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    Em um quarto que parecia uma cápsula de simplicidade rústica, onde o tempo se recusa a seguir adiante, uma garotinha de cabelos loiros repousa em um sono profundo, alheia ao mundo ao seu redor. 

    O cômodo, pequeno e apertado, é revestido de madeira envelhecida, marcada pelas cicatrizes do tempo. 

    As paredes, saturadas de um cheiro de mofo e terra úmida, contam histórias de um passado que se recusa a ser esquecido, enquanto o aroma do feno da cama rudimentar, misturado com o couro gasto de um animal há muito caçado, preenche o ar com uma lembrança agridoce de dias idos.

    A luz do sol se infiltra timidamente pelas frestas da janela de madeira, lançando raios dourados que dançam sobre a pele pálida da menina adormecida. 

    Seu rosto sereno é iluminado por um brilho suave, quase etéreo, que faz cada fio dourado de seus cabelos parecer uma chama frágil prestes a ser soprada pelo vento. 

    Ela repousa sobre uma cama que range suavemente a cada respiração, o som baixo e constante lembrando um murmúrio distante, como se o próprio móvel estivesse sussurrando segredos antigos guardados em suas fibras.

    Ao lado dela, uma mulher de feições belas, sua mãe, com mãos calejadas pelo trabalho árduo e um olhar que carrega o peso de invernos incontáveis, mistura uma pomada em uma cumbuca de madeira. 

    O odor das ervas verdes e das frutas maceradas se espalha pelo quarto, criando um contraste sutil com o ar pesado e úmido. 

    Com um toque suave, mas firme, ela aplica a mistura sobre a pele de sua filha, seus dedos movendo-se com a precisão de alguém que conhece bem as dores que está tentando aliviar. 

    — Ficará tudo bem agora, pequena, a mamãe irá tratar de seus machucados. Assim como corres pelo prado da vila, suas feridas irão fugir com esta medicina, que a deusa lhe guia e lhe encoraje, curando esse empecilho que a deixa nessa estado. — Palavras de conforto são murmuradas, ecoando como um feitiço antigo, cada sílaba carregando a promessa de afastar a dor e trazer consolo.

    No entanto, o toque gentil desperta a menina de seu sono. 

    Seus olhos se abrem lentamente, ajustando-se à luz suave que banha o quarto. Por um momento, o silêncio impera, quebrado apenas pelo som sutil da respiração de ambas e o distante canto de um pássaro do vilarejo. 

    ”E-Esse lugar…!” A menina, Vívika, arregala os olhos em descrença ao perceber onde está. ”C-Como é possível…? Este lugar, a minha… casa? Ela não havia sido destruída… anos atrás, consumido pelas chamas e pela fúria daqueles majins?”  

    E agora, ela se vê ali novamente, envolta em um cenário que deveria existir apenas em suas memórias, em um sonho impossível onde a realidade se dobra e se molda aos caprichos do tempo.

    Vívika olha ao redor, e cada detalhe do quarto, desde as sombras que dançam nas paredes até o cheiro de mofo e feno, contribui para a sensação visceral de estar novamente naquele lugar, como se o tempo tivesse dado uma volta completa e a devolvido ao passado. 

    A madeira desgastada das paredes parece sussurrar histórias antigas, ecoando memórias que ressoam em sua mente com uma estranha familiaridade. 

    O ar é espesso, carregado com o peso de lembranças não tão distantes, o aroma do feno fresco e úmido trazendo de volta dias de simplicidade e segurança.

    Seus olhos se voltam para a mulher ao seu lado, e lágrimas escorrem, involuntárias, de seus olhos azuis. Ela reconhece aquele rosto como um eco do passado, uma mistura de desgaste e de uma beleza jovial. 

    Os olhos da mulher, também azuis como os de Vívika, brilham com uma suavidade que apenas a maternidade pode conceder, enquanto seus cabelos loiros, embora marcados pelo tempo, ainda mantêm o brilho dourado que ela sempre lembrará.

     A visão é dolorosamente reconfortante, uma ilusão que parece mais real do que qualquer lembrança.

    — Mã… — Sua voz hesita, as palavras morrem em sua garganta, estranguladas pela confusão e pela dúvida. A realidade começa a se despedaçar como um espelho quebrado, refletindo fragmentos de um mundo que ela não sabe se é real ou um sonho. 

    ”Mãe… minha casa… isso é realmente real?” Ela questiona silenciosamente se aquele dia fatídico, quando os majins invadiram e destruíram seu vilarejo, não passou de um pesadelo horrível. 

    Talvez, só talvez, os anos que dedicou a treinar a espada, a dor e o cansaço de cada golpe desferido, tenham sido apenas uma longa e dolorosa ilusão, e que agora, ao acordar, se dissipam como a névoa ao amanhecer.

    A mulher ao seu lado levanta a mão e, com um movimento gracioso, toca o rosto de Vívika, enxugando as lágrimas que escorrem lentamente por sua pele. 

    O toque é suave, quase etéreo, mas traz consigo um calor familiar, um conforto há muito perdido. Esse gesto, simples e poderoso, despedaça a frágil resistência que Vívika tenta manter. 

    O toque materno, cheio de ternura e amor, faz com que seu coração se quebre em um choro incontido. 

    As lágrimas, que antes eram apenas gotas tímidas, agora fluem como um rio, carregando toda a dor, o medo e a saudade que guardou dentro de si por tanto tempo. 

    Ela chora com uma intensidade que faz seu corpo tremer, um grito silencioso por tudo o que perdeu, e talvez, apenas talvez, por aquilo que ela acabou de encontrar novamente.

    A mulher sorri docilmente, um sorriso que parece carregar a luz suave de uma manhã após uma longa noite de tempestade. 

    Seus olhos brilham com uma mistura de ternura e compreensão, como se, em sua profundidade, ela enxergasse todas as dores e lutas que se instalaram no coração de Vívika. 

    Ela sente o peso das cicatrizes invisíveis que a filha carrega, os tormentos que se acumulam em sua alma, como nuvens de tempestade prestes a desabar em um dilúvio de emoções. 

    A mulher se inclina suavemente para a frente e envolve Vívika em um abraço caloroso, seus braços agindo como um casulo protetor contra os horrores que a vida impôs. 

    Ela sussurra palavras de conforto, a suavidade de sua voz penetrando como um bálsamo nas feridas invisíveis da guerreira.

    — Que o teu caminho seja mais colorido, minha pequena, — ela murmura, como se cada palavra fosse um fio delicado, tecendo uma tapeçaria de esperança. — O ódio em teu coração pode ser o combustível para tua força, mas lembre-se, minha filha, o caminho da raiva só traz dor.

    Com um gesto rápido, quase etéreo, a mulher se afasta, seu corpo movendo-se com a graça de um espírito livre. 

    Ela caminha em direção à porta, e o quarto, antes um refúgio de calma, se enche de sons estranhos e perturbadores. 

    De fora, os gritos dos aldeões começam a se elevar, cada voz um testemunho de pavor e desespero. As explosões ecoam como trovões distantes, acompanhadas por risadas maléficas que cortam o ar com uma maldade palpável. 

    Vívika pisca e, naquele instante, percebe a ilusão que a envolvia. 

    — Então… tudo isso não passava de um… — Um sonho, ela conclui, um frágil fio de realidade tecendo-se com memórias de um passado há muito perdido.

    Ela se levanta lentamente, sentindo o peso de seu corpo adulto se reinstalar sobre seus ombros. 

    Ao se erguer da cama, curva-se profundamente diante da mulher, em um gesto de respeito que transborda gratidão e reverência. 

    A mãe sorri, um sorriso que parece compreender mais do que as palavras poderiam expressar, aceitando o gesto com uma serenidade imperturbável. 

    — O-Obrigada… — Vívika murmura, sua voz entrecortada pela emoção. — Obrigada por este momento, mesmo que seja apenas um sonho. Por me permitir lembrar… lembrar de como você era.

    De repente, um grande estrondo irrompe pela casa, fazendo o chão tremer sob seus pés e as paredes estremecerem. 

    O mundo ao redor começa a desmoronar, cada pedaço do quarto se despedaçando como vidro quebrado, o sonho desvanecendo-se na neblina do despertar. 

    E, enquanto a visão de sua mãe se dissolve na escuridão, Vívika sente uma paz há muito esquecida, uma alegria melancólica aquecendo seu peito. 

    O sonho mais feliz que teve em muitos anos chega ao fim, mas, por um instante, ela se permitiu sentir.


    Ao abrir os olhos, a guerreira se vê novamente na sombria masmorra, onde o ar é denso com o cheiro amargo da morte, uma presença invisível que se agarra a cada respiração. 

    Ao seu redor, as paredes parecem pulsar com uma malignidade latente, enquanto partes de caveiras — pernas, braços, mandíbulas soltas — ainda se movem, animadas por uma energia sombria que se recusa a morrer. É como se o próprio sofrimento tivesse se encarnado nesses ossos dispersos, um recado silencioso de uma dor que se perpetua eternamente. 

    Ela se senta rapidamente, sua postura alerta como a de uma fera acossada, e leva imediatamente a mão ao braço que antes estava lesionado. 

    — O meu braço, está… — Para sua surpresa, encontra-o completamente curado, a pele lisa e sem marcas, os músculos flexíveis e ágeis, como se nunca tivessem sofrido o impacto de um golpe.

    Ela o move agilmente, testando sua força, surpreendendo que parece mais forte do que antes.

    Uma onda de emoções conflitantes a invade. 

    Culpa e alívio se entrelaçam em seu peito enquanto ela percebe que a meio-elfa, a quem antes olhara com tanta desconfiança, realmente a havia curado. 

    ”Então até o último momento ela estava me dizendo a verdade…” O ódio que ela sentia pelos majins, esse veneno que havia infectado seu coração por tanto tempo, que pareceu cegar sua visão. 

    Durante a batalha, notou que essa majin não era movida por uma sede de destruição ou desejo de morte, mas por uma determinação inquebrável, um amor profundo e ardente que transparecia em cada movimento, cada golpe desferido com precisão.

    ”Eu estava errada, essa majin é diferente dos outros, ela se parece mais como uma humana do que com… Argh…! Esquece…” Seus olhos se voltam para a figura da meio-elfa, sentada calmamente atrás de si, em cima de uma caixa negra de metal, em uma postura de lótus. 

    A serenidade da posição e o semblante relaxado revelam uma vulnerabilidade que contrasta com a ferocidade que mostrara antes. 

    ”Ela está meditando…? Ela me curou e foi meditar… por acaso ela não teme que eu possa atacar ela desse jeito…? E se eu…” Por um breve instante, um impulso sombrio surge dentro dela, um desejo insidioso de aproveitar essa fraqueza momentânea para acabar com sua oponente. 

    Sua mão move-se instintivamente em direção à espada, mas ela a detém no último instante, pressionando-a contra o próprio peito como um ato de autor restrição, uma tentativa de sufocar o desejo perverso que ameaça dominá-la. 

    ”Não! Esse sentimento… não pode me corromper, ela se mostrou digna de meu respeito ao não me matar e ainda me curar como havia prometido. Atacá-la nesse momento só me faria pior do que aqueles majins…” O toque frio de sua mão contra o peito quente é um lembrete de sua humanidade, uma âncora que a prende à sua própria honra e à promessa silenciosa que fez a si mesma de nunca ceder à escuridão que sussurra em sua alma.

    ”Foi como no meu sonho, do jeito que minha mãe disse…” Vívika sente o peso das palavras de sua mãe reverberando em sua mente, ecoando como um sino distante. 

    O ódio, esse veneno negro que alimenta sua força, também a corrói por dentro, envenenando cada pensamento, cada decisão. A lembrança é um fardo que pesa sobre seus ombros, uma sombra que ameaça envolvê-la em sua escuridão. 

    Ela se lembra do calor feroz que a consumiu quando foi capturada, do fogo que queimava em suas veias, alimentado pelo desejo de vingança, um ódio tão puro e implacável que cegou sua razão e a levou diretamente para essa armadilha. 

    — Argh…! — Um suspiro escapa de seus lábios trêmulos, a realidade desabando sobre ela como uma avalanche. Seus colegas de grupo — companheiros de luta e sobrevivência — podem estar sofrendo a mesma sorte, aprisionados em uma sala como esta, à mercê dos mesmos Golems que a capturaram.

    Com um movimento brusco, Vívika chacoalha a cabeça, como se o gesto pudesse afastar os pensamentos sombrios que tentam dominá-la. 

    — Certo, preciso me recompor, afastar esses sentimentos estranhos de meu coração e o ponto principal de tudo. Meus colegas podem ter sido capturados por aqueles Golems, mas agora não estou mais sozinha… 

    Não há tempo para hesitações ou lamúrias. Ela precisa de clareza, de propósito. Para resgatar seus companheiros e cumprir a missão que lhe foi confiada, deve ser mais forte, deve recuperar sua energia, sua mana, e preparar-se para o que está por vir. 

    ”Talvez com a ajuda dela eu possa resgatá-los… ” Seu olhar se fixa novamente na meio-elfa à sua frente, que permanece em uma pose de lótus, sua respiração calma, como a superfície de um lago em um dia sem vento.

    Inspirada por essa visão de serenidade, Vívika decide seguir o exemplo. 

    ”Certo, preciso recuperar minhas forças primeiro, depois eu vejo o que pode ser feito depois.” Lentamente, ela se senta no chão frio e duro, cruzando as pernas em uma posição de lótus. 

    Fechando os olhos, ela tenta encontrar um centro de equilíbrio dentro de si, um ponto de quietude onde possa reunir suas forças dispersas. Ela sente a magia do ambiente ao seu redor, o mana flutuando no ar como poeira dourada à luz do sol, e começa a tentar absorvê-lo, a integrá-lo em seu ser, na tentativa de restaurar sua energia exaurida.

    A sala ao redor parece encolher, suas paredes de pedra tornam-se quase um borrão à medida que ela mergulha mais fundo em sua meditação, buscando a paz em meio ao caos.

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