez cavar um buraco no chão e reavaliar todas as decisões que o trouxeram até ali. Mas, acima de tudo, queria saber o que Mirela estava pensando.
Engolindo seco, lutando contra o próprio instinto de fuga, Quintus hesitou. Um simples movimento de cabeça poderia confirmar aquilo que ele mais temia: a condenação silenciosa nos olhos de Mirela. Respirou fundo, sentindo cada segundo se arrastar como se estivesse subindo ao cadafalso.
Ele tomou um longo gole da bebida e, antes que a coragem tivesse tempo de interferir, girou a cabeça num impulso cego, como quem pula de um penhasco para só depois lembrar que não sabe nadar. E lá estava ela: Mirela.
A mulher, o mito, a ruína do seu orgulho. Seu eterno crush. Sua deusa inatingível. A musa que inspirava seus piores momentos e cujas lembranças vinham sempre acompanhadas de vergonha e doses questionáveis de álcool.
A garota que ele seguia como um cão leal, mesmo sabendo que nunca ganharia mais do que um afago na cabeça e um “você é tão engraçado” que soava como um “nunca vai acontecer, mas obrigado pelo entretenimento.”
Se Quintus realmente tivesse reencarnado, então alguém claramente errou na distribuição de habilidades. Como explicar que num mundo cheio de possibilidades, ele veio sem carisma, sem sorte e com um instinto infalível para se humilhar? Todo herói tinha fraquezas, mas o sistema de reencarnação exagerou na compensação.
Contudo, pouco importavam os mistérios do universo, porque lá estava ela: sentada, tranquila, com um sorrisinho brincando no canto dos lábios. Uma expressão indecifrável, sem raiva, sem ciúmes, sem nada que lhe desse sequer um fiapo de esperança. O pior cenário possível. Ela não estava irritada. Ela estava se divertindo.
“Meu Deus.” — admoestou-se Quintus — “Eu sou um rato de laboratório para o entretenimento dela. Eu sou um circo ambulante e ela tá na primeira fileira comendo pipoca.”
O jovem Maximus sentiu a curta vida que se lembrava passar diante dos seus olhos. Todos os anos de devoção, de favores sem retribuição, de mensagens visualizadas e ignoradas. Os incontáveis momentos em que ele deu apoio emocional, consertou coisas que ela quebrou, buscou comida, ajudou a carregar peso, tudo em troca de um sorriso e um tapinha nas costas. E agora?
Agora ele estava sentado ali, de frente para a mulher que ele passara a adolescência inteira tentando conquistar, enquanto um vídeo comprometedor dele com uma elfa fisiculturista ganhava fama na internet, reduzindo suas já escassas chances a pó.
Entre todas as humilhações que colecionava, essa era a obra-prima. Não foi um simples desastre. Foi planejado, executado e servido com requinte.
— Então, Quintus… — falou Mirela inclinando o rosto levemente e sorrindo como quem saboreava um vinho raro — Você me superou rápido, hein?
O jovem Maximus quis responder. Mas como? Ele não podia simplesmente soltar a verdade: aquela que agora brilhava na sua cara como um letreiro de neon piscando ‘IDIOTA’, e que ele não fazia ideia de como não tinha visto antes:
“Na verdade, Mirela, eu sou seu gado há anos e não superei nada. Eu continuo aqui, correndo atrás da cenoura invisível que você balança na minha frente.”
Mas também não podia negar, porque negar significava que se importava, e admitir isso era abrir um buraco sem fundo. Caso se importasse, então tinha sentimentos. Se tinha sentimentos, continuaria exatamente onde sempre esteve: no banco de reservas, aguardando um improvável apocalipse zumbi para finalmente ser considerado uma opção viável.
Ele tentou rir. Saiu um ruído estranho. Algo entre um porco sendo estrangulado e um motor falhando.
— O quê? Eu? Não, que isso! — ele gesticulou, derrubando quase metade da cerveja no próprio colo.
Mirela abriu um sorriso lento, saboreando cada segundo de sua humilhação.
— Ah, não? Então o que é isso? — apontou ela na direção onde Magda tinha desaparecido.
Quintus revirou o cérebro em busca de algo inteligente para dizer. Qualquer coisa. Uma fala de filme, uma frase impactante de livro, até mesmo um ensinamento aleatório de biscoito da sorte. Nada. Sua mente, generosa como sempre nos piores momentos, só conseguiu oferecer um único conselho: ‘Corre, desgraçado.’ Mas já era tarde. Ele estava preso.
O pânico bateu. Forte. Como um crítico de 9999 de dano direto no peito… sem armadura, sem escudo e sem nem tempo de dizer ‘eita!’.
Mirela estava zoando, claro. Era óbvio. Mas esse era o problema. Ela não apenas sabia onde enfiar a faca. A garota sabia girar, afundar mais um pouco e depois dar uma risadinha enquanto assistia ao estrago. E naquele momento, ela estava girando a faca como se estivesse temperando um frango assado.
Gustavo arregalou os olhos, abriu a boca e, em puro desespero, apontou para Quintus, dizendo:
— Cara… você tá branco.
— Ele tá vivendo um colapso existencial em tempo real. — disse Leon cobriu a boca com a mão, tentando segurar o riso já solto a muito tempo.
— O que foi? Não tem nada para me dizer? — desafiou Mirela.
“O que ela queria dizer com aquilo?!” — era o pensamento que o apavorava.
Ele nunca quis nada com Magda. Seu problema sempre foi Mirela. Eles não tinham nada. Nunca tiveram. Mas, de algum jeito ridículo, ele tinha medo de perder esse ‘nada’, essa amizade despretensiosa que ele, contra todas as evidências, insistia em interpretar como um prólogo romântico.
Talvez, em alguma nova reencarnação, ele pudesse ser o protagonista da história dela. Mas nesse aqui? Nesse aqui, ele tinha acabado de ser oficialmente cortado até da cena pós-créditos.
Quintus lançou um olhar desesperado para Leon e Gustavo, implorando silenciosamente por ajuda. Mas os dois? Estranhamente não estavam ocupados com seus esportes favoritos que era acompanhar suas tragédias. Eles estavam com o foco em outra coisa.
Riam de algo no celular como se estivessem assistindo à comédia do século, completamente alheios ao fato de que ele estava prestes a sofrer um colapso existencial ao vivo.
— E então, Quintus… quer contar nada? — repetiu Mirela, enquanto afiava a faca com a paciência de um açougueiro, pronta para transformá-lo em um belo filé de humilhação bem passado.
Ótimo. Como se aquilo fosse uma fase e não um castigo cármico. Ele sentiu o estômago afundar. Fugir parecia uma excelente ideia. Evaporar, melhor ainda. Reencarnar? Só se fosse como alguém com um pingo de amor próprio e, de preferência, num universo onde conversas constrangedoras fossem proibidas por lei.
Mas o universo, como sempre, não colaborava. Sem saída, pegou o copo de cerveja, virou metade de uma só vez e soltou um suspiro longo, derrotado, aceitando seu destino com a resignação de quem escolheu o modo difícil da vida sem querer.
— Eu tô muito bêbado! — confessou, jogando a frase no ar como se fosse um pedido de desculpas, uma justificativa… ou, na pior das hipóteses, um passe de bola para Mirela salvar sua dignidade.
Mas a bola nem chegou nela. O público já tinha visto o erro. O chute torto. O escorregão na pequena área. O juiz nem precisou de VAR para confirmar que ele tinha metido um golaço contra o próprio time. E como qualquer torcida diante de um vexame histórico… o restaurante inteiro explodiu em gargalhadas.
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