O neon barato pisca de forma incessante na viela suja na Favela RedRock, marcas de sangue brilham no chão sendo iluminadas pela luz artificial produzida pelo LED no teto do andar formando um rastro fresco. O cheiro de metal permeia o ar, não das máquinas precárias nas casas amontoadas umas sobre as outras, mas do sangue quente no asfalto. Julio segue correndo, inabalável.

     Julio Olmeca e sua família possuem um histórico complicado. O pai de Julio e Raúl foi um conhecido cafetão no bairro onde vivem, conheceu a mãe deles no meio dos negócios e o resto é história. Não demorou muito até colocarem uma bala na cabeça do pai e outro figurão assumir os negócios. Julio viu tudo de perto e isso marcou ele. Não foi nada pessoal, é assim que a cidade funciona. Alguém sempre está pelas sombras querendo tomar o seu lugar. No fim, Javier Olmeca foi um ninguém que deixou dois filhos e esposa e um tremendo nada para trás.

     NADA.

     A chuva começa a cair para abençoar a noite. Quando pequeno, Javier sempre contava para Julio e Raúl como o Deus da Chuva sempre abençoou a família deles. É uma tradição antiga dos Olmeca e seus familiares cultuarem a chuva. Ela vem para limpar a alma ou encerrar ciclos. Abrir espaço para novos tempos e momentos, como um sabor de vento. Assim como no dia que Javier foi assassinado, a chuva começa a cair como uma torrente do céu, dificultando a visão do rastro de sangue e expondo ainda mais o cheiro.

     Raúl decidiu seguir um caminho diferente do pai, começou a traficar por conta própria no início da adolescência. Julio sempre alertou para ele que o tráfico chama atenção demais, que não é caminho para trilhar. Só que como muda a visão de alguém que quer machucar o sistema enquanto faz dinheiro fácil? Não demorou muito para Raúl se envolver com uma facção e andar pelas ruas exibindo símbolos e armas como sinal de força. Força… algo que não teve para proteger o próprio pai.

     A guerra de gangues pela cidade englobou todas as facções. Raúl não ficou de fora e foi raptado pelos rivais. Talvez já seja tarde demais, mas Julio não vai desistir. Ele, acompanhado de Sheila, dobram cada esquina e cortam os becos como jatos, agarrados a uma esperança mínima.

       — Essa merda de chuva não tá ajudando — reclama Sheila da Costa, a mais nova famosa do submundo de Copa City.

     Julio segue em silêncio. Na verdade, ele nem consegue ouvir o que a amada diz, o choro dos céus entra em sua mente e o faz lembrar de novo e de novo da cena do pai morto na frente dele. A mãe e Raúl chorando em cima de um corpo sem vida que nada deixou para eles.

     Eles sobem a última escadaria e param. Sheila não acredita no que está vendo, ela se vira para ver a reação de Julio, mas… nada. Apenas um olhar vazio que não para de encarar aquela cena. O que um dia foi Raúl Olmeca, agora não passa de um corpo com um furo no rosto, tão grande e humilhante. Feito para deixar um recado claro para todos os companheiros de tráfico de Raúl. Mensagem vazia para os familiares, nada além de dor.

    — Vamos embora — Sheila diz com a voz fraca, colocando a mão no ombro de Julio.

      — Não — começa o homem. — Minha mãe… ela vai querer ver o corpo.

     A chuva molha os olhos dele, mas ele não chora.  A cidade leva mais um. Ele jura para si mesmo que nunca mais vai deixar isso acontecer.

     Dois anos depois da morte de Raúl, o nome do casal Sheila da Costa e Julio Olmeca já chama atenção no submundo. Algumas pessoas até cotam eles como lendas, mas ambos sabem que ainda tem que comer muito arroz com feijão até chegar nesse patamar e, sinceramente? Estão longe.

     Sheila marcou de se encontrar com Julio no Kioske. Chegou uma nova oportunidade de trampo para eles.

     Diferente de outros tempos, as pessoas agora cumprimentam ele quando entra pela porta do bar. É bom ser reconhecido como parte deles. Mas, algumas coisas nunca mudam, que no caso é a sensação de estar naquele lugar. A música alta do funk eletrônico estremece cada parte do corpo dele, as pessoas amontoadas dançando, transando ou fazendo negócios ilícitos… é, ele tá em casa. Julio dá uma pequena risada enquanto caminha pelo bar que movimenta o submundo de Copa City. Os chão roxo-azulado é um charme, ele até se sente bem em caminhar por ele.

     Ele encosta no bar e Carlos Alberto se aproxima dele com um sorriso no rosto. O rapaz, que ainda é uma  criança, exibe seus cabelos longos e pretos com orgulho. Um verdadeiro glow-up no visual.

     — E aí, qual é a boa? — pergunta Carlos Alberto para Julio. — Aliás, amei que alisou o cabelo.

     — Tô testando um visual novo. ‘Cê viu a Sheila por aí?

     — No camarote do Queen. Tão te esperando.

     — Valeu.

     Julio começa a andar com passos apressados, durante o caminho vai desviando de uma infinidade de pessoas que estão no Kioske. Ah, o ar abafado desse lugar que reúne toda a escória da cidade. Demônios, monstros, falsos profetas, patrocinadores, promessas da indústria, manos, putas, brancos, igrejas, religiões, inclusões forçadas e bondade. De tudo um pouco para quem ama.

     Algumas garotas não resistem ao ver Julio e acenam para ele. O convite é claro. A recusa é mais explícita ainda. Apenas segue e começa a subir para o andar reservado do lugar. Alguns seguranças olham para o rosto dele e nada fazem para impedi-lo, já parte desse ecossistema. Se aproximando da cabine de Queen, é possível ouvir uma conversa.

     — Não, eu vou querer mais do que vinte por cento — A voz é abafada, porém dá para reconhecer que vem de Sheila. — Eu negocio minha parte por mim mesma.

     — Justo.

     É a voz de Queen.

     Julio bate duas vezes na porta e então entra. Queen mantém a postura dele enquanto Sheila dá um leve sorriso de canto de boca. Julio mantém o contato visual com o figurão, que estreita o olhar para o homem. A desconfiança é forte. Como se Julio pudesse representar qualquer ameaça para ele.

     Queen fez a a fama dele como membro de facção antes de todo o esquema dele ruir e só ele sobreviver. Estranho. O rumor é que o brutamontes de pele negra vendeu todos os seus colegas para formar um novo grupo, o atual, e se tornar um figurão da cidade. Ninguém sabe se é verdade, mas teve o efeito desejado. Geral morre de medo dele.

     — E aí, qual é o trampo? — indaga Julio.

     — Tua namoradinha vai explicar no caminho. — Seco e direto. Queen faz um gesto e a porta do camarote dele, sinalizando para os dois saírem.

     Sheila se levanta e começa a sair. Julio a acompanha.

     Do lado de fora do Kioske, Julio acende um cigarro.

     — E aí, o que vamos fazer?

     — Vamos sumir com uma facção — Sheila começa, fria e resoluta. — Nós vamos vingar o seu irmão e ganhar uma grana por isso. É o dia de colocarmos de vez nossos nomes na cidade.

     — O quê? — Julio perde as palavras por um segundo. — Por ele ou pelo dinheiro?

     Sheila apenas sorri para o amado.

     Foi nesse momento em que o caminho dos dois começou a se fragmentar. Julio aceitou participar do massacre que foi marcado. Mas isso veio com um custo. A desconfiança.

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