Capítulo 768: Colocando as Coisas em Ordem (3/8)
Minhas experiências de vida provaram que as mãos de um bárbaro eram uma cura para muitas coisas. Eu pessoalmente já havia curado muitos problemas mentais com estas mãos, e desta vez não foi diferente.
Thwack!
Assim que meu golpe atingiu a parte de trás de sua cabeça, a vida retornou aos olhos antes vítreos e mortos do marquês.
Bem, mais do que ‘vida’ era mais um misto de humilhação e raiva… Mas essas emoções negativas ainda provavam que ele estava vivo, então não era uma palavra totalmente errada de se usar.
— Certo, isso parece melhor — disse eu, incapaz de esconder minha satisfação ao vê-lo recuperar seu entusiasmo pela vida.
Lentamente, ele se virou para me encarar, um turbilhão de emoções em seus olhos. Havia perplexidade por ter sua cabeça atingida, humilhação por ter que olhar para cima para alguém que outrora esteve sob seus pés, por fim…
— Ragna…
Havia amor por sua filha. E vergonha por ter falhado em protegê-la.
Eu não tinha razão para simpatizar com ele. O coração de um guerreiro não era tão fraco a ponto de sentir pena de seus inimigos, e eu ainda me lembrava bem das palavras do marquês naquele dia fatídico.
— Depois disso, qualquer um desses preciosos aliados seus pode morrer. Não, eles ‘vão’ morrer. Vou garantir isso.
— Você também deve sentir isso. Deve sentir a minha dor.
Essa maldição, nascida das profundezas de seu coração, havia se tornado realidade. Eu fui atingido por Trovão e, enquanto estava inconsciente, Rotmiller morreu tentando me salvar.
O homem que matou Rotmiller foi um soldado de Noark sem nome, mas o marquês também tinha sua parcela de culpa.
Não havia pena alguma em meu coração por esse homem.
Cerrei os punhos, sentindo o peso das vinte vidas que foram perdidas no Rochedo Gélido, um peso muito grande para permitir espaço para emoções tão humanas quanto, empatia.
Enquanto nos fitávamos em silêncio, Óculos interrompeu a conversa por trás de nós. — Marquês… Como prometido, trouxemos sua filha até você. Então, cumpra sua parte do acordo.
— Está falando sobre a posse do Trovão? — o marquês confirmou.
— Exatamente. Se fizer isso, Noark garantirá a proteção de sua filha. Claro, você não receberá o mesmo tratamento. O Barão Yandel solicitou sua custódia em troca da segurança dela.
— Entendo… Então foi isso que aconteceu.
Só então o marquês pareceu compreender como eu havia aparecido ao lado de Óculos. Ele então voltou-se para mim com uma nova pergunta.
— Você viu?
Foi uma pergunta curta, concisa e ambígua ao mesmo tempo. Mas eu não precisava de explicações.
— Vi.
— Entendo… — A voz do marquês se dissipou em um silêncio antes que ele voltasse a falar. — Quero uma conversa particular com o barão. Poderiam sair da sala por um momento? Minha filha pode ficar com vocês.
Óculos hesitou com o pedido do marquês, mas logo depois assentiu, concedendo-lhe esse favor.
— Você pode me conceder isso ao menos — o marquês insistiu. — Peço apenas um breve momento.
— Você precisará cumprir sua promessa.
Surpreendentemente, Óculos concedeu permissão sem muita dificuldade. Virei-me para confirmar com Amelia, que levou os outros e saiu da sala junto com ele. Com isso, restamos apenas o marquês e eu.
— Faz tempo que não temos uma conversa particular assim.
Demorei um instante antes de responder.
— Você está mais calmo do que eu esperava.
— O medo é uma emoção que surge naqueles que têm algo a perder. Mas olhe para mim. Tenho algo a perder?
— Bem, pelo que vi naquele diário, parece que sim.
A menção indireta de Ragna trouxe um sorriso amargo ao rosto do marquês.
Em certos aspectos, o marquês não era tão diferente de mim. Nossas fraquezas eram dolorosamente visíveis ao mundo.
— Então, o que é? De repente, pediu essa conversa a sós. Vai dizer algo sobre deixar sua filha comigo?
Meu tom foi carregado de sarcasmo, mas nada em sua postura indicava que ele tinha uma resposta na ponta da língua. Que cara entediante.
— O quê? É isso mesmo que você…
— O quanto você sabe sobre a casa real de Rafdonia? — ele interrompeu de repente, pegando-me desprevenido.
— Hã? Por que o assunto mudou para isso?
Para ser honesto, era um tópico que eu mesmo pretendia trazer à tona. O marquês apenas se adiantou.
A casa real de Rafdonia.
Se havia alguém que poderia lançar luz sobre os grandes segredos que envolviam essa casa real, era o marquês.
O que eles estavam tão desesperados para esconder?
— Bem, sei algumas coisas que a maioria das pessoas não sabe — disse despreocupadamente, tentando arrancar uma resposta dele. — Por quê? Você tem algo a me contar?
O marquês assentiu sem hesitação.
— Então, desembucha. Quem sabe? Talvez eu fique tão comovido com sua história que decida ajudar Ragna.
Joguei a isca para fazê-lo falar, e sua resposta foi uma confissão chocante.
— O Rei Imortal e o Rei Novo Mundo são a mesma pessoa.
— Hã?
O que ele acabou de dizer?
A epopeia do Rei Novo Mundo era bem conhecida.
Quando a agitação civil atingiu seu ápice com o Imortal enlouquecendo e matando a todos em seu caminho, o Rei Novo Mundo tomou o trono e inaugurou uma nova era para o povo.
A morte do que não morre e o nascimento de uma nova era.
O novo rei aboliu muitas tradições ultrapassadas e implementou inúmeras políticas voltadas para o bem-estar dos cidadãos. Suas reformas lhe renderam o fervoroso apoio do povo, que o aclamou como o ‘rei sábio’.
Mas agora, o marquês estava me dizendo o contrário.
— Eles são a mesma pessoa?
A revelação era chocante, mas não havia tempo para ficar parado em silêncio atordoado. Primeiro, eu precisava confirmar a veracidade dessa afirmação.
— Essa informação é confiável? — perguntei, já prevendo que poderia ser uma pergunta inútil. O marquês respondeu apenas isto:
— Pelo fato de que você não questionou se isso sequer era possível, parece que já sabe alguma coisa sobre a casa real.
Ele estava certo.
Depois de explorar o primeiro andar subterrâneo e o mundo fora dos muros, coisas que não existiam no jogo, aprendi muito sobre a família real.
— Ah, você não sabia? Depois que o Imortal tinha um filho, ele roubava o corpo da criança para continuar governando. É também por isso que ele sempre agia usando uma máscara.
Aprendi esse segredo de Rafdonia com o chefe da vila, um herói de uma era passada. Na época, presumi que era por isso que o Rei Novo Mundo queria usurpar o trono. Não havia motivação mais urgente do que a própria sobrevivência. No entanto, foi exatamente por isso…
— Apenas responda à minha pergunta — exigi. — Essa informação é confiável?
Para ser sincero, era difícil de acreditar. Eu sabia que a alegação do marquês era teoricamente possível, e ainda assim…
— Decidi que seria diferente dele. Que viveria como um humano e morreria como um humano.
Não parecia que ele estava encenando quando o Rei Novo Mundo me disse essas palavras.
Será que tudo o que ele me contou foi realmente uma mentira? Para eu acreditar nisso, precisaria pelo menos…
— Se deseja provas, não tenho nada do tipo — o marquês disse, antecipando meu próximo pedido. — A casa real de Rafdonia não é tão descuidada. No entanto, passei muitos anos investigando essa família e cheguei à conclusão de que é muito mais provável do que não que os dois sejam, de fato, a mesma pessoa.
Após ouvir atentamente a confissão do marquês, não pude evitar soltar um suspiro.
Ótimo, então era tudo apenas um pressentimento dele? E eu me agitei por nada.
“Bem, para mim tanto faz se os dois são a mesma pessoa ou não…”
— Enfim, era só isso que queria me dizer? Que há uma grande chance de o Imortal e o Rei Novo Mundo serem a mesma pessoa?
— Claro que não. Só mencionei isso para poder dizer o resto.
— Então vá direto ao ponto. Esta será sua última oportunidade.
— Você já ouviu falar do Coração de Karui?
O Coração de Karui.
Um tesouro imbuído da autoridade do antigo deus maligno, dito permitir que seu portador roubasse o corpo de outra pessoa. O Imortal o usava para prolongar sua vida, roubando o corpo de seus descendentes, como um espírito maligno.
— Sim — respondi.
— Então serei breve. Durante o processo de assumir o corpo do Rei Novo Mundo, o Imortal perdeu o último Coração de Karui que possuía.
Espere.
— O último?
— Vejo que você frequenta a biblioteca, mas parece que pulou os estudos sobre mitologia antiga. Até mesmo as escrituras da Igreja dos Três Deuses mencionam um verso sobre enfiar tesouros nos dois corações do deus maligno.
— Pule a aula de história. Então, em resumo, o Coração de Karui… Existem, na verdade, dois tesouros com esse nome?
— Exatamente.
Isso respondia a uma dúvida que eu sempre tive.
Eu sempre me perguntei como o rei sustentava sua imortalidade mesmo depois de o chefe da vila ter fugido com o Coração na era antiga.
— Entendi, continue.
— De qualquer forma, depois de perder o último coração restante, o tempo passou e o corpo do Rei Novo Mundo também começou a chegar ao seu fim. Originalmente, ele deveria ter morrido naquele momento. No entanto…
— Ele ainda está vivo — completei casualmente a frase do marquês. — Embora precise dormir muito mais nos dias de hoje.
Um olhar insondável surgiu nos olhos do marquês. — Eu nunca esperava que você soubesse tanto.
— A sorte não está do meu lado — respondi secamente. Tudo o que eu queria era viver, mas continuava me envolvendo em todo tipo de situação complicada. — Não vou te interromper, então continue. O que quer me dizer?
Lentamente, ele retomou. — A casa real continuou procurando pelo Coração de Karui. E, recentemente, o tesouro ressurgiu. Felizmente, parece que o palácio ainda não sabe de sua localização, mas…
— Mas?
— É apenas uma questão de tempo até que descubram. É por isso que tomei medidas tão desesperadas.
— Porque o rei pode tomar o corpo de Ragna?
— Exatamente. Não havia outra maneira de proteger minha filha.
“Entendi.”
Eu suspeitava que algo estivesse impulsionando a trama, mas nunca esperei que a história completa fosse essa.
Sua amante e filho foram tirados dele, e agora ele corria o risco de perder a filha também. Não havia como simplesmente ficar parado e assistir a isso acontecer.
No entanto, ainda havia uma questão:
— Mas precisa ser Ragna?
Por que o marquês tinha tanta certeza de que o rei tomaria o corpo de Ragna?
— O rei sempre tomou apenas os corpos de seu próprio sangue. Deve haver uma razão para isso.
— Não, não é isso… — murmurei, hesitando. — Se eu fosse o Rei Novo Mundo, provavelmente teria tido muitas crianças diferentes. Não dá para convencê-lo a tomar o corpo de outra, alguém que não seja sua filha?
Diante disso, o marquês exibiu um sorriso amargo.
— Em um certo momento, foi exatamente como você disse. O Rei Novo Mundo gerou muitas crianças e as ‘armazenou’. No entanto… uma organização misteriosa as perseguiu implacavelmente.
— Uma organização misteriosa?
— Heerkmuta. Eles usam máscaras de lobo negro e afirmam seguir o Último Grande Sábio. Não sei quais são seus motivos, mas eles caçaram os filhos do rei enquanto ele dormia e, agora, não sobrou nenhum.
E nesse processo, o capitão dos cavaleiros da Ordem da Rosa também foi morto. Mas essa não era a parte mais importante.
— Você entende o que isso significa?
— Ragna é a única de sangue real que restou.
O marquês fechou os olhos, silenciando-se por um momento, então os abriu novamente. — Muito bem, então vou lhe fazer minha última proposta.
Aguardei que continuasse.
— Você já quis se tornar um rei?
As palavras ficaram aquém do sussurro tentador de um diabo.
A expressão do marquês era desesperada demais, patética demais, para isso.
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