Capítulo 802: Primeiro Nível (4/5)

Um acidente durante uma raid não era nada incomum. Não importava há quanto tempo eu jogava ou o quanto eu soubesse sobre o jogo… Não, talvez por causa do quanto eu havia jogado, eu entendia ainda melhor que a maioria sobre aqueles momentos fatídicos.

Acidentes eram, por natureza, inevitáveis. Foi assim que o jogo Dungeon and Stone foi criado. Eles aconteciam durante as batalhas, e sempre vinham acompanhados de um evento de morte de um aliado. Porém, seguir em frente rumo ao Portão do Abismo, recrutando novos aliados e sem deixar que essas perdas o detivessem, era assim que o jogo devia ser jogado.

Como agora.

Semente do Fim era a habilidade básica de Sniktura, causando dano inevitável a um inimigo aleatório próximo. Contudo, não importava o quão ‘básica’ fosse, o ataque básico de um monstro de primeiro nível estava naturalmente em outro patamar, ainda mais se o alvo não fosse o tanque.

— Hã?

Primeiro ouvi uma breve exclamação de confusão atrás de mim…

Boom!

…e, um instante depois, uma explosão ocorreu.

“Quem foi?”

Eu não sabia, mas não me virei. Precisava impedir que mais acidentes acontecessem, então ergui meu escudo e avancei contra a Sniktura.

“Conseguiu escapar um pouco”, observei enquanto empurrava o monstro de volta para o centro. Só após tomar essas medidas de emergência é que ouvi quem havia sido ferido.

— Capitão, o Sr. Tersia foi atingido! — gritou Marrone, a voz aguda de preocupação.

Meu coração disparou por um momento.

“Tersia? Mas ela disse ‘Senhor’…”

Marrone pode chamar Erwen de Senhorita Tersia, mas nunca de ‘Senhor’. Mais importante, a Elementalização ainda não havia terminado, o que significava que o acidente havia recaído sobre…

“Beleg Shucia di Tersia.”

Tio da Erwen, e um dos nossos membros mais recentes. O homem que entrou para o clã para obter a Pedra da Ressurreição.

— Dei uma poção para ele, mas está gravemente ferido!

Como os veteranos que eram, os membros continuavam a relatar o estado da situação sem que eu precisasse perguntar. Estava claro que era grave. Porém…

— Ele vai morrer se não usarmos poder divino para curá-lo!

Devíamos usar nosso único curandeiro para curar a retaguarda?

Sinceramente, eu hesitei. Se nossa única fonte de cura fosse redirecionada, a pressão na linha de frente aumentaria, e isso poderia causar novos acidentes.

“Existe a chance de sermos todos aniquilados se algo assim acontecer de novo.”

Mesmo sendo uma luta puramente física, Sniktura ainda era um monstro de primeiro nível. Se a raid falhasse, todos nós poderíamos morrer ali. Assim, restavam três opções: arriscar o perigo adicional para salvar Beleg, ignorá-lo e garantir o sucesso da raid, ou abandonar tudo e recuar.

Eu precisava tomar uma decisão, e rápido. Uma decisão errada era melhor que uma decisão tardia. Tudo tinha seu momento ideal, e se esse momento fosse perdido, todos os erros recairiam sobre o líder.

Decisões, decisões.

Como esperado, mais um momento de decisão chegou.

— Vamos desistir de Sniktura — anunciei. — Retirada.

Embora a essência da serpente fosse desejável, hoje não era o único dia para derrotá-la. E nem podíamos garantir que a serpente deixaria a essência…

Mas, assim que tomei minha decisão final, ouvi um som semelhante ao de gás escapando, e então a entrada por onde viemos se fechou.

— ⟅Vai ficar sentado assistindo ao fim do mundo só para salvar uma pessoa?⟆

“Aquele filho da puta…”

— ⟅Matem aquela serpente, ó sobreviventes do império destruído. Por este mundo e por vocês mesmos.⟆

Minhas escolhas foram reduzidas a duas.

Nossa rota de fuga havia sido bloqueada.

Algo assim nunca havia acontecido no jogo, então era a primeira vez que eu me deparava com esse cenário. Em circunstâncias normais, era só correr para fora da masmorra da Base Secreta de Arta se algo desse errado durante a raid.

Então que porra era essa?

— É resistente demais! Não conseguimos causar nem um arranhão com magia de quinto nível! Só vai abrir com um feitiço de primeiro nível!

Nossa saída estava bloqueada.

— ⟅Abra a porta enquanto eu ainda estou de bom humor, sua máquina-humana maldita⟆ — rosnei.

— ⟅Não posso assistir ao fim do mundo.⟆

— ⟅Não quero saber. Não vamos matar aquele bicho. Abra isso agora!⟆

— ⟅Mas, se aquele monstro não for eliminado, tudo vai acabar mesmo assim.⟆

A tentativa de ameaça e negociação fracassou.

Minha raiva quase transbordou, mas me recompus rapidamente, controlando minhas emoções e avaliando a situação friamente. Minhas três escolhas iniciais agora eram duas: arriscar que todos caíssem em perigo para salvar Beleg, ou abandoná-lo para aumentar a chance de sucesso da raid.

— ⟅Esta é uma oportunidade para entenderem o que é sacrifício. Filhos do império, queimem até seu último momento e iluminem o mundo.⟆

Sinceramente, queria destruir todas aquelas malditas caixas de som, mas isso não mudaria nada. A situação já estava em andamento, e só havia duas opções diante de mim. Eu precisava fazer minha escolha.

— Estou retirando a ordem de retirada. Retornem às suas posições! — ladrei.

Na verdade, eu já sabia qual era a escolha certa. Com a situação já definida, abandonar Beleg e seguir com a raid até o sucesso era o certo a se fazer…

“Ah… Provavelmente essa é a condição necessária para bloquear a saída: tentar fugir enquanto ainda é possível completar a raid.”

Se esse fosse mesmo o caso, também explicaria por que eu nunca tinha encontrado essa condição antes. Se tivesse, teria escolhido ficar e lutar dez entre dez vezes, abandonando uma pessoa para continuar meu jogo como consequência.

Mas isso não é um jogo.

A cauda da Sniktura explodiu contra meu escudo enquanto minha conversa com Beleg se repetia em minha mente.

— Preciso da Pedra da Ressurreição se quiser continuar vivendo.

Não conseguia me livrar da lembrança daquele olhar vazio em seus olhos. Como se ele não tivesse vontade nenhuma de viver. Não, como se a morte fosse seu maior consolo.

“Talvez… talvez abandoná-lo aqui fosse benéfico para ambos…”

Voltei à realidade ao bloquear outro golpe pesado.

“Pare de tentar racionalizar isso.”

Certo. Quando o vi naquela ocasião, eu quis mudar aquela forma distorcida de pensar. Foi por isso que concordei em deixá-lo entrar no meu clã.

— Parav! Use o restante do seu poder divino para curar o Beleg!

— Mas…!

— Vou dar um jeito. Salve o Beleg, custe o que custar.

Apesar do tom confiante da minha ordem, eu ainda não sabia se estava tomando a decisão certa. Se alguém ficasse gravemente ferido ou até morresse por causa disso, eu provavelmente me arrependeria. Mas isso seria um problema para o eu do futuro. Não era hora de se preocupar com um futuro que talvez nem chegasse.

Precisava confiar no meu instinto e avançar, como qualquer guerreiro bárbaro confiável faria.

— Behel–LAAAH! — soltei um grito de guerra e avancei, ciente de que encurtar a distância contra a Sniktura me faria assumir ainda mais pressão.

“É melhor assim. A pressão sobre os outros vai diminuir.”

Sniktura pareceu se sentir ameaçada com minha aproximação, e seus movimentos ficaram bem mais erráticos. Ela balançou a cauda, tentou me golpear com a cabeça enorme e até abriu a bocarra para tentar me engolir algumas vezes.

Me concentrei mais do que nunca para desviar de seus ataques e rebati os golpes com o escudo, desviando-os, mas nem sempre fui bem-sucedido. Fui atingido de frente algumas vezes e arremessado para longe, e era nesse momento que meus aliados avançavam para segurar o monstro em meu lugar.

Logo, os ferimentos começaram a se acumular. Eu terminei com costelas quebradas e joelhos esmagados, mas os outros na linha de frente, que não tinham meu bônus de Imunidade a Veneno, estavam em situação bem pior. A pele deles estava derretendo, e seus corpos inteiros escureciam com manchas.

No entanto, apesar de todo nosso esforço, Beleg não mostrava sinais de recuperação na retaguarda. O motivo era simples.

Sua saúde caía sempre que se recuperava, então ele estava completamente fora de combate.

Claro, isso não significava que nossos esforços foram em vão. Ao menos conseguimos mantê-lo vivo, e contanto que o poder divino continuasse sendo canalizado nele, sua condição de envenenamento eventualmente seria curada.

“A pergunta é se conseguiremos sobreviver até lá…”

Olhei para os membros da linha de frente ao meu redor. Eles estavam ainda piores que Beleg, que vomitava sangue negro pela boca, mas não apresentava nenhum dos ferimentos visíveis que os outros carregavam.

“Vamos todos ficar em perigo desse jeito.”

Mesmo que conseguíssemos salvar Beleg, outra pessoa poderia morrer. Não, nesse ritmo, eu duvidava que a raid fosse sequer bem-sucedida.

— ⟅Ainda não é tarde demais. Mude sua decisão, imperial.⟆

Como aquela voz irritante dizia, talvez fosse mesmo hora de mudar de ideia.

Era uma verdade universal deste mundo que ninguém podia manter tudo o que desejava. Se o pior acontecesse, manter o foco o suficiente para tomar decisões em frações de segundo seria essencial.

“Tudo ou nada.”

Se eu fosse apostar, que fosse com tudo o que tenho.

— Já era pra Sniktura! Quem puder, contorne e destrua todas as máquinas por perto!

Era hora de rolar os dados.

Infelizmente para ele, Arta só compreendia a língua antiga e não conseguia entender a ordem que dei aos meus companheiros. Mas isso não importava. Intenções podiam ser transmitidas por métodos além das palavras, contanto que uma entidade inteligente estivesse presente para testemunhar.

Chunch!

Crack!

Bzzt, bzzt, bzzt!

Assim que ouviram minha ordem, meus aliados imediatamente começaram a destruir todas as máquinas ao redor. Só então Arta começou a gritar, visivelmente em pânico.

— ⟅O que vocês estão fazendo?! P-Parem! Loucos! Pare seus subordinados agora!⟆

Havia apenas uma coisa que eu precisava dizer: — ⟅Foi por isso que você devia ter aberto a porta quando eu mandei.⟆

— ⟅Está dizendo que está tudo bem com o fim do mundo?! Imperiais egoístas! Ainda não é tarde para…⟆

— ⟅Isso é o que eu devia estar dizendo. Ainda não é tarde. Abra a porta, sua máquina-humana desgraçada.⟆

Como era de se esperar, a porta não se abriu. Arta provavelmente concluiu que minha hostilidade era só fachada, que eu não tinha mesmo intenção de explodir tudo e acabar com todos, inclusive conosco.

Aparentemente, os antigos não conheciam bem os bárbaros.

Beep! Beep!

À medida que as máquinas eram destruídas, as sirenes de emergência, que haviam cessado, voltaram a soar. Houve o som de algo se desligando, e todo ruído cessou quando as luzes internas começaram a piscar. Em seguida, uma luz vermelha se acendeu com o acionamento das luzes de emergência.

E então…

Bzzt!

Apesar de eu não saber quem destruiu o quê…

— ⟅O núcleo de mana foi danificado.⟆

— ⟅Módulo de segurança de emergência foi desativado.⟆

No instante em que ouvi esse anúncio, o vento começou a soprar a partir do enorme buraco no centro do local de testes.

O vendaval era sugado para dentro, como se quisesse engolir tudo.

— T-Tem certeza disso, Bjorn?

— Tá tudo certo, continuem destruindo!

No entanto, eu não me dei por satisfeito e mantive firme minha ordem de destruir tudo.

Beep!

Em certo momento, tanto as vozes que tentavam nos impedir quanto o alarde das sirenes de emergência cessaram.

— ⟅O selo do Instrumento Divino foi desfeito.⟆

— ⟅A Energia da Terra foi liberada.⟆

O vento parou de ser sugado para dentro e passou a jorrar para fora do buraco.

A batalha estava encerrada.

Era hora do confronto final.