Capítulo 38: Tia?
Lilith permanecia imóvel no topo da cruz, no ponto mais alto da igreja. Seus olhos analisavam a paisagem da cidade à sua frente, um mar de destruição pontuado por construções ainda de pé. A neve caía levemente, e o silêncio que pairava era interrompido apenas pelo som do vento. Ao seu lado, Félix, em forma de uma pequena esfera luminosa, parecia inquieto.
— Você sabe que vencerá essa batalha — comentou ele, sua voz ecoando com um tom melodioso, mas cheio de preocupação. — Mas haverá grandes perdas.
Lilith, sem desviar os olhos do horizonte, respondeu com frieza:
— Foda-se.
Félix piscou intensamente, quase como um suspiro.
— Não perca sua sanidade.
Lilith virou o rosto lentamente para ele, sua expressão carregada de uma raiva contida.
— Eles mataram meus amigos, Félix. Isso já é motivo suficiente.
— Mas você mal os conhecia… — tentou argumentar.
— Não importa! — ela rebateu, interrompendo-o. — A conexão que eu criei com eles foi forte o suficiente. Além disso, Félix… — Lilith deu uma risada amarga. — Eu mesma “nasci” há pouco tempo. Para mim, tudo ainda é novo, mas perder alguém… isso dói.
Félix flutuou ao redor dela, sua luz tremeluzindo como se absorvesse a dor dela.
— Eu só não quero te perder — disse ele suavemente.
Lilith fechou os olhos por um instante, permitindo-se sentir o conforto de suas palavras.
— Não vai me perder — respondeu ela, com um sorriso determinado.
O momento de tranquilidade, no entanto, foi quebrado. Félix parou abruptamente, sua luz ficando mais intensa.
— Estão te observando — avisou ele.
Lilith abriu os olhos e assentiu.
— Eu já percebi — disse, sua voz fria.
Ela puxou da memória a voz de Rynvar: “Use o sinalizador quando chegar a hora. Eles reconhecerão.”
— Chegou a hora — murmurou Lilith.
Com um movimento rápido, ela retirou a tsuka de sua cintura, e uma lâmina de éter em forma de katana se projetou em um brilho violeta. Segurando o sinalizador em uma das mãos, ela o lançou para o alto com força, e o céu foi iluminado por uma explosão de luz escarlate.
Sem hesitar, Lilith saltou do topo da cruz, o vento assobiando ao redor dela enquanto caía em alta velocidade. Quando se aproximou do chão, dobrou os joelhos e pousou com uma graça sobrenatural, levantando uma nuvem de poeira ao seu redor.
Ela se ergueu lentamente, mas não teve tempo de pensar. Uma presença vinha rapidamente pela sua direita.
— Algo está se aproximando… — Félix avisou.
Lilith desviou no último instante de uma mão enorme que tentou agarrá-la. Sem perder o ritmo, girou, mas foi surpreendida por um chute. Levantou o braço em defesa, absorvendo o impacto.
— Muito bem… Lilith — disse uma voz grave.
Diante dela, um homem musculoso e imponente apareceu, seus olhos vermelhos brilhando com malícia. Atrás dele, dois outros capuzes vermelhos surgiram, cada um segurando um saco.
— Não é exatamente isso que eu quero lutar — continuou o homem, um sorriso perverso em seu rosto. — Quero algo mais… demoníaco.
Lilith estreitou os olhos, sentindo a ira crescendo dentro de si. O fio vermelho que conectava sua energia começou a brilhar intensamente, quase como se pulsasse.
— Que tal você ver isso? — disse ele, abrindo os sacos.
As cabeças de Tharon e Elyra rolaram para fora, manchando o chão com sangue seco.
O mundo de Lilith se fragmentou. Ela não estava mais na rua. De repente, encontrava-se em um espaço completamente negro, o vazio consumindo tudo ao redor. Ela começou a gritar, tentando controlar as emoções, mas a raiva e o desespero eram maiores.
Sua visão começou a mudar. O preto deu lugar a um roxo pulsante.
— (Modo Berserk ativado intencionalmente) — anunciou o sistema, sua voz robótica e fria ecoando na escuridão.
— (Erro…) — murmurou a mesma voz, agora mais hesitante.
Uma luz branca começou a emanar do sistema, iluminando o espaço vazio.
— (Olá novamente…)
O espaço vazio ao redor de Lilith pulsava, a luz roxa intensificando-se e dançando como se reagisse à sua presença. O grito dela havia se dissipado, mas a sensação de ser observada permanecia. Então, os passos começaram. Lentos, precisos, cada um reverberando no ambiente como um trovão abafado.
Um ser surgiu da escuridão, caminhando em direção a Lilith. Sua figura era elegante e graciosa, pele branca como alabastro, quase translúcida sob a luz etérea. Usava sandálias delicadas, e um tecido fino cobria seu corpo, ocultando suas feições com um véu branco que deixava apenas um vislumbre de uma luz radiante por trás. Ela parecia flutuar entre a linha do divino e o humano, cada movimento carregando uma imponência que fazia o ambiente pulsar com sua energia.
Lilith instintivamente apontou o dedo em direção ao rosto da figura. Seus olhos brilharam, um gesto repleto de desconfiança e raiva, e no instante seguinte, a brancura que envolvia a entidade começou a se dissipar. A figura perdeu seu brilho celestial, tropeçando, caindo de joelhos no chão do espaço negro.
— Aiiiii, caralho! — exclamou a figura, levando as mãos ao rosto como se tivesse sido atingida fisicamente.
Lilith estreitou os olhos, surpresa pela reação inesperada.
A mulher — agora com uma pele mais próxima do humano, pálida mas não resplandecente — ergueu-se do chão, limpando o véu de maneira quase casual.
— Beleza… — disse a entidade, com um tom carregado de ironia. — Não estou mais no meu domínio, mas no seu. Sem meus poderes completos, claro. Desde que você perdeu as memórias, nunca tivemos uma conversa cara a cara. Apenas… momentos breves. Correto?
Lilith manteve sua postura defensiva, mas assentiu.
— Correto.
A entidade, agora visivelmente mais relaxada, ajustou o véu com um gesto fluido.
— Tudo estava correndo bem, até você resolver se meter com meu irmão.
Lilith arqueou uma sobrancelha.
— O Rei Demônio?
A mulher acenou lentamente com a cabeça.
— Sim, ele mesmo. Nascemos da mesma essência, afinal. — Seus olhos percorreram o ambiente ao redor, absorvendo o vazio tingido de roxo. — E agora que olho bem, este lugar… ele possui a mesma essência de nosso nascimento. Fascinante.
Lilith cruzou os braços, um sorriso divertido se formando em seus lábios.
— Irmãos… verdade. Já haviam me dito isso — ela fez uma pausa, um brilho malicioso em seus olhos. — Olá, titia.
A expressão da mulher congelou, o choque evidente mesmo através do véu.
— Como é que é?
Lilith deu um passo à frente, deixando o fio vermelho ao seu redor pulsar ainda mais intensamente.
— Aquele corpo que você usou para me criar… era da filha do Rei Demônio. O que acha disso?
A mulher levou uma mão ao véu, como se estivesse tentando processar a revelação.
— Eu… — começou ela, mas sua voz vacilou. — Eu pensava que esses chifres eram um sinal de corrupção, uma marca deixada pelo meu irmão. Mas agora… caramba, me usaram muito bem.
Lilith riu, e pela primeira vez, o peso do momento parecia se dissipar.
— Criar é a palavra certa. Por isso, que tal criarmos algo aqui para conversar?
A mulher inclinou levemente a cabeça, um sorriso emergindo sob o véu.
— Concordo. Mostre-me o que é capaz de fazer, minha… sobrinha.
Lilith levantou um dedo e apontou para um ponto vazio à frente. Fechou os olhos por um instante, concentrando-se. Então, com um brilho suave, uma mesa e duas cadeiras surgiram, esculpidas de pura energia. Ao redor delas, o espaço negro foi preenchido por um campo verde, com grama balançando suavemente como se tocada por uma brisa invisível.
A mulher olhou ao redor, impressionada, e deixou escapar uma risada.
— Minha sobrinha é boa nisso. — Ela se sentou com elegância, cruzando as pernas e observando Lilith com curiosidade. — Vamos conversar, então. Há muito a ser dito, não acha?
Lilith também se sentou, mas seus olhos ainda estavam fixos na figura à sua frente, avaliando cada movimento, cada palavra.
— Sim — disse ela, sua voz firme. — Acho que é hora de algumas respostas.
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