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    Após aquela resposta ¹inepta, o homem ficou em completo silêncio. As palavras simplesmente sumiram de seus lábios, como se tivessem evaporado com o vento. “Quê?!”, pensou, franzindo levemente a testa, confuso.

    Logo, levou a lata de refrigerante à boca e tomou um gole lento. Uma pausa improvisada para reorganizar seus pensamentos.

    As luzes da praça começaram a brilhar com mais intensidade à medida que o céu escurecia. O vai e vem de pessoas tornava-se um plano de fundo distante, abafado pelo som das risadas soltas. Naquele instante, ele sentiu o peso do momento ir embora.

    Repousando a lata, já úmida, em seu joelho, coçou a cabeça com certa hesitação, como se procurasse sentido em algo sem um de verdade. Ele não sabia por onde começar. Por fim, soltou, com a voz mais relaxada que o normal:

    — Já sei, por que você não vai pela porta da frente e eu vou pelos fundos? Aí nós matamos todos devagar. Você poderia até se disfarçar entre eles!

    Tentando entender como se abre aquela embalagem de metal, Kevyn estava pretendendo usar métodos nada convencionais. Mas, ao ouvi-lo, respondeu com um sorriso no rosto:

    — Não acho que dê para me misturar com humanos, sinceramente. É mais fácil você ir pela porta da frente.

    Michael tomou outro gole. — Ainda assim, eles não me conhecem, provavelmente vai dar errado.

    O garoto suspirou e, então, finalmente percebeu o que tinha que fazer. — Hmmm… fala que você tá precisando de um emprego, deve dar certo. — Ele, então, puxou a alavanca para abrir a latinha, e ela estourou na sua cara.

    Por reflexo, Kevyn tentou manipular a água para não ser atingido pelo líquido, mas não era água. Vendo-o todo encharcado de refrigerante, Yakuza levemente sorriu e disse:

    — Falei que tinha balançado, tá parecendo minha filha, hehehe!

    — Arh… hm… — o jovem encarou a latinha sem nenhuma reação, apenas triste por suas roupas. — Hm… ohwn… pera… FILHA?!

    — Apesar das aparências, eu sou um pai bem jovem, hehehe.

    Assustado, Black olhou para ele, ainda perplexo pela afirmação. Sem muito o que fazer, perguntou: — E quantos anos você tem?

    — Tenho 10 anos.

    — Sua filha?

    — Tem dois anos.

    Após alguns momentos processando, Kevyn arregalou seus olhos e… inclinou a cabeça. “Quê?… Como ele é pai? Mas…”, confuso, cruzou os braços, franziu a testa e disse:

    — Pera, você é pai desde os oito anos, então… hmmm… como você virou pai? Você não era adulto!!!

    Sem entender, Yakuza tomou outro gole e respondeu com outra pergunta: — Você não sabe como os bebês são gerados?

    — Gerados? — Sua voz saiu meio baixa.

    — Tipo…

    Naquele momento, Michael não sabia o que pensar. A figura à sua frente, alguém que deveria carregar a fama de um assassino impiedoso e cruel, parecia desconcertantemente… humana.

    Mesmo depois de ouvir cada palavra, até os dizeres mais frios, os relatos mais sombrios e desumanos, algo não se encaixava. Havia um vazio entre o que fora dito e o que era apresentado.

    “Tem algo errado…”, ele pensou, o olhar preso nos gestos quase ingênuos da pessoa diante dele, como se realmente fosse uma criança.

    Como alguém conhecido como Black Room podia soar tão inocente? Aquela expressão… confusa, até gentil em certos momentos, não se encaixava na imagem brutal do nome que carregava. Michael franziu levemente a testa. “Ele não sabe? Está fingindo? Isso é um jogo perverso?! Não, não pode…”

    A dúvida pesando em seus ombros. O silêncio entre os dois tornou-se mais espesso a cada segundo. Michael sentiu que precisava agir, precisava mostrar a verdade dali, arrancar a máscara, se é que havia alguma…

    Mas, antes, ele teria que descobrir: Estava lidando com um monstro fingindo de criança… ou com uma criança que foi ensinada a agir como um monstro?

    — Venha comigo! — O homem se levantou e caminhou para fora da praça.

    — Hm? — O jovem se levantou e o acompanhou.

    ❍ ≫ ──── ≪ • ◦ ❍ ◦ • ≫ ──── ≪ ❍

    Após alguns instantes de caminhada pelas ruas cada vez mais estreitas, Yakuza os guiou até um beco escondido, onde a cidade ganhava outra face, uma quase esquecida pelo resto das pessoas.

    Lanternas de papel presas por fios trançados. Placas com ideogramas brilhavam em tons de vermelho, azul e amarelo, e o cheiro marcante de óleo, especiarias e caldos quentes tomava o ar.

    O beco fervia com vida: quitandas vendendo frutas exóticas, lojinhas apertadas abarrotadas de bugigangas, e pequenos comércios que pareciam pertencer a outra época. (Esses que também podiam estar devendo àquela máfia Alcapone.)

    A mistura de vozes, música baixa e o som chiando criava uma melodia urbana, caótica e aconchegante ao mesmo tempo.

    Sem trocar muitas palavras, eles cruzaram o beco até se depararem com uma modesta casa de lamen. A fachada, iluminada por uma lanterna vermelha envelhecida. O aroma que escapava entre as frestas da porta os envolveu com um convite.

    Logo ao entrarem, foram recebidos pelo som suave de um rádio antigo tocando uma música tradicional japonesa.

    Um velho homem, mas ainda com uma postura reta, mexia lentamente uma panela com uma concha enorme, com seus gestos tênues e precisos.

    Atrás dele, o balcão era esculpido e pintado com pequenos detalhes de flores e dragões em forma bestial, entalhados à mão. Um trabalho bem-feito e claramente antigo, cheio de história.

    Diante do balcão, havia bancos revestidos em um couro tingido de vermelho vívido, o brilho gasto denunciando todos os anos.

    Sem hesitar, Michael foi o primeiro a se sentar, acomodando-se com familiaridade. Seus olhos passearam rapidamente pelo ambiente, reconhecendo cada detalhe com a naturalidade de quem já estivera ali muitas vezes.

    Era um lugar que, mesmo em silêncio, contava uma história singela e hostil.

    — Venha, sente-se! — gritou seu parceiro.

    Um pouco perplexo, Kevyn timidamente se juntou a ele. O velho homem percebeu presenças tão assustadoras e olhou para trás por um momento, podendo ver três almas naquele lugar.

    Ele respirou fundo enquanto seu cabelo e barba grisalhas se mexiam, conforme girava o macarrão dentro de sua enorme panela.

    Vendo o cardápio, o garoto pegou-se analisando todas as opções. No outro instante, botou-o de volta. Yakuza percebeu que ele escolheu e, então, disse:

    — O de sempre, mestre, um lamen extra-grande apimentado e um… — olhou para Black.

    — A-ah… um extra-grande de frango! — A presença do homem mais velho era pesada demais para suportar e estava fazendo-o ficar tenso.

    Com uma rapidez não humana, o velho homem serviu os dois jovens. Seus movimentos tão ágeis e silenciosos quanto os de um mestre milenar. Em questão de milésimos, tigelas fumegantes de lamen foram postas à frente de Kevyn e Michael. Com o macarrão perfeitamente disposto, o caldo dourado borbulhava suavemente, liberando um aroma envolvente de pimenta, frango e gengibre.

    O príncipe, pego de surpresa, encarou o prato com um brilho silencioso. Seus olhos percorreram cada detalhe da apresentação: os ovos cortados com precisão, o frango suculento, a cebolinha disposta em equilíbrio.

    Era como se um chef experiente analisasse a obra de outro mestre. Mas, logo, seu olhar se desviou para o velho.

    Por um instante, seus olhos encontraram-se com os do homem; ou melhor, o único que lhe restava. O mesmo lado do rosto marcado por uma cicatriz longa, que cortava a testa até a mandíbula.

    A face de uma autoridade ancestral. Ele não era apenas um cozinheiro; era alguém que viveu guerras, perdas e conquistas, alguém que já experimentou a fome e já encarou a morte.

    Dentro da loja, um detalhe inusitado: corvos de estimação empoleiravam-se em pequenas estruturas de madeira presas às paredes, observando tudo em silêncio absoluto, como sentinelas sombrias.

    Era um cenário quase mitológico: um homem que possuía não só habilidade fora do comum, mas também o quádruplo do tamanho de um ser humano comum. Seus ombros largos e mãos desproporcionais mostravam o porquê a panela era enorme, o porquê a concha era tão grande. Mesmo assim, manipulava tudo com delicadeza surpreendente.

    Yakuza, já acostumado com o espetáculo, misturou calmamente seu macarrão com os hashis, mergulhando os fios no caldo denso. Assim, levou a primeira colherada à boca, fechou os olhos por um segundo e soltou um leve grunhido de aprovação:

    — Hmw! Perfeito como sempre, Óðinn!

    O velho homem assentiu com a cabeça e respondeu:

    — Nada, Michael, espero que seu amigo possa apreciar também. — Sua voz, tão grossa quanto uma montanha, o homem sorriu com orgulho e aceitação.

    O príncipe se encorajou com aquilo e pegou os hashis ali em cima para, então, se deliciar daquela singela refeição.

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    ¹Inepto — Desprovido de sentido, absurdo ou confuso.

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