Índice de Capítulo



    A névoa fria da manhã rasteja entre os troncos robustos dos pinheiros, ondulando como espectros silenciosos que sussurram histórias esquecidas. 

    Isabel se aproxima da borda da Grande Floresta de Arrow, onde o ar carrega o aroma amadeirado das folhas úmidas e da terra revolvida. 

    O acampamento ao redor ainda se agita com a rotina da desmontagem; soldados como trabalhadores transportam caixas pesadas, enrolam tendas e preparam os cavalos para a partida. Mas seus olhos são atraídos por algo além da movimentação.

    Sentado sobre uma pedra de superfície gasta, Balmor fita o mar de árvores à sua frente, imerso em uma imobilidade quase solene. 

    O vento sopra, e as copas dos pinheiros sussurram entre si, como se compartilhassem segredos antigos com o velho fazendeiro.

    — Vovô Balmor… — A voz de Isabel é baixa, respeitosa, mas não rompe a bolha de solidão que envolve o homem.

    A melancolia que paira no ar é como um véu invisível. 

    Isabel já testemunhou essa cena inúmeras vezes, sempre antes do sol tocar o céu. Ele contempla a floresta como quem busca algo que nunca poderá recuperar.

    “Talvez ele ainda sinta saudade delas…”

    A memória da guerra pesa sobre os ombros do velho como uma carapaça. Suas filhas, arrancadas dele pelos elfos, desapareceram na vastidão da floresta. Nunca encontradas. Nunca esquecidas.

    Isabel sente o frio da tristeza subindo por sua espinha. Um peso invisível pressiona seu peito. Mas ela se recusa a se entregar a ele. 

    Com um suspiro profundo, sacode a cabeça e dá leves tapas nas próprias bochechas, tingindo-as de um vermelho vívido.

    — Certo, vamos lá, não posso fraquejar agora.

    Seu punho se fecha. O desejo de se tornar forte arde dentro dela. Se ela puder crescer, lutar, triunfar… talvez um dia Balmor olhe para ela e sorria novamente.

    Determinada, Isabel se vira, os passos firmes sobre a terra fria, em busca de algo — ou alguém — para ajudar.

    A casca rugosa da árvore onde Ivetya se escora arranha levemente suas costas, mas a sensação é ignorada. 

    Em sua mão, um galho ressequido dança entre os dedos calejados, riscando o ar em cortes despreocupados, ora para cima, ora para os lados, como se esboçasse golpes invisíveis contra um inimigo imaginário. 

    Seus olhos rubros, porém, estão fixos na figura inquieta de Isabel ao longe, absorvendo cada um de seus gestos juvenis com uma curiosidade silenciosa.

    Um meio sorriso se forma em seu rosto.

    “Essa garota…”

    Lukas havia mencionado antes. Suas palavras ainda ecoam na mente de Ivetya, a descrição de um talento bruto e promissor, um prodígio nas artes mágicas. 

    Mas quando ela a viu caída, o corpo inerte e pequeno, uma sensação diferente percorreu seu peito. 

    Algo além do potencial mágico. Algo instintivo.

    “Mesmo sendo uma maga… ainda acho que ela pode aprender também.”

    Isabel olha ao redor, os olhos safira saltando de rosto em rosto, inquietos, como se buscassem um propósito, um chamado.

    Ivetya ergue o braço, balançando-o para chamar a atenção da garota. O sorriso, agora mais afiado, cresce em sua expressão enquanto observa Isabel perceber o gesto e hesitar por um instante.

    “Irei testar essa teoria…”


    A brisa fria serpenteia entre as árvores, carregando consigo o cheiro terroso da floresta e o aroma de madeira queimada dos restos de fogueiras apagadas. 

    O vento dança entre Isabel e Ivetya, como se testasse o que se forma entre elas, cruzando os olhares distintos — o azul profundo da menina, cristalino como safira lapidada, e o rubro ardente da amazona, intenso como brasas em meio à penumbra.

    A amazona estuda a jovem com uma expressão neutra, os olhos percorrendo seu físico esguio, os ombros franzinos, a postura ainda carregada de certa hesitação infantil.

    “Estranho…”  Ivetya pensa, a mente revisitando a cena de Isabel caída, exaurida de mana. “Diferente daquela vez, não sinto resquício algum daquele poder… Será que foi apenas coisa da minha… cabeça?”

    Seus dedos apertam o galho que ainda segura, a madeira áspera rangendo levemente sob sua força.

    “Bem, só há um jeito de saber…”

    — Muito bem… erh… Safira?

    Os olhos da menina piscam uma vez, e um sorriso leve desponta nos lábios rosados.

    — Isabel… senhorita Ivetya, meu nome é Isabel, não… Safira…

    A correção vem em um tom doce, quase tímido, mas sem hesitação. Ainda assim, seus olhos não desviam, fixos em Ivetya como se tentassem decifrar algo nela.

    — A-ah… sim, me desculpe… Isabel…

    Há algo desconcertante na forma como a pequena encara, uma franqueza ingênua que a desarma por um breve instante. Ivetya pigarreia, recompondo-se.

    — Be-bem… Aham…! Vi que você está andando à toa pelo acampamento, e…

    — Ah, eu sinto muito, senhorita Ivetya. Sei que deveria ajudar a desmontar o acampamento, mas acabei me distraindo e, logo depois…

    A voz da menina carrega um tom de culpa genuína, mas há também um lampejo de ansiedade, um desejo subjacente de fazer mais, de ser útil.

    Ivetya sorri de lado.

    — Okay… certo… isso não é uma bronca… Nem sei por que eu te daria uma bronca… — A voz de Ivetya sai neutra, mas há um traço de diversão velada na forma como suas sobrancelhas arqueiam ligeiramente. — Pareço tão assustadora assim para você…?

    Isabel hesita por um instante, seus dedos movendo-se automaticamente para a nuca, enquanto um sorriso sem jeito se desenha em seu rosto. 

    Ela não responde com palavras, mas o gesto fala por si só.

    Ivetya suspira baixinho, franzindo os lábios. 

    ‘’Então sou mesmo intimidadora para essa garota?’’

    — Bom, não há problema em fazer o que quiser, afinal… — Os olhos da amazona percorrem o acampamento, os soldados ocupados com suas tarefas, a fumaça das fogueiras se dissipando lentamente no ar. — Os penetras aqui somos eu e meus subordinados. Esse é o seu acampamento.

    Há um peso curioso nessas palavras, uma sombra breve passando pelo rosto de Ivetya. 

    Então, como quem descarta um pensamento inconveniente, ela ergue o galho que ainda segura e o gira no ar com destreza.

    — Porém, já que você está à toa e eu também… que tal um pequeno treino?

    A menina pisca, os olhos safira brilhando por um instante na luz filtrada entre as copas das árvores.

    — Um… pequeno treino…?

    Ela não compreende de imediato, mas então a lembrança vem como um relâmpago: a cena de Ivetya abatendo o grande lobo da noite com uma precisão letal, a destreza sobre-humana, os movimentos implacáveis.

    O olhar de Ivetya se estreita, fitando a hesitação na expressão de Isabel como um predador observando uma presa relutante. 

    O vento sopra novamente, jogando os fios alvos da menina contra seu rosto, enquanto suas pequenas mãos, ainda frágeis, tentam retirar o excesso.

    — Ah, cla-claro! Eu não sabia que a senhorita também era uma maga como eu… — A voz da menina sai hesitante, carregada de ingenuidade.

    A amazona franze o cenho, soltando um riso curto, quase debochado.

    — Tsk, tsk, tsk… Não, eu não sou uma maga. Eu me refiro… — Com um movimento brusco e casual, ela lança o galho na direção da garota, que, por reflexo, se atrapalha ao tentar pegá-lo. A madeira resvala contra seus dedos antes que ela finalmente a agarre com ambas as mãos. — …à esgrima.

    Isabel encara o galho como se ele fosse um objeto estranho, algo que não lhe pertence. 

    Seus olhos safira refletem incerteza, e ela aperta os dedos ao redor da casca áspera, sentindo a textura irregular morder sua pele delicada. 

    O peso, ainda que insignificante para Ivetya, parece desafiar seus braços pequenos.

    — E-esgrima…? E-eu…? — Sua voz falha, um leve tremor escapando de sua garganta. 

    Ela ergue os olhos para Ivetya, como se esperasse uma confirmação de que aquilo era apenas uma brincadeira, um engano. 

    — Mas eu nunca peguei em uma espada…

    A amazona apenas sorri. Um sorriso que não transmite conforto, mas sim expectativa.

    — E nunca vai aprender se não pegar uma.

    Os músculos de Isabel se contraem. O frio no ar parece mais cortante, e um arrepio percorre sua espinha. 

    Alguma coisa dentro dela, algo adormecido e desconhecido, se remexe.

    O vento sopra, carregando consigo o cheiro úmido da terra e das folhas que se dobram sob a brisa. Isabel segura o galho com mais firmeza, sentindo a textura áspera pressionar contra a palma delicada de sua mão. 

    Um treino de esgrima… Nunca havia considerado essa possibilidade antes. 

    Magia sempre foi seu refúgio, sua primeira e única arma. Mas agora, diante de Ivetya, a guerreira imponente de olhos rubros como brasas incandescentes, uma nova porta se abre diante dela.

    — Bom, mesmo assim, não usaremos espadas — diz a amazona, girando um pequeno ramo de folha que sobrara em sua mão com destreza, os movimentos ágeis e fluídos como uma dança mortal. — Vamos usar galhos. Que tal? Assim será mais fácil para você. Algo simples e sem riscos…

    Isabel hesita. 

    A dúvida percorre seu corpo como um calafrio, mas não é medo. É a incerteza de entrar em um território desconhecido, um campo de batalha onde feitiços não seriam sua única defesa. 

    Desde que se juntara à caravana, seu único objetivo era se fortalecer. Foi essa determinação que a levou decidir ir até Nakkie. Foi essa sede de poder que a fez se levantar após enfrentar o Lobo da Noite, mesmo quando a exaustão pesava em seus ossos como correntes invisíveis.

    Mas agora… Espadas?

    — Eu… — Sua voz morre por um instante. Ela aperta o galho, sente o peso da escolha. Então, como um relâmpago em sua mente, a imagem de Evangeline surge. 

    A meio-elfa, sua mestra, sua inspiração. Ela não se limitava apenas à magia. Lutava com adagas, unia o aço ao arcano, dançava entre os dois mundos com a maestria de quem domina ambos.

    Os olhos de Isabel brilham, como duas safiras iluminadas por um fogo interior. 

    Seu peito se aquece, o sangue pulsa em suas veias, e o sorriso que surge em seus lábios é um reflexo puro da decisão tomada.

    — Aceito! 

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