Capítulo 305: Rainwales (3/4)
Amelia era uma mulher forte, e eu não pensava isso apenas porque ela sabia usar uma aura e possuía várias essências raras e de alto nível. Nunca tinha visto essa mulher com medo de nada. Mas agora, a mesma Amelia estava tremendo na minha frente, mesmo que, não importasse quem fosse aquele pai na cozinha, ela não tivesse mais motivo para temê-lo.
“É um trauma?”
Não era que eu não entendesse. Eu também tinha experimentado algo semelhante no passado. Embora soubesse na minha cabeça que estava seguro, não consegui andar de carro por vários anos, e o cheiro de algo queimando muitas vezes me acordava do sono, fazendo-me perambular pelo prédio inteiro para encontrar a fonte. Não era uma questão de autocontrole, era um instinto gravado no subconsciente.
Smack!
Isso era medo.
— …Você está bem? — Amelia não respondeu à minha pergunta, então segurei seu pulso trêmulo. — Emily.
Ela finalmente voltou a si. — Oh, desculpe. Não ouvi você… O que disse?
— Perguntei se você estava bem.
“É, você não está bem.”
Foi só depois que o barulho na cozinha diminuiu que Amelia falou novamente. — …Como fui patética.
— Hã? Do que você está falando? — Para mim, não vi nada. E mesmo se visse, nunca pensaria que era patético.
Nesse momento, um homem apareceu na cozinha. — Ufa, essas vadias me irritam todos os dias. — Embora ele tivesse uma constituição um pouco robusta, sua altura era em torno de 1,68 m. Contrário ao que eu imaginava, ele parecia extremamente comum.
— Você não está sendo um pouco duro hoje?
— Duro? Essas vadias ingratas não sabem quando devem ser gratas. Chega de falar sobre esses incômodos, vamos beber. — O homem sentou-se à mesa com um dos clientes e começou a beber e conversar.
Amelia o observou por um longo tempo de seu assento no canto, depois disse — Aquele homem era meu pai adotivo.
— Pai adotivo?
— É uma história comum aqui. Existem crianças sem pais que precisam de um lugar para ficar, e há pessoas que querem acolher essas crianças por toda a cidade.
— Por toda a cidade, hein? — Eu já tinha uma sensação de saber o motivo. Não seria por um motivo tão nobre quanto fornecer um lar para crianças que estavam sozinhas. Amelia disse que era uma história comum, e histórias como essas geralmente eram extremamente cínicas.
— É uma espécie de relação simbiótica. As crianças são protegidas até serem grandes o suficiente para trabalhar, e os pais adotivos obtêm mão de obra barata.1
Nesta cidade, o pai adotivo tinha controle total sobre a criança adotada, e esse direito era absoluto, pelo menos até a criança crescer e se tornar adulta. Matar o pai adotivo ou fugir era impossível porque estabeleceria um precedente perigoso. A criança em questão seria chamada de ingrata e seria punida de acordo por outros.
— …Entendi.
— Mas minha irmã e eu estávamos um pouco melhor. Éramos fisicamente saudáveis e resistentes o suficiente para nunca adoecermos. Por isso conseguimos evitar sermos separadas.
— Quantos anos você tinha na época?
— Cinco. Minha irmã era três anos mais velha.
Amelia disse que não era tão ruim no começo. Diferente de quando ela ia para o labirinto com seu pai fraco e ferido, ela era alimentada na hora certa e não dormia no frio. No entanto, ela era obrigada a fazer todo tipo de tarefas, mesmo naquela idade.
— Mas isso também não era tão difícil. Todo mundo vive assim. Eu até me considerava sortuda por ter uma irmã mais velha para confiar. — Naquela época, Amelia tinha um sonho vago de que, uma vez que crescesse e se tornasse adulta, suas vidas finalmente começariam de verdade.
— Mas acho que não deu certo.
— …Tudo por minha causa.
Aconteceu quando Amelia tinha cerca de nove anos. Enquanto ela ajudava na taverna, um bêbado tentou estrangulá-la. O motivo? Porque ela deixou cair sua comida.
— Foi quando minha irmã interveio.
A irmã de Amelia viu o que estava acontecendo enquanto servia os clientes e correu para a cozinha. Então, pegando uma faca, ela se aproximou lentamente e saltou nas costas do bêbado, cortando sua artéria carótida com incrível precisão.
— Eu soube disso mais tarde, mas nenhum dos aventureiros na taverna percebeu a presença da minha irmã até ela já ter pegado a faca e alcançado as costas do desgraçado.
O bêbado não morreu naquele dia. Ele foi tratado com uma poção a tempo de salvar sua vida. No entanto, através daquele incidente, o talento da garota foi exposto ao mundo.
— No dia seguinte, alguém veio do castelo. Eles disseram que encobririam esse incidente se entregássemos minha irmã.
Surpreendentemente, seu pai adotivo rejeitou essa parte da oferta. Ele usou todo o seu dinheiro para cobrir o custo da poção, ofereceu um pedido de desculpas ao bêbado e resolveu o incidente por conta própria.
— Desde aquele dia, minha irmã se tornou uma pastora.
Mas o pai adotivo delas decidiu que, como ela era uma criança talentosa, poderia ser ensinada a ganhar muito mais dinheiro do que trabalhando em uma taverna.
— Minha irmã também era talentosa. Em menos de um ano de se juntar a uma equipe de saqueadores, eles reconheceram suas contribuições e ela começou a receber uma pequena parte do saque.
Quando isso aconteceu, o pai adotivo achou que, como essas crianças compartilhavam o mesmo sangue, Amelia também poderia ter talento.
— Não demorou muito para que eu me tornasse uma pastora e fosse praticamente vendida para uma equipe de saqueadores. Logo, meu talento também foi reconhecido.
Amelia passou rapidamente sobre o que aconteceu depois e seguiu em frente, e eu não me aprofundei muito. Eu não precisava perguntar para saber que tipo de vida as irmãs Rainwales viveram como pastoras. Elas teriam aguentado de tudo, confiando apenas no único sangue que tinham deixado neste mundo.
— De qualquer forma, foi assim que acabamos fazendo parte de uma gangue de telecinéticos e também escravizadas para trabalhar nesta taverna na cidade. — Amelia encerrou a história de sua vida da infância até a adolescência. — E aí, isso saciou sua curiosidade sobre mim agora?
— Sim, isso é suficiente. — Enquanto fazíamos planos, tive uma ideia geral do que aconteceu depois.
As esperanças das irmãs de se tornarem livres como adultas seriam destruídas em cerca de cinco meses, graças a uma tragédia mundana.
Logo passou do meio-dia e o número de pessoas entrando na taverna aumentou lentamente.
— …Com licença. — Uma garota de cerca de doze anos, com longos cabelos vermelhos e encaracolados, se aproximou da nossa mesa. Seu rosto estava levemente machucado, mas ela estava usando seus cabelos bagunçados para cobri-lo. — Gostariam de mais álcool…?
Isso geralmente era o que os trabalhadores diziam se você ficasse muito tempo em um lugar. Significava: ‘Peça mais coisas ou vá embora.’
Amelia não conseguiu olhar nos olhos da jovem. Eu podia entender o porquê.
— Qual é o seu nome? — perguntei.
— …Amelia Rainwales.
Sim, qualquer um ficaria desconfortável ao encarar a si mesmo mais jovem. E como ela sabia o que ia acontecer, também devia estar se sentindo culpada.
— Vamos embora.
Amelia tentou sair, mas eu a impedi. — Só um momento. — Eu finalmente estava cara a cara com a Feto Amelia. Não podia deixar essa oportunidade passar. — Criança, quantos anos você tem?
— Eu… tenho quatorze…
Oh? Se ela tinha quatorze anos há vinte anos…
— Então você tem trinta e quatro — murmurei, e Amelia se virou rapidamente para me encarar. Parecia que ela estava irritada por suas informações pessoais terem sido vazadas.
— Trinta e quatro…? — A jovem Amelia parecia não entender sobre o que estávamos falando, mas ainda mantinha sua expressão amigável diante dos clientes.
— E é assim que você parece quando sorri.
— Como?
— Ah, quis dizer que é bom ver. Você deveria sorrir mais.
— Ah, certo…
Enquanto a Amelia adulta parecia ter acabado de pisar em cocô de cachorro, a jovem Amelia parecia perplexa e não sabia o que fazer. E assim a brincadeira terminou ali.
— Vamos pagar e sair agora.
— Ah, certo!
Eu não achava que sobreviveria às consequências se continuasse, então rapidamente paguei a conta e saí da taverna. Assim que voltamos à pousada, Amelia, que manteve uma expressão azeda o caminho todo, de repente falou, sua voz baixa e dolorida. — Talvez seja como você disse.
— O que você quer dizer?
— Quando você falou com ela, lembrei que tive essa conversa antes.
Ah, a expressão azeda era minha culpa. Definitivamente pensei que ela estava apenas irritada comigo.
— Amelia?
— Emily.
— Ahem, sim, Emily. Quer mais uma bebida? — Tirei as bebidas que havia armazenado no subespaço. Todos os saqueadores carregavam algumas por aí.
— Não. Não há sentido em eu beber, de qualquer forma.
— Por causa das suas essências?
— Sim. — Simplificando, seus atributos de Tolerância a Veneno e Resistência Psicológica eram altas demais para ela ficar bêbada.
— Então por que você bebeu na taverna antes?
— Isso… porque você parece suspeito se não bebe em uma taverna.
— Você nunca perde um momento, não é?
— O quê?
— Não fique tão séria. O que há de tão difícil em beber só uma vez? É solitário beber sozinho.
— Por que você quer beber em primeiro lugar? — Amelia perguntou enquanto eu pegava um copo e despejava a bebida nele.
“Você realmente achou que eu só queria beber?”
— Ainda temos coisas para conversar. — Ouvi sobre sua infância na taverna, mas havia outra coisa que eu queria saber agora que me revelei e tudo mais.
— Coisas para conversar?
— Por que está fingindo não saber? Não é como se tivéssemos segredos agora.
— …Não aja como se fossemos amigos. É irritante.
— Sério? Então me diga isso e eu paro. Quando estávamos fazendo planos no início, você nunca mencionou Nivelles Enze. Ontem também foi a primeira vez que ouvi que Auril Gavis estava lá.
Naquela época, Amelia se recusava a se comunicar comigo. Embora estivéssemos trabalhando juntos, nem sequer considerávamos contar tudo um ao outro e confiar um no outro. Mas, vendo que ela agora estava disposta a me contar sobre seu passado, era seguro dizer que eu havia conquistado alguma confiança.
— Que diferença faria? Você já esta convencido de que nada poderia mudar, de qualquer forma.
Isso era verdade, e essa convicção permanecia inalterada. — Mas ontem você chorou e me disse que era tarde demais para desistir.
— …Eu não chorei.
“Tsk, isso é um detalhe menor.”
— Não chorou? De qualquer forma, como você disse que não desistirá, pretendo ajudá-la.
— Assim eu o ajudarei depois, certo?
— Bem, isso faz parte do motivo.
— Então há outra razão?
Decidi responder honestamente. — Quero que você me deva um favor.
Amelia parecia não entender. — …Por quê?
Havia muitos motivos para listá-los todos para ela. Primeiro, Amelia conhecia minha fraqueza. Precisava dela de alguma forma em dívida comigo para mantê-la em silêncio. Além disso, ela era forte. Com base no tempo que passei com ela até agora, ela parecia ter um bom coração, e seus anos de experiência significava que eu podia confiar nela de certas maneiras.
Para resumir tudo isso, eu disse — Para ser honesto, nosso primeiro encontro não foi ótimo, mas eu gosto de você.
— …O quê?
— Ah, não leve a mal. Não quero dizer que gosto de você romanticamente.
— Eu… não levei a mal.
— Então fico contente. — Limpei a garganta e continuei — De qualquer forma, agora sei que tipo de pessoa você é. Se eu fizer você me dever um favor, você definitivamente o retribuirá. Então, se puder, também quero salvar sua irmã. Já que você concederá qualquer favor que eu pedir se fizer isso.
— F-Favores? — Amelia deu um passo para trás, me olhando com desconfiança. — Que tipo de favor você está planejando me pedir?
“Credo, eu não vou te comer. Isso só vai levar a mal-entendidos.”
Para cada passo que ela dava para trás, eu dava um passo mais perto. — Amelia Rainwales. — Originalmente, não planejava revelar meus desejos tão cedo, mas pelo menos deveria poder marcar território. — Se eu conseguir salvar sua irmã e cuidar dos obstáculos logísticos quando voltarmos ao nosso tempo…
— …Sim?
— Então junte-se ao meu clã.
“Claro, qualquer boa missão tem que ter uma recompensa.”
- Basicamente um tipo de escravidão, a Lei do ventre livre no Brasil de 1871 também era assim, a criança era escrava até atingir a maioridade.[↩]
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