Índice de Capítulo

    Ao viver na terra sagrada dos bárbaros, havia algo que se podia garantir: o refrão incessante do grito de guerra deles, ecoando milhares de vezes por dia.

    ‘Behela’ ao comer, ‘Behela’ ao partir lenha.

    Os bárbaros invocavam o nome de seu deus ancestral em todos os momentos, um hábito tão arraigado que Rotmiller aprendera a distingui-los apenas por isso. Gritos de guerra que pareciam idênticos à primeira vista gradualmente revelavam as inflexões únicas de seus donos, diferenças sutis que identificavam cada bárbaro por si só.

    Esse grito de guerra, em particular, possuía três características distintas que o destacavam.

    “Behel–AAAH!”

    Primeiro, o início com ‘be’ começava baixo e então aumentava até o brado familiar. Segundo, a pausa entre o ‘hel’ e o ‘la’ era preenchida com uma profunda inspiração. Terceiro, e mais notável, o grito era de uma mulher.

    “Ainar…?”

    No momento em que virou a cabeça na direção do som, Rotmiller confirmou o que suspeitava. Lá estava Ainar, em pé no topo de um edifício de quatro andares, com um par de asas abertas atrás dela. A guerreira segurava em sua mão uma lança verde, que parecia cara mesmo à distância.

    — É a Lança Divina! — alguém na multidão exclamou.

    — Eu jurava que ela estava perto da Praça Dimensional!

    Rotmiller não sabia por que Ainar estava ali, mas isso realmente importava? O mais importante era que suas chances de sair daquela confusão haviam aumentado.

    Boom!

    Com um grande salto de quatro andares, Ainar pulou do prédio e correu diretamente em direção a carroça.

    Relincho!

    Um momento depois, ela estava correndo ao lado do cavalo com uma flecha cravada na anca, igualando o ritmo enquanto dizia a Rotmiller: — Fale, batedor. O que precisa que eu faça?

    Como boa bárbara, ela foi direto ao ponto.

    — Eu não sou muito inteligente e não sei o que fazer. Então diga, o que preciso fazer para salvar Yandel?

    Essa frase curta transmitia toda a confiança dela em seu julgamento.

    Rotmiller prendeu a respiração, mas suprimiu a onda de emoção e encontrou sua calma. Se ela confiava nele, precisava retribuir à altura.

    — Se conseguirmos chegar às muralhas da cidade, os soldados do palácio irão nos ajudar, então…

    — Seja direto.

    Ele aceitou a interrupção. — Abra o caminho à nossa frente!

    — Aí está.

    Assim que Rotmiller deu a ordem, Ainar disparou à frente, girando e cravando sua lança gigante nos inimigos à sua frente. Nenhum deles conseguia bloqueá-la, sucumbindo enquanto as asas em suas costas batiam incessantemente.

    Rotmiller observava tudo de trás. Por um breve momento, quase podia confundir Ainar com uma Valquíria enviada pelos céus para salvar Bjorn Yandel.

    — Behelaaah!

    Eles estavam cercados por inimigos, mas ninguém parecia capaz de ser um obstáculo para a guerreira. Isso permitia que a carroça avançasse rapidamente. As muralhas se aproximavam cada vez mais.

    Se ao menos as coisas pudessem se resolver tão facilmente.

    Um homem surgiu em seu caminho, claramente determinado a impedi-los de passar.

    Rotmiller não sabia quem era aquele homem. Contudo, ele viu a expressão de Ainar endurecer ao avistá-lo, perdendo toda a alegria de derrubar inimigos.

    — Vocês terão que seguir sozinhos — disse ela, com a voz baixa e sem traços de diversão. — Deixo Yandel com você, batedor.

    Ela avançou, e então o mundo mergulhou na escuridão.

    【Roland Banozant lançou Olho Demoníaco Negro.】

    Arrepios percorreram sua pele. Centenas de olhos aterrorizantes espiavam por entre a escuridão que havia se instalado sobre a cidade.

    O mundo parou, congelando tudo no lugar, exceto por duas pessoas.

    — Foi bom ter vindo até aqui.

    Luzes estranhas brilharam nos olhos do homem enquanto ele falava. A guerreira respondeu à sua calma com uma estocada de sua lança e seu característico grito de guerra.

    — Behelaaah!

    A pressão do ataque fez ventos cortarem o ar, mas sua lança errou o alvo.

    Então, contra toda lógica, o vazio da escuridão se rompeu e o tempo voltou a se mover.

    O homem confiante vacilou, gemendo com o golpe inesperado enquanto cambaleava para trás. Ainar avançou contra ele e gritou por cima do ombro:

    — Vá!

    Rotmiller pegou a carroça e seguiu em frente.

    Na verdade, ele não estava fazendo nada. Assim que a escuridão se dissipou, o cavalo galopou novamente como antes. Tudo o que Rotmiller precisava fazer era segurar as rédeas e guiar o animal na direção certa.

    A carroça chacoalhava enquanto se movia, acrescentando-se aos sons de uma batalha feroz. Super-humanos lutavam atrás dele, mas Rotmiller não se virou para olhar.

    Tudo o que precisava fazer era levar a carroça até as muralhas da cidade. Ele colocou tudo de si para alcançar isso.

    — Peguem-no!

    — Detenham-no!

    Apesar de sua determinação, outros soldados que estavam escondidos surgiram novamente para persegui-lo assim que Ainar desapareceu. Além disso, a carroça começou a desacelerar.

    “Maldição.”

    Honestamente, era de se esperar. Por mais que fosse uma carroça com rodas, o cavalo não podia puxar um bárbaro daquele tamanho e peso indefinidamente. Ele acabaria se exaurindo.

    Rotmiller soltou as rédeas e subiu na carroça, disparando flechas contra os perseguidores. Contudo, não era o suficiente.

    Ele não era uma pessoa forte, não como Ainar.

    — São só flechas comuns!

    — Ele não é nada especial!

    As mesmas pessoas que haviam deixado Ainar passar sem resistência agora zombavam da fraqueza relativa de Rotmiller.

    Bem, ele se consolava com as poucas flechas que encontraram seu alvo graças à sua habilidade aparentemente ‘fraca’.

    — Peguem-no!

    Ainda assim, a distância entre a multidão e a carroça começava a diminuir.

    Ele sabia que seria capturado. Não havia como fugir naquele ritmo. Uma decisão claramente precisava ser tomada, mas ele não tinha tempo para pensar em todas as variáveis.

    — Ele está sem flechas!

    Ele ficou sem flechas para usar.

    Pshwoo!

    Um projétil inimigo o acertou em cheio no ombro direito, tirando-lhe a capacidade de usar o braço.

    Se continuasse na carroça, só aumentaria o peso que o cavalo precisava puxar.

    Seus pensamentos o atormentavam.

    “É assim que termina? Quando ele apareceu na terra sagrada, pensei que ainda teria algumas histórias para contar. É assim que minha história acaba?”

    Mas não, não precisava acabar assim. Havia uma solução.

    Eles estavam perseguindo Yandel, não ele.

    Se ele largasse aquele pesado bárbaro no chão, poderia viver. Se simplesmente o empurrasse, chegaria à muralha e viveria.

    E, ainda assim…

    “Acho que agora eu entendo.”

    Nos momentos em que achou que morreria na terra sagrada, Rotmiller não conseguia compreender o que aquele amigo mago estava pensando quando tomou sua decisão final.

    Rotmiller tinha uma ideia, mas algo lhe escapara, mesmo quando a morte quase o alcançou.

    Agora ele entendia.

    “Não importa o quão assustado eu esteja…”

    Assim como os bárbaros que entravam no labirinto.

    Assim como os guerreiros que riam diante das adversidades.

    “Eu não posso fugir.”

    Como uma rajada de vento dissipando a névoa, sua mente clareou.

    Dwalkie não era um grande homem, mas alguém comum, como ele.

    Ele também teria medo da morte como qualquer um. Também estaria desesperado para viver mais um momento. Também pensaria em seus arrependimentos e erros enquanto olhava para trás e tentaria consertá-los.

    Porém, ele não fugiu. Fez tudo o que pôde, e isso salvou todos os outros.

    “Sim…”

    Se não fosse por ele, a história de Rotmiller teria acabado há muito tempo. Era risível sequer debater isso.

    Ele deu seu adeus final ao homem que não podia ouvi-lo.

    — Sinto muito, mas você terá que seguir sozinho.

    Até o fim, no entanto, Rotmiller foi verdadeiramente comum.

    Em um último ato de arrependimento, ele retirou uma caneta de seu Cofre do Tesouro e rabiscou algo na palma da mão daquele homem. A situação não lhe permitia tempo para escrever nada em detalhes, mas o gesto ao menos ajudou a apaziguar um de seus muitos arrependimentos. Dependendo da interpretação, suas últimas palavras poderiam ser vistas como a manifestação escrita de sua natureza gananciosa.

    “Mas eu deveria ter esse direito, pelo menos.”

    Rotmiller largou a caneta e empunhou sua espada curta, então saltou da carroça para enfrentá-los. E ele lutou.

    — Qual é o problema com esse desgraçado?

    Lâminas afiadas cortaram seu corpo enquanto o som da carroça se afastando desaparecia.

    Ele sabia, mesmo sem precisar olhar para trás. Aquele carro estava indo na direção certa.

    Em direção às altas e imponentes muralhas da cidade.


    Acordei com o corpo dolorido, mas com a mente clara.

    Parecia que eu havia despertado de um sono profundo, como se tivesse acabado de sair de um longo sonho, mas não conseguia me lembrar de que tipo de sonho era.

    — Onde…

    …eu estava?

    Pelo teto, dava para perceber que eu estava nos alojamentos de algum acampamento.

    Apoiei-me nos cotovelos para olhar ao redor, mas não havia mais pistas sobre onde eu estava. Talvez fosse semelhante o bastante aos alojamentos dos soldados do palácio que eu lembrava, mas por que eu estaria ali, dormindo?

    — Rotmiller…

    Comecei a juntar os fragmentos de memória de antes de desmaiar.

    O trovão caiu, e eu o bloqueei. Quando recuperei a consciência, Rotmiller estava ao meu lado.

    “O que aconteceu?”

    Eu estava confuso. Precisava de informações sobre a situação em que me encontrava. Com esse pensamento, estava prestes a me levantar da cama quando um cavaleiro entrou nos alojamentos.

    Era um rosto familiar, aquele que havia desaparecido junto com Raven depois que fui puxado para o Submundo pelo Coletor de Cadáveres.

    — Astarota?

    O Cavaleiro do Rei, Astarota Berun, me cumprimentou com uma declaração simples. — Finalmente acordou.

    — Por que estou aqui? — perguntei. — Onde está Raven?

    — Como seria se perguntasse uma coisa de cada vez?

    Nossa, bastante frio com alguém que acabou de acordar. — Onde está Raven?

    — Não se preocupe, ela está em um lugar seguro. Deve chegar logo, já mandei avisá-la.

    Suspirei. — Certo, então. Diga-me. Onde estou e por que estou aqui?

    — Primeiro, esta é a capital imperial de Karnon. A razão de um nobre como você estar nos alojamentos de um soldado comum é segurança.

    — Segurança?

    — No momento em que souberem sua localização, o Trovão cairá de novo.

    Hesitei. — O quê?

    — Parece que o primeiro-ministro está ansioso para dispará-lo. Toda vez que descobrem onde você está, ele lança o Trovão contra você.

    Ok, então era mesmo o primeiro-ministro quem disparou aquilo.

    Sem dúvida, era uma informação importante, mas ainda não respondia à minha pergunta.

    — Astarota, eu perguntei não por que estou nos alojamentos, mas o que aconteceu enquanto estive inconsciente.

    — Ah, é isso? — Astarota murmurou sem se importar muito antes de começar a explicar o que havia acontecido.

    Era fácil de resumir.

    Um segundo raio de Trovão caiu, levando o Barão Wilkins, o Quinto Comandante, a ativar uma magia ancestral instalada na cidade, um feitiço de teletransporte com um longo tempo de conjuração. Como ele o lançou cedo demais, não ativou corretamente, o que significa que o local de pouso foi determinado aleatoriamente.

    — Então, no fim, todos ali foram teletransportados para lugares aleatórios pela cidade?

    — Isso não é melhor do que todos morrerem?

    Bem, era verdade. — Então eu dei sorte e caí aqui?

    — Claro que não. Você caiu bem no meio do território inimigo no Distrito 4. Você e outro homem que o carregou até aqui enquanto estava inconsciente.

    — Outro homem… Rotmiller! Está falando de Brown Rotmiller?

    — Provavelmente.

    — O que aconteceu com ele?

    Astarota respondeu à minha pergunta apressada com desinteresse casual. — Ele está morto.

    Congelei enquanto a resposta ecoava na minha mente. — O quê?

    — Segundo o relato de uma patrulha das muralhas, assim que a carroça em que você estava desacelerou, ele saltou para bloquear os inimigos.

    — Uh…

    — Além disso, Ainar Fenelin também ajudou na sua fuga junto com ele, mas foi capturada pelos inimigos.

    “Rotmiller morreu e Ainar foi capturada?”

    Meu cérebro se recusava a funcionar com o influxo de informações. Astarota notou e sorriu.

    — Apesar das aparências, você realmente é mole demais. Vou estar lá fora enquanto resolve isso. Ah, e mais uma coisa… — Quando tudo o que fiz foi encará-lo, perplexo, ele continuou: — Sua palma.

    Com isso, Astarota saiu dos alojamentos, deixando-me sozinho na beira da cama, atormentado.

    Finalmente registrando suas aparentemente aleatórias palavras finais, levantei meu braço e virei a palma da mão para cima. Uma mensagem apressada estava escrita nela.

    Ler aquelas palavras me trouxe direto de volta à realidade.

    Por favor, seja gentil com a Srta. Shavin. Ela é uma boa mulher.

    Isso não era um sonho.

    Um pequeno gesto, um grande impacto!

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