Índice de Capítulo

    Night voltou para casa com seu estômago embrulhado e sua alma em ruínas.

    Cada passo ecoava como uma acusação silenciosa, o som seco de seus sapatos contra a madeira tornava-se insuportável aos próprios ouvidos.

    Ela carregava um segredo.

    Ao atravessar a sala, seus olhos repousaram em Kevyn. Ele dormia tranquilo no sofá, respirando em paz. Algo que ela não queria destruir.

    Seu rosto sereno, como se o mundo lá fora não existisse. Por um momento, ela parou. Ficou ali, em pé, apenas olhando-o. Lentamente, se ajoelhou ao lado dele e lacrimejou.

    Estendeu a mão, as pontas trêmulas, tentando tocar seu rosto. Mas, no último instante… recuou. Seus dedos pararam no ar, congelados. Ela não conseguia. Não podia.

    Era como se estivesse suja demais para alcançá-lo.

    Com um suspiro, desistiu. Sentou-se no chão, encostando as costas na borda do sofá, afundada em um peso que não era seu.

    Ela abraçou os próprios joelhos e ficou ali, encarando o vazio à frente, mas era para dentro de si que olhava, onde as imagens se repetiam sem cessar.

    Não chorou, apenas ficou.

    Horas passaram. A escuridão, incômodo escuro. Ela continuou imóvel, como parte de um espaço não refletido pela luz.

    Um espectro silenciado ao lado do homem que amava, sem conseguir tocá-lo, sem conseguir se perdoar.

    Quando Kevyn enfim despertou, ela não disse nada. Apenas o seguiu até o quarto, como uma sombra, como alguém que havia deixado uma parte mais sensível para trás.

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    Pela manhã, os primeiros feixes de luz atravessavam as frestas da janela, tingindo o quarto com um brilho suave, mas ainda permanecendo frio. Kevyn despertou lentamente, os olhos ainda pesados pelo sono.

    Quando os abriu por completo, viu a imagem de Night.

    Ela estava em pé, de lado para ele, trocando de roupa em silêncio. Movia-se com lentidão, como se cada gesto exigisse força, um esforço desproporcional.

    Seus ombros curvados e seu semblante sendo refletido pelo espelho ao lado, que carregava uma névoa opaca, apática.

    Kevyn ficou ali deitado, observando sem dizer uma palavra. Algo nela parecia fora do lugar, quebrado. Não havia expressão em seu rosto, apenas um silêncio pesado.

    Foi então que Night o percebeu.

    Seus olhos se encontraram com os dele e, por um breve momento, o tempo pareceu parar. O contato visual direto, mas distante, como se ela visse e, ao mesmo tempo, não estivesse ali.

    Não havia sorriso. Ao menos, surpresa? Apenas uma silenciosa conexão entre seus dois mundos que, por alguma razão, pareciam mais distantes do que nunca naquele momento.

    — Você é linda. — Ele sorriu.

    — Você quem é. — Respondeu-o mantendo uma face serena.

    — Por que está se trocando? — Desviou o olhar.

    — Hoje vai ser um bom dia, tenho algumas coisas planejadas, então troque de roupa. — Após terminar de se trocar, ela caminhou até a cama e se sentou, esperando-o.

    Envergonhado, o príncipe se levantou devagar, com o peso da insegurança colado aos ombros. Caminhou até o centro do quarto, os passos hesitantes, com medo de julgamento.

    Ali, com as costas viradas para ela, tentou tirar a camisa cuidadosamente, quase com um desespero silencioso, buscando esconder os cortes que marcavam sua pele.

    Mas foi em vão.

    Antes mesmo que pudesse terminar o gesto, ela estava ali, surgindo atrás dele em um piscar de olhos. Com suavidade, segurou a barra da camisa e o ajudou a puxá-la sobre a cabeça.

    Kevyn então congelou. O toque dela era leve, mas queimou como se propositalmente tocasse os cortes para senti-los.

    Sem saber o que fazer, virou-se lentamente para encará-la. Os olhos dela estavam fixos, calmos e intensos. Não havia julgamento, mas isso o deixava ainda mais exposto.

    Envergonhado, sua voz falhou por um instante, tentando dizer algo. Mas o nervosismo apertou sua garganta:

    — Eu… não queria que visse isso. — Deplorável, ele engoliu seco, tentando esconder seu corpo.

    Ela manteve seriedade; afinal, ela estava preocupada e isso não mudaria. — De onde vêm esses cortes?

    — O-os cortes são da ma-manipulação de fogo!

    Agarrando os pulsos dele, ela pensou: “Quando eu peguei seus braços ontem, eu já tinha percebido, mas não vem ao caso.” Perguntou: — E por que não se curou?

    — Eu… não consigo.

    — Então como curou Zeo?

    Desviou o olhar. — Foi só por um momento…

    A demônio se aproximou em silêncio, então desviou seus olhos por um único instante. Logo retomou o que ele havia tentado esconder. Seus dedos tocaram-no e, aos poucos, ela terminou de despi-lo.

    Não havia pressa em seu toque, ao menos violência. A cada peça removida, ela passava levemente os dedos sobre os cortes. E, com cada toque, as feridas foram curadas. Era uma necessidade sua.

    A garota, ironicamente, usou um dom que era dele, curando-o. Por mais disso, a abjuração era exaustiva demais. A dor, aos poucos, foi tratada, como se nunca estivesse ali.

    E assim que terminou, ela pegou uma camisa limpa e vestiu-o, com a mesma calma com que se costura uma alma que foi machucada. Mas ainda assim, havia uma aura densa no local.

    E então, suavemente, ela o beijou.

    Curto, sem pressa. No meio daquele gesto singelo, algo brilhou, uma pequena cura, não só da carne, mas da alma? Cura que se abstrai, talvez nem ele soubesse que precisava.

    Com o gesto ainda pairando, ela o guiou. Corpo a corpo, até levá-lo para fora. Não o empurrou, apenas o conduziu.

    — Vamos lá, vamos andar um pouco. — A jovem soltou-o e caminhou na frente.

    Percebendo uma mudança, Kevyn encarou o chão e pensou: “Ela está mais direta, algo a afetou? Será que fiz algo? Se vamos sair, provavelmente vamos conversar.” Suspirou e seguiu-a.

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    — Érebo, se eu reencarnar, acha que vou ser tão forte quanto já sou? — Uma mulher de cabelo branco sorriu.

    Pétalas flutuantes pelo ar, fragmentos de uma lembrança… leve. Resignadas a ninguém e silenciosas ao se mover.

    Elas caíam como uma chuva gentil sob o céu pintado de rosa, onde o horizonte parecia suspirar em cores tão esbranquiçadas, como se o próprio mundo soubesse que ali nascia um adeus.

    No centro daquele instante efêmero, duas figuras permaneciam. Uma delas tremia, não de frio, mas pela sua tristeza que, cada vez mais, estava enraizada.

    As lágrimas escorriam incontroláveis, numa sina intensa que sequer a permitia formar frases concretas. Seus tênues soluços engolidos pelo quão forte era… a despedida doía demais. E… por mais disso, ela mantinha um sorriso resplandecente.

    O outro, firme diante da tempestade, era um homem de olhos azuis tão claros quanto um céu prestes a desabar. Seu cabelo voava com o vento, tão suave quanto um momento parado.

    Os chifres draconianos se curvavam com elegância, vestígios de uma natureza que jamais poderia ser negada.

    Apesar da aparência poderosa, seu rosto era tão delicado quanto o da mulher em sua frente. E, com um gesto, uma ternura que quebrava qualquer ideia de força.

    Com mãos firmes, ele tocou o rosto da outra pessoa e, sem dizer uma palavra, enxugou-lhe as lágrimas, não como quem consola, mas como quem guarda uma lembrança preciosa antes de deixá-la para trás.

    Havia compreensão em seus olhos. E aceitação.

    Ele inclinou a cabeça em um gesto tão complacente quanto qualquer um. Não era apenas com palavras que se traçava um destino, mas algo que o superava e separava.

    Como quem entende que algumas partidas são necessárias, mesmo quando o coração implora para que fiquem.

    Naquele instante, o céu chorou. E o adeus, sussurrando entre as pétalas e lágrimas, ficou suspenso no tempo. Não como um fim, mas algo que o espaço precisaria lembrar, buscar e trazer a si, sua própria vontade.

    Nada se encaixa, mas tudo é retificado. O homem assentiu com sua cabeça e disse:

    — Kairós… será que vamos nos reencontrar?

    — Hehe, você se importa com isso? Está chovendo sobre nós, as pétalas do nosso amor, declaro isso uma promessa, então sim, nós vamos estar juntos! — Ela ergueu-se em meio às nuvens em que estava sentada e apontou para ele.

    — Eu nunca serei capaz de te esquecer…

    O olhar dicotômico da mulher brilhou, seu sorriso tão tênue caiu em pesar. E, pela segunda vez, não em vida, mas em morte, lágrimas escorreram por seu rosto. — Não seja fraco, Érebo, Kuro pagará por tudo já que escolhi em quem reencarnar.

    — O quê? A Etubezaab te deu essa liberdade?

    — A Rublia me deu essa liberdade.

    — E… em quem?

    Torto sorriso surgiu no rosto da mulher, que, corada, respondeu: — No meu neto.

    Érebo arregalou seus olhos. Incrédulo, coçou seu braço enquanto dizia: — Quê?! Eu… eu também fiz isso…

    — Ah… duas marcas? Isso parece curioso, hehehehe!!!!

    ❍ ≫ ──── ≪ • ◦ ❍ ◦ • ≫ ──── ≪ ❍

    — Seus olhos são lindos…

    Sentados em uma mesa de uma sorveteria, Kevyn e Night trocavam olhares cansados, mas não era físico.

    A garota tomava seu milkshake de morango enquanto seu cabelo branco cintilante voava ao vento. Pelo outro lado, a franja que tapava o rosto do príncipe oscilava entre esconder ou não seu olho azul.

    — Desculpa, eu nasci incompleta.

    — Nunca pedi para você ser perfeita, que sejamos incompletos juntos, não acha?

    Ela ergueu uma de suas sobrancelhas e disse: — Pensei que fosse falar que somos completos juntos, ou algo assim.

    — Não somos tons de branco ou preto, todos somos cinzas, minha querida.

    Ser chamada por aquele apelido a fez corar, mas, sem recuar, ela retrucou: — Eu sou uma demônio com manipulação de luz, isso é o que você chama de cinza?

    — Um rei que reina sem ver é o mesmo que não enxerga sua própria mentira. As peças são usadas, mas como jogar sem poder ver a peça que está mexendo?

    — O que isso tem a ver com a minha pergunta? — Franziu a testa.

    — Um rei sem sua rainha fica totalmente desprotegido, o mesmo acontece no contrário. Afinal, quem reina sem ter sua metade é obrigado a procurá-la ou cego será. — Inclinou a cabeça.

    Curiosa, ela achou que havia entendido e respondeu: — Então está me falando que estamos completos juntos?

    — Não.

    Quebra de expectativa, talvez faltava alguma peça? Dessa vez, foi o príncipe que bebeu de seu milkshake.

    Ele cerrou seus olhos de maneira letal, sua beleza infinita congelou e seu cabelo, virando branco, revelou seu verdadeiro ser.

    — Sem você, eu não consigo continuar, e sem mim, você não consegue viver. Somos uma metade, mas ainda incompletos. Você é a luz, eu sou a escuridão.

    — Está usando conceitos abstratos de novo. Quantos argumentos vai usar? Daqui a pouco está falando da morte e da vida.

    Um leve sorriso se formou nos lábios do garoto, que estendeu seu braço e guiou seu milkshake até a boca dela. Nervosa, ela encarou aquilo com certa timidez, por mais de toda sua postura.

    — Vá, beba do meu copo. — Ele continuou com seus olhos cerrados. Aquilo era um deleite para ela, era uma chama de luxúria, a beleza banhada nele a pressionava cada vez.

    Night obedeceu e tomou.

    — Está frio, não é? Assim como você, mas eu não me importo, quero que você pense. Vou te dar espaço, te dar tempo. Afinal, eu prometi não só ser um bom marido, como o melhor. Se você estiver bem, eu aceitarei; se não estiver sendo o suficiente, melhorarei. Então me diga, Night, quem é você?

    Após soltar o canudo da sobremesa de seus lábios, ela corou mais uma vez. “Fria, eu? Tempo? Do que você está falando?”, ela pensou para si mesma, tentando raciocinar.

    “Você está esquisito, mas eu preciso responder…”, ela então ofereceu o seu milkshake. As vozes diziam coisas inimagináveis, luxúria que a contaminou. Mas, ao vê-lo tocando os lábios para beber de sua bebida, até a ponta de suas orelhas ficaram vermelhas. Assim, respondeu:

    — Eu sou sua rainha. Eu sou a sua morte. Eu sou a sua estrela. Eu sou a sua lâmina. Luz da escuridão. Morte da vida. Mas, indiretamente, sou sua metade, não um reflexo.

    Ele soltou a sobremesa e disse: — Você esqueceu do principal. Eu sou a lua, você o sol. No entanto, eu só posso ser visto se você refletir sua luz em mim.

    Finalmente entendendo, a garota começou a rir.

    — Hahahahah!!!! Essa foi a cantada mais longa que eu já vi! Hahaahahahaha!

    Em meio às risadas dela, Kevyn roubou um beijo de seus lábios e encarou seus olhos com amor cerrado. Pupilas de coração montadas como máscaras quebradas, mostrando que amava-a mesmo machucando-o com a sua luz.

    Sem perceber, Night foi levada. O gosto de cappuccino em sua boca ainda era presente, forte o suficiente para quebrar o morango, mas, por algum motivo, quando vinha dele, não era luxúria, não era carne.

    De um jeito único de inocência, era como o ponteiro dos segundos. Ele não sentia luxúria, o príncipe não tinha impaciência e, por isso, o gesto do seu amor era tão tênue. Carregado de amor, saudade e… carinho.

    Ele logo separou o beijo e voltou a se sentar normalmente. Surpresa, a garota desviou o olhar envergonhada. Ainda era desconfortável tocar nele, aquilo agravou sua cabeça como um prego, martelando sua consciência, martelando e martelando.

    — Quer ou não me quer? — disse Kevyn.

    Choque, tensão. A garota olhou para ele. O rosto do príncipe tinha um sutil sorriso, como se a alma dele risse, gargalhasse, mas seu rosto mantinha a leveza.

    Sem responder, os olhos da demônio oscilaram, não conseguindo focar nas pupilas de coração de tão desesperada. Aquela sensação era estonteante, seu corpo estremeceu, não era uma maldição.

    O que havia no príncipe era tão brilhante que parecia cegar, sempre foi assim… Night nunca conseguiu reagir. A natureza dele trazia uma frase já dita, comandada como um vocal que as vozes possuíam, algo muito além de seu controle…

    “O dragão e o demônio. Ambos são cascas vazias, sempre próximas, sempre se parasitando… um ao outro.”

    Frase dita naquele livro tão antigo de um rei parasitado. As coisas não fizeram mais sentido após as vozes gritarem tanto, apenas trouxeram uma dúvida mais cruel, algo impossível de conter…

    A verdade sobre os dois era vazia? Eram cascas vazias? Tudo era um verdadeiro conceito desconhecido.

    Em um piscar, as pupilas de coração sumiram dos olhos do príncipe e, finalmente podendo se acalmar, Night respondeu com tanta luxúria:

    — Quero… mas e você? Por que decidiu ficar comigo se podem existir pessoas bem melhores?

    Perguntas tão sem sentido para o garoto, tão fáceis de responder. Todas as opções eram eliminadas, afinal, como em um xadrez, basta eliminar o rei, então que quebre a verdade.

    Torne-a uma mentira. Logo após, reverta-a e torne verdade absoluta.

    — Porque você é uma tola. Após tanto tempo, não consegue ver que é tola, não consegue ver que é boa. E por isso, será a minha tola que tanto amo. — Sorriu.

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    A noite chegou e, ajudando seu príncipe a pôr suas roupas, Night pensou consigo mesma: “Então aquilo foi uma conversa intelectual? Foi minha primeira, mas você não pode me assediar, seu bobo.” Terminou de arrumá-lo e então se levantou para olhá-lo em seus olhos.

    — Por que precisa ir matar? Já não temos dinheiro o suficiente? — reclamou.

    — Não é sobre dinheiro, hehe. — Ele riu e acariciou a cabeça dela.

    Em silêncio, ela ficou e aceitou o carinho, mas, de repente, ele a abraçou e disse: “Obrigado”. Logo, soltou-a e saiu do quarto.

    Algo estava martelando na cabeça da demônio e querendo devorá-lo. Ela franziu a testa e bateu o pé com raiva. “Maldito! Maldito! Para! Para de fazer essas brincadeiras gostosas!”.

    Fora de casa, Kevyn aguardou pela sua princesa e, brevemente, ela veio. Assim, eles partiram para a cidade e caminharam até certo ponto, em meio às pessoas. Ao entrarem em um beco, Night veio à sua forma de anel e, ali, a porta azul-esverdeada já estava esperando por ele.

    Ao atravessá-la, passando pelo piso de madeira e guiando seus olhos através do local de tom tão amarelado, ao fundo, não estava só Jeremy.

    De terno negro, um homem alto, um humano asiático, tão fúnebre, com um sorriso sutil em seu rosto, posturado, guiou seus lábios até falar palavras tão tênues. Toque de leveza e bondade, apresentou-se:

    — Prazer, Black Room. Serei seu parceiro, me chame de Yakuza.

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