Lilith permanecia imóvel no topo da cruz, no ponto mais alto da igreja. Seus olhos analisavam a paisagem da cidade à sua frente, um mar de destruição pontuado por construções ainda de pé. A neve caía levemente, e o silêncio que pairava era interrompido apenas pelo som do vento. Ao seu lado, Félix, em forma de uma pequena esfera luminosa, parecia inquieto.

    — Você sabe que vencerá essa batalha — comentou ele, sua voz ecoando com um tom melodioso, mas cheio de preocupação. — Mas haverá grandes perdas.

    Lilith, sem desviar os olhos do horizonte, respondeu com frieza:

    — Foda-se.

    Félix piscou intensamente, quase como um suspiro.

    — Não perca sua sanidade.

    Lilith virou o rosto lentamente para ele, sua expressão carregada de uma raiva contida.

    — Eles mataram meus amigos, Félix. Isso já é motivo suficiente.

    — Mas você mal os conhecia… — tentou argumentar.

    — Não importa! — ela rebateu, interrompendo-o. — A conexão que eu criei com eles foi forte o suficiente. Além disso, Félix… — Lilith deu uma risada amarga. — Eu mesma “nasci” há pouco tempo. Para mim, tudo ainda é novo, mas perder alguém… isso dói.

    Félix flutuou ao redor dela, sua luz tremeluzindo como se absorvesse a dor dela.

    — Eu só não quero te perder — disse ele suavemente.

    Lilith fechou os olhos por um instante, permitindo-se sentir o conforto de suas palavras.

    — Não vai me perder — respondeu ela, com um sorriso determinado.

    O momento de tranquilidade, no entanto, foi quebrado. Félix parou abruptamente, sua luz ficando mais intensa.

    — Estão te observando — avisou ele.

    Lilith abriu os olhos e assentiu.

    — Eu já percebi — disse, sua voz fria.

    Ela puxou da memória a voz de Rynvar: Use o sinalizador quando chegar a hora. Eles reconhecerão.”

    — Chegou a hora — murmurou Lilith.

    Com um movimento rápido, ela retirou a tsuka de sua cintura, e uma lâmina de éter em forma de katana se projetou em um brilho violeta. Segurando o sinalizador em uma das mãos, ela o lançou para o alto com força, e o céu foi iluminado por uma explosão de luz escarlate.

    Sem hesitar, Lilith saltou do topo da cruz, o vento assobiando ao redor dela enquanto caía em alta velocidade. Quando se aproximou do chão, dobrou os joelhos e pousou com uma graça sobrenatural, levantando uma nuvem de poeira ao seu redor.

    Ela se ergueu lentamente, mas não teve tempo de pensar. Uma presença vinha rapidamente pela sua direita.

    — Algo está se aproximando… — Félix avisou.

    Lilith desviou no último instante de uma mão enorme que tentou agarrá-la. Sem perder o ritmo, girou, mas foi surpreendida por um chute. Levantou o braço em defesa, absorvendo o impacto.

    — Muito bem… Lilith — disse uma voz grave.

    Diante dela, um homem musculoso e imponente apareceu, seus olhos vermelhos brilhando com malícia. Atrás dele, dois outros capuzes vermelhos surgiram, cada um segurando um saco.

    — Não é exatamente isso que eu quero lutar — continuou o homem, um sorriso perverso em seu rosto. — Quero algo mais… demoníaco.

    Lilith estreitou os olhos, sentindo a ira crescendo dentro de si. O fio vermelho que conectava sua energia começou a brilhar intensamente, quase como se pulsasse.

    — Que tal você ver isso? — disse ele, abrindo os sacos.

    As cabeças de Tharon e Elyra rolaram para fora, manchando o chão com sangue seco.

    O mundo de Lilith se fragmentou. Ela não estava mais na rua. De repente, encontrava-se em um espaço completamente negro, o vazio consumindo tudo ao redor. Ela começou a gritar, tentando controlar as emoções, mas a raiva e o desespero eram maiores.

    Sua visão começou a mudar. O preto deu lugar a um roxo pulsante.

    — (Modo Berserk ativado intencionalmente) — anunciou o sistema, sua voz robótica e fria ecoando na escuridão.

    — (Erro…) — murmurou a mesma voz, agora mais hesitante.

    Uma luz branca começou a emanar do sistema, iluminando o espaço vazio.

    — (Olá novamente…)

    O espaço vazio ao redor de Lilith pulsava, a luz roxa intensificando-se e dançando como se reagisse à sua presença. O grito dela havia se dissipado, mas a sensação de ser observada permanecia. Então, os passos começaram. Lentos, precisos, cada um reverberando no ambiente como um trovão abafado.

    Um ser surgiu da escuridão, caminhando em direção a Lilith. Sua figura era elegante e graciosa, pele branca como alabastro, quase translúcida sob a luz etérea. Usava sandálias delicadas, e um tecido fino cobria seu corpo, ocultando suas feições com um véu branco que deixava apenas um vislumbre de uma luz radiante por trás. Ela parecia flutuar entre a linha do divino e o humano, cada movimento carregando uma imponência que fazia o ambiente pulsar com sua energia.

    Lilith instintivamente apontou o dedo em direção ao rosto da figura. Seus olhos brilharam, um gesto repleto de desconfiança e raiva, e no instante seguinte, a brancura que envolvia a entidade começou a se dissipar. A figura perdeu seu brilho celestial, tropeçando, caindo de joelhos no chão do espaço negro.

    — Aiiiii, caralho! — exclamou a figura, levando as mãos ao rosto como se tivesse sido atingida fisicamente.

    Lilith estreitou os olhos, surpresa pela reação inesperada.

    A mulher — agora com uma pele mais próxima do humano, pálida mas não resplandecente — ergueu-se do chão, limpando o véu de maneira quase casual.

    — Beleza… — disse a entidade, com um tom carregado de ironia. — Não estou mais no meu domínio, mas no seu. Sem meus poderes completos, claro. Desde que você perdeu as memórias, nunca tivemos uma conversa cara a cara. Apenas… momentos breves. Correto?

    Lilith manteve sua postura defensiva, mas assentiu.

    — Correto.

    A entidade, agora visivelmente mais relaxada, ajustou o véu com um gesto fluido.

    — Tudo estava correndo bem, até você resolver se meter com meu irmão.

    Lilith arqueou uma sobrancelha.

    — O Rei Demônio?

    A mulher acenou lentamente com a cabeça.

    — Sim, ele mesmo. Nascemos da mesma essência, afinal. — Seus olhos percorreram o ambiente ao redor, absorvendo o vazio tingido de roxo. — E agora que olho bem, este lugar… ele possui a mesma essência de nosso nascimento. Fascinante.

    Lilith cruzou os braços, um sorriso divertido se formando em seus lábios.

    — Irmãos… verdade. Já haviam me dito isso — ela fez uma pausa, um brilho malicioso em seus olhos. — Olá, titia.

    A expressão da mulher congelou, o choque evidente mesmo através do véu.

    — Como é que é?

    Lilith deu um passo à frente, deixando o fio vermelho ao seu redor pulsar ainda mais intensamente.

    — Aquele corpo que você usou para me criar… era da filha do Rei Demônio. O que acha disso?

    A mulher levou uma mão ao véu, como se estivesse tentando processar a revelação.

    — Eu… — começou ela, mas sua voz vacilou. — Eu pensava que esses chifres eram um sinal de corrupção, uma marca deixada pelo meu irmão. Mas agora… caramba, me usaram muito bem.

    Lilith riu, e pela primeira vez, o peso do momento parecia se dissipar.

    — Criar é a palavra certa. Por isso, que tal criarmos algo aqui para conversar?

    A mulher inclinou levemente a cabeça, um sorriso emergindo sob o véu.

    — Concordo. Mostre-me o que é capaz de fazer, minha… sobrinha.

    Lilith levantou um dedo e apontou para um ponto vazio à frente. Fechou os olhos por um instante, concentrando-se. Então, com um brilho suave, uma mesa e duas cadeiras surgiram, esculpidas de pura energia. Ao redor delas, o espaço negro foi preenchido por um campo verde, com grama balançando suavemente como se tocada por uma brisa invisível.

    A mulher olhou ao redor, impressionada, e deixou escapar uma risada.

    — Minha sobrinha é boa nisso. — Ela se sentou com elegância, cruzando as pernas e observando Lilith com curiosidade. — Vamos conversar, então. Há muito a ser dito, não acha?

    Lilith também se sentou, mas seus olhos ainda estavam fixos na figura à sua frente, avaliando cada movimento, cada palavra.

    — Sim — disse ela, sua voz firme. — Acho que é hora de algumas respostas.

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