Capítulo 34: Paz?
A luz do amanhecer começava a tingir o céu de tons alaranjados e dourados enquanto Lilith observava os dois pedaços do minotauro caídos diante dela. Seu corpo parecia relaxar após a intensa batalha. Ela exalou profundamente, parando o fluxo de éter que mantinha a lâmina da katana. A arma desapareceu, deixando apenas a tsuka solitária em sua mão. Quase ao mesmo tempo, os chifres negros se retraíram, dissolvendo-se como fumaça, e a aura roxa que a envolvia desvaneceu-se lentamente, como se nunca estivesse ali.
A armadura que cobria seu braço direito também sofreu uma transformação sutil, mudando para uma aparência discreta e prática, semelhante a uma peça de vestimenta negra adaptada para combate. Era como se o poder se ajustasse para não chamar atenção desnecessária. Lilith suspirou, mas logo sentiu uma dor aguda percorrer seu corpo. Um fio quente escorreu de seu nariz — sangue. Ela colocou dois dedos para contê-lo e franziu a testa.
Sem hesitar, ativou sua habilidade de cura. Um leve brilho verde atravessou sua pele enquanto seus ferimentos internos se fechavam. Em instantes, o sangramento cessou, e ela limpou o rosto com a mão, sentindo-se inteira novamente.
Foi então que Fenrir emergiu das sombras, sua presença imponente destacando-se contra o brilho do amanhecer. Seus olhos pareciam mais profundos, quase reverentes. Ele parou a alguns passos dela e, pela primeira vez, abaixou a cabeça em um gesto de respeito.
— Filha do grande Rei Demônio — disse ele, sua voz grave ressoando com um tom solene. — As linhas dos deuses mudaram.
Lilith ergueu uma sobrancelha, intrigada. Fenrir prosseguiu, suas palavras carregadas de significado:
— O fio laranja… ele não aparece mais. O fio azul, aquele que te conecta ao Deus Azulado, agora está entrelaçado com raios roxos, como se tivesse absorvido parte da sua nova essência. O fio branco, no entanto, está falhando, perdendo sua força. O fio vermelho permanece, mas sua aura está diferente. Agora… — ele fez uma pausa, seu olhar fixo no dela. — Sua aura é completamente roxa.
Lilith visualizou a explicação na mente, como se Fenrir estivesse desenhando-a com palavras. Um cenário imaginário formou-se: uma figura sentada dentro de uma caixa, fios luminosos descendo do teto e conectando-se à sua cabeça. A aura, antes tingida de outras cores, agora pulsava em um tom profundo de roxo. Ela assentiu lentamente, absorvendo a informação.
— Entendi — Lilith respondeu, cruzando os braços. — Mas ainda sinto minha conexão com o Deus Azulado. Não perdi isso — um sorriso raro surgiu em seus lábios. — Isso me deixa feliz.
Foi nesse momento que Félix apareceu ao lado dela, materializando-se subitamente, como se saísse do ar. Seu olhar estava carregado de surpresa ao examinar Lilith.
— Então… foi isso que aconteceu com você? — Félix disse, impressionado. Ele parecia analisar cada detalhe, desde a armadura discreta até a energia palpável que ainda a cercava.
Lilith, sem dizer nada, o abraçou, o movimento tão inesperado quanto o surgimento dele. Félix, a princípio, congelou de surpresa, mas logo relaxou, aceitando o gesto.
— A espera laranja ainda está aqui — ela murmurou enquanto o abraçava.
Félix riu suavemente. — Eu me tornei visível para o mago porque, naquele momento, o mago estava em sua forma espiritual. Ele era um espírito especial deste mundo naquele momento.
Lilith se afastou ligeiramente, encarando-o com uma expressão curiosa. — O que você quer dizer com especial?
— Ele veio da Terra, assim como… assim como você — as palavras dele fizeram os olhos de Lilith se arregalarem. Ela levou a mão ao queixo, pensativa.
— Isso faz sentido agora — Lilith assentiu, relembrando as conversas anteriores com Félix. — Mas as divindades podem vê-lo também?
— Sim, eles conseguem — confirmou Félix. Ele respirou fundo antes de continuar. — Sobre o desaparecimento da Deusa Laranja… foi um pedido da Deusa Branca. Ela não estava satisfeita com o rumo das coisas e ordenou que a Deusa Laranja parasse de intervir em sua vida… tirando eu claro.
Ele fez uma pausa, como se medisse suas próximas palavras.
— O Deus Azulado ficou triste por perder essa conexão, mas também aliviado. Ele está feliz por você ter conquistado sua própria independência na imortalidade, mesmo que isso tenha ocorrido por intervenção da Deusa Branca.
Lilith franziu a testa, tentando digerir as implicações. Félix prosseguiu:
— Eu preciso te dizer uma coisa importante. Agora que você possui um poder primordial, você está diferente. Normalmente, apenas o Rei Demônio e sua irmã acessam esse tipo de energia, que se manifesta em tons de vermelho para ele. No caso da Deusa Branca, é branco. O curioso é que… eles são irmãos.
Lilith estreitou os olhos, absorvendo as palavras. Depois de um longo momento de silêncio, ela assentiu, aceitando a revelação.
Félix mudou de tom, sorrindo levemente. — Por enquanto, as coisas estão calmas. A cidade está segura.
Lilith suspirou, quase decepcionada. — Que pena. Queria lutar mais.
Fenrir e Félix riram, a tensão anterior sendo substituída por uma leveza inesperada. Lilith aproveitou o momento para recuperar sua Hidden Blade do armazenamento espacial e a ajustou em seu pulso. Depois, ela infundiu mana na arma para sua roupa, que rapidamente se regenerou, tornando-se como nova. Com um movimento fluido, guardou novamente a lâmina no espaço de armazenamento.
Fenrir observou enquanto ela organizava seus pertences. — Não preciso mais guardar o demônio — ele fez uma pausa, observando Lilith com um olhar aprovador. — Tudo agora é seu.
Lilith assentiu, transferindo o corpo do demônio para seu próprio armazenamento, juntamente com o machado do minotauro e o próprio corpo do monstro. A luz do sol finalmente banhou o campo de batalha, marcando o fim de mais uma noite turbulenta.
Enquanto o mundo despertava, Lilith olhou para o horizonte com determinação. O novo dia trazia promessas, desafios e, acima de tudo, um destino que agora ela entendia melhor do que nunca.
O sol iluminava os escombros e a destruição enquanto Lilith, Fenrir e Félix — invisível para todos, exceto ela — caminhavam pela cidade devastada. Os portões de Novograd estavam irreconhecíveis, reduzidos a pedaços de metal retorcido e madeira chamuscada. O chão ao redor estava coberto de destroços, e o cheiro de fumaça ainda pairava no ar.
Lilith analisava o cenário com um olhar firme, mas não escondia a frustração. A batalha foi intensa, mas a cidade pagou um preço alto.
— Parece que seguraram o pior — comentou Fenrir, sua voz grave quebrando o silêncio. — Mas… — Ele olhou em volta, farejando o ar como se buscasse algo. — Isso ainda não acabou. Não completamente.
Lilith apenas assentiu, seguindo em frente sem responder. A presença de Félix ao seu lado a confortava, mesmo que ele estivesse em silêncio. Seus passos ecoavam nas ruas quase desertas enquanto avançavam em direção à guilda.
Chegaram à frente do prédio principal. Apesar da destruição ao redor, a estrutura da guilda ainda estava de pé, uma testemunha resiliente ao caos da noite anterior. No entanto, os vidros das janelas estavam quebrados, e marcas de queimaduras cobriam partes da fachada.
Lilith empurrou a porta dupla com determinação, entrando no salão principal. Lá dentro, o ambiente era um misto de caos e tentativa de organização. Mesas e cadeiras estavam quebradas, papéis espalhados pelo chão, e alguns aventureiros feridos descansavam nos cantos, recebendo atendimento. No balcão, no lugar do habitual atendente mais velho, estava um jovem homem, talvez um novato, que parecia mais perdido do que qualquer outra pessoa.
Ela se aproximou, seus passos firmes ecoando no espaço silencioso. O atendente ergueu o olhar para ela, visivelmente nervoso ao perceber sua presença. Fenrir, ao lado dela, exalava uma aura intimidante, como sempre, mas era Lilith quem realmente atraía toda a atenção.
— Preciso falar com o mestre da guilda. Agora — disse Lilith, sua voz cortante como uma lâmina.
O atendente hesitou, quase engasgando ao tentar responder. — O-o mestre está ocupado… Não sei se ele pode… — Ele parou de falar quando sentiu os olhos dela perfurarem os seus, como se o simples ato de recusar fosse uma sentença de morte.
Antes que Lilith precisasse insistir, uma voz grave veio de trás do balcão.
— Lilith? — O mestre da guilda apareceu, parecendo exausto. Sua postura estava curvada, e havia olheiras profundas sob seus olhos. — Está tudo bem. Eu cuido disso.
O atendente deu um passo para trás, aliviado por não precisar lidar com a situação. O mestre acenou para Lilith, indicando que ela o seguisse. Fenrir permaneceu ao lado dela, enquanto Félix, invisível para todos, observava atentamente.
Eles passaram por um corredor que estava parcialmente destruído, com pedaços do teto caídos e marcas de queimadura nas paredes. Finalmente, chegaram à sala do mestre, onde, para a surpresa de Lilith, a elfa que ela havia encontrado anteriormente estava sentada em um canto. Ela parecia mais calma desta vez, mas seus olhos ainda carregavam um misto de curiosidade e cautela ao encontrar os de Lilith.
— Entre, sente-se — disse o mestre, indicando uma das cadeiras diante da mesa. Ele próprio se acomodou na sua cadeira, soltando um suspiro pesado. — Esta foi uma noite difícil para todos.
Lilith sentou-se, mas Fenrir permaneceu em pé ao lado dela, um sentinela silencioso e imponente. Félix, como de costume, manteve-se próximo, sua presença sendo uma fonte de apoio invisível para Lilith. A elfa observava tudo com atenção, seus olhos afiados não perdendo nenhum detalhe.
Lilith cruzou os braços, inclinando-se ligeiramente para frente. — Precisamos falar sobre o que aconteceu… e o que vem a seguir.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.