Capítulo 36: Casa?
A mente de Lilith estava mergulhada em um sonho perturbador. Ela estava flutuando em um vazio sombrio, quando um som metálico de passos ecoou, profundo e ameaçador. Sua visão focou-se em um ser colossal, envolto por uma armadura negra que cobria cada centímetro de seu corpo. Luzes pulsavam em vermelho e roxo, parecendo dançar com uma intensidade ameaçadora.
Os chifres da criatura curvavam-se para frente, mas eram protegidos por uma camada da armadura, reforçando a aparência impenetrável. No lugar da boca, uma abertura se revelou, como uma mandíbula metálica cheia de dentes pontiagudos, e de dentro daquela fenda escapava uma luz roxa que parecia viva, pulsante.
A criatura empunhava uma espada impressionante. A habaki — a base da lâmina — era intrincada, ornada com detalhes luxuosos que brilhavam levemente à luz roxa. A lâmina em si parecia feita de puro éter, irradiando energia, quase viva, ondulando como se desejasse cortar o próprio ar.
Lilith observou, paralisada, enquanto o ser avançava, correndo em uma velocidade surreal. Cada passo era acompanhado por um rugido ensurdecedor, que parecia perfurar não apenas os ouvidos, mas também a alma.
À frente dele, uma figura encapuzada movia-se rapidamente, tentando escapar. O manto vermelho que cobria o corpo daquela figura parecia feito de algo não natural — almas contorcidas, gritando, gemendo de agonia, formando sua aura. As vozes daqueles espíritos ecoavam pelo sonho, misturando-se ao rugido do ser armado.
Lilith tentou se mover, gritar, fazer qualquer coisa, mas seu corpo permanecia imóvel. Ela sentiu um calafrio correr por sua espinha quando o ser da armadura negra levantou a espada e desferiu um golpe devastador em direção ao encapuzado. O impacto foi tão brutal que tudo ao redor desapareceu em uma explosão de luz roxa.
De repente, ela despertou.
Sua respiração estava acelerada, e seu coração batia como um tambor. Olhou ao redor, tentando se situar. Já havia amanhecido, e a luz do sol entrava suavemente pelas janelas do quarto.
Fenrir estava deitado em um canto, completamente relaxado, os olhos fechados, mas as orelhas ligeiramente erguidas, como se ainda estivesse atento a qualquer ameaça.
Ao seu lado, Félix repousava sobre um travesseiro, a expressão serena, mesmo que sua forma fosse apenas visível para ela.
Lilith levou uma mão ao peito, tentando acalmar os batimentos acelerados.
— O que foi isso? — murmurou para si mesma, ainda tentando processar o sonho.
Por mais que tentasse afastar as imagens, a visão do ser da armadura negra e da figura encapuzada continuava gravada em sua mente. O grito, as almas, a lâmina roxa… Tudo parecia mais real do que deveria ser.
Ela se levantou lentamente, ainda sentindo o peso das imagens do sonho perturbador que havia tido. Ela deixou o quarto em silêncio, passando por Fenrir e Félix sem os despertar, e seguiu pelos corredores até o banheiro. Suas vestimentas padrão, embora práticas, pareciam mais pesadas do que nunca, como se o sonho tivesse deixado um resíduo físico em seu corpo.
No banheiro, Lilith se despiu, deixando que a água quente do banho lavasse não apenas o cansaço de sua pele, mas também os pensamentos tumultuados que a assombravam. Seu reflexo no espelho parecia diferente — os olhos escuros, agora sem o brilho laranja de antes, pareciam mais profundos, carregando uma sabedoria que ela não lembrava de ter adquirido.
Depois de se vestir novamente, Lilith desceu até o salão principal da guilda para se alimentar. O cheiro de comida fresca a recebeu, mas sua mente estava longe, envolta em um turbilhão de dúvidas. Enquanto mastigava sem muito entusiasmo, o sistema apareceu em sua mente, interrompendo seus pensamentos.
— (Deseja desativar a função de ocultação dos chifres?).
Lilith respirou fundo, respondendo mentalmente:
— Não.
— (Entendido. Configuração mantida).
O tom mecânico e impessoal do sistema parecia quase reconfortante diante da confusão que ela sentia.
Depois de terminar sua refeição, Lilith decidiu explorar a guilda, buscando clareza em meio ao caos de suas emoções. Suas pernas a levaram até o terraço, onde o ar fresco da manhã parecia oferecer algum alívio.
Assim que chegou lá, um calafrio percorreu sua espinha. O ambiente ao redor pareceu mudar, tornando-se opressivamente branco, como se toda a cor tivesse sido drenada do mundo. Uma presença poderosa se manifestou, enchendo o espaço com uma energia avassaladora.
Atras dela, uma figura emergiu, composta inteiramente de luz branca, sem traços definíveis. O ser, embora sem feições, exalava uma autoridade esmagadora. Lilith sentiu um aperto invisível ao redor de sua garganta, e antes que pudesse reagir, uma voz ecoou em sua mente, fria e distante:
— Eu irei atrás de você.
Mas antes que aquela figura pudesse concretizar a ameaça, tudo desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. O branco deu lugar ao azul suave do céu, e o terraço voltou ao seu estado normal.
Lilith virou a cabeça lentamente, um sorriso provocador curvando seus lábios.
— É isso? — murmurou, desafiadora, para o vazio.
Ela se sentou no telhado, tentando processar o que havia acabado de acontecer. A deusa branca. Aquela presença. O sonho da armadura negra. Tudo parecia se conectar de uma maneira que ela ainda não compreendia.
Lilith se perguntou em voz baixa. — O que o futuro está guardando para mim?
As perguntas rodopiavam em sua mente, mas ao invés de se preocupar, ela começou a rir. Era uma risada solitária, cheia de ironia, mas também de determinação.
Deitou-se no telhado, deixando que o vento suave acariciasse seu rosto, enquanto tentava ordenar seus pensamentos.
O som de passos interrompeu seu momento de contemplação. Alguém estava subindo as escadas que levavam ao terraço. A porta se abriu com um rangido suave, e uma mulher apareceu na entrada. Seus olhos rapidamente localizaram Lilith, deitada de maneira casual no telhado.
— Lilith — chamou a mulher, sua voz firme. — Arlin deseja vê-la.
Lilith se sentou lentamente, ainda com o sorriso em seus lábios. Mas dentro dela, a tempestade continuava a rugir.
Lilith entrou na sala de Arlin, sentindo o peso de sua decisão recente e das muitas revelações que a haviam transformado nos últimos dias. O mestre da guilda estava mexendo no colarinho de sua roupa, ajustando-o com uma expressão séria, mas havia um leve toque de cansaço em seus olhos.
— Você vai para Colbith — disse ele diretamente, sem rodeios. Sua voz carregava uma firmeza paternal, como alguém que já havia visto de tudo. — Mas, pelo amor de qualquer deus ou demônio em que você acredite, não destrua a cidade como quase fez com esta.
Lilith arqueou uma sobrancelha, sua expressão carregada de ironia.
— Tentarei cumprir.
— Não, tentará não é suficiente — Ele apontou para ela, firmando o olhar. — isso é uma promessa.
Ele então retirou uma carta selada com o emblema da guilda e a colocou diante dela.
— Esta carta é para Rynvar Stoneclaw, o mestre da guilda de Colbith. Nela, eu explico tudo: seu rank, suas capacidades e… algumas peculiaridades — ele pausou, o queixo sustentado pela mão. — Boa sorte, Lilith. Você vai precisar.
Lilith pegou a carta com firmeza, apertou a mão de Arlin em um gesto breve, mas sincero, e deixou a sala sem olhar para trás.
De volta ao quarto, encontrou Fenrir deitado em um canto, parecendo mais um lobo comum do que a entidade grandiosa que ele era. Félix, como sempre, estava próximo, observando-a com curiosidade.
— Então, é isso — Lilith começou, sentando-se na beira da cama. — Vamos para Colbith.
Fenrir ergueu a cabeça, seus olhos brilhando com algo entre orgulho e melancolia.
— Não, você vai para Colbith — disse ele com uma voz grave. — Eu já a acompanhei até aqui, mas está na hora de seguir meu próprio caminho.
Lilith ergueu o olhar, surpresa, mas havia algo no tom dele que não permitia protestos.
— Eu estarei por aí, Lilith. Sempre por perto o suficiente, mas não mais à sua sombra. Há coisas no mundo que precisam de atenção, e esta é a minha natureza.
Félix se aproximou, rompendo o clima de despedida com um tom animado. Ele cantou com leveza:
— Vamos a mais uma aventura, Lilith!
Ela não pôde evitar um pequeno sorriso.
— Sim, vamos.
Na manhã seguinte, os três deixaram a cidade. A neve ainda caía levemente, cobrindo as ruínas e cicatrizes da batalha com uma camada de paz efêmera. Eles caminharam juntos até estarem suficientemente longe dos portões, onde os caminhos se dividiriam.
Fenrir parou, olhando para Lilith uma última vez.
— Cuide-se, filha do Rei Demônio — ele se virou, já caminhando em direção ao horizonte. — nos encontraremos novamente.
Lilith observou até que sua figura se perdesse na vastidão da neve. Ela então ajeitou seu capuz e pegou a venda, posicionando-a sobre os olhos. Antes de cobrir completamente a visão, lançou um pouco de éter para criar uma barreira fina que a protegeria do frio e, ao mesmo tempo, permitiria que ela enxergasse com clareza.
Com um movimento fluido, suas asas de éter se materializaram, pulsando com energia roxa, e ela deu um salto gracioso, alçando voo em direção a Colbith. Félix a acompanhava, enquanto o vento frio os envolvia.
Fenrir, ao longe, olhou para o céu, observando as asas brilhantes de Lilith desaparecendo no horizonte. Ele então voltou sua atenção para a vastidão diante dele e seguiu seu caminho, desaparecendo entre as árvores cobertas de neve.
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