Capítulo 39: Não está muito rápido?
O silêncio do campo verde ao redor da mesa parecia pesado, como se a atmosfera estivesse ciente da tensão crescente entre Lilith e a deusa. A conversa era carregada de palavras cuidadosamente escolhidas, mas havia um subtexto de desconfiança e ressentimento que nenhuma delas podia ignorar.
A deusa, com seus movimentos elegantes e quase preguiçosos, apoiou o queixo em uma mão enquanto olhava para Lilith com curiosidade.
— Não acha que as coisas estão correndo rápido demais? — perguntou ela, sua voz doce, mas com uma ponta de ironia.
Lilith recostou-se na cadeira, os olhos semicerrados enquanto ponderava a pergunta.
— Talvez estejam — ela deu um sorriso enigmático, mas sua voz era firme. — Mas, de qualquer forma, tudo parece ter me empurrado para esse ritmo. Não sou exatamente do tipo que foge de um desafio.
A deusa riu suavemente, um som quase musical.
— Interessante. Mas me diga, querida sobrinha, o que exatamente você espera encontrar no final disso tudo?
Lilith cruzou os braços, seus olhos ficando mais sombrios enquanto ela respondia.
— Minhas memórias. Quero a verdade, por completo. Cada pedaço que me foi tirado.
A deusa ficou em silêncio por um momento, como se estivesse avaliando as palavras de Lilith. Então, com um suspiro teatral, ela balançou a cabeça.
— Não sei se você está pronta para isso. Além do mais… não gosto de você. Por que eu deveria te ajudar?
Lilith não reagiu imediatamente, mas o sorriso em seus lábios se tornou mais frio.
— Talvez você não goste de mim — disse ela lentamente. — Mas isso não muda o fato de que tudo isso está ligado a você. E, mesmo que você hesite, não pode ignorar que eu mereço saber quem sou, de onde vim.
A deusa estreitou os olhos, mas antes que pudesse responder, o ambiente mudou. Lilith sentiu um arrepio subindo pela espinha, uma presença hostil surgindo atrás dela.
Foi instintivo. Sua mão direita ergueu-se para segurar a lâmina que se dirigia ao seu pescoço, a ponta fria da espada parando a centímetros de sua pele. Seu braço tremia sob a força do ataque, enquanto uma voz aguda e psicótica ecoava pelo ambiente.
— Te matar é o que desejo — a voz era feminina, mas carregava uma alegria insana que fez o coração de Lilith acelerar. — Você deveria estar sofrendo… por que não morre logo?
Lilith virou a cabeça para encarar a figura que a atacava, surpresa ao perceber que a atacante emanava uma energia semelhante à dela própria.
— Como você está usando seus poderes? — Lilith exigiu, sua voz repleta de incredulidade.
A mulher sorriu, o rosto distorcido em uma expressão de prazer cruel.
— Nem tudo acabou para mim. Ainda tenho… algo.
Mas antes que pudesse terminar sua frase, a lâmina começou a se desintegrar, estilhaçando-se em pedaços diante do olhar confuso de Lilith. Uma mão surgiu atrás da figura, interrompendo-a completamente.
Lilith virou a cabeça e viu um ser emergir das sombras. Vestia um terno impecável e segurava um chapéu negro que ocultava boa parte de seu rosto. Sua presença era imponente, cada passo ressoando como o som de trovões distantes.
Os olhos de Lilith se estreitaram ao notar algo familiar na mão dele: a armadura que cobria seu braço tinha um design estranhamente semelhante ao dela.
A deusa, que até então permanecia em silêncio, deixou escapar um suspiro impaciente.
— Bem-vindo, irmão.
O homem ergueu o chapéu com uma reverência exagerada, revelando sua aparência. Seus chifres pretos curvados para frente contrastavam com sua pele branca. Os olhos vermelhos brilhavam intensamente, cercados por manchas escuras que se estendiam como sombras vivas. Ele sorriu, mostrando dentes afiados, enquanto olhava para Lilith.
— Olá, minha família — sua voz era grave e carregada de sarcasmo. — Já estão tentando se matar, como sempre?
Antes que Lilith pudesse reagir, ele estendeu uma mão e bagunçou o cabelo dela de maneira quase fraternal.
— Vamos lá, garota. Não seja tão carrancuda.
Lilith afastou a mão dele com um tapa irritado, mas manteve os olhos fixos no homem.
— Você… o Rei Demônio.
Ele riu alto, como se a identificação dela fosse a coisa mais óbvia do mundo.
— Claro que sou. E já que estamos todos reunidos, que tal resolvermos esse pequeno mistério? — Ele lançou um olhar divertido para a deusa. — Vamos lá, devolva pelo menos uma parte das memórias dela. Não seja tão teimosa.
A deusa cruzou os braços e deu uma risada fria.
— Não me faça rir, irmão.
Mas antes que a conversa pudesse continuar, o terno do Rei Demônio começou a se desfazer. A energia escura que o envolvia se expandiu, revelando uma armadura intricada que cobria seus braços e pernas, similar a armadura de Lilith. A lateral de seu corpo estava com uma armadura ao redor. Um cinturão adornado com a caveira de um carneiro envolvia sua cintura.
Ele olhou diretamente para a deusa, um sorriso perverso em seus lábios.
— Foda-se você, irmã. Vamos acabar com isso de uma vez.
Lilith observou a cena, suas emoções em conflito. Pela primeira vez, sentiu que estava no epicentro de algo muito maior do que ela jamais imaginou.
As correntes irromperam do chão com uma força que fez o ambiente tremer. Elas eram negras como a noite, enfeitadas com runas cintilantes que pareciam se mover como chamas líquidas. Envolviam o Rei Demônio como serpentes, prendendo-o nos pulsos, tornozelos, cintura e até no pescoço. Ele tentou se mexer, mas os elos se apertaram, emitindo um som metálico e grave que reverberava no espaço.
Ele olhou para Lilith, seus olhos vermelhos brilhando com uma mistura de surpresa e decepção.
— Filha — disse ele, sua voz carregada de uma calma perigosa. — Por que está me impedindo? Só quero ajudá-la.
Lilith deu um passo à frente, o rosto indecifrável, mas sua postura demonstrava determinação.
— Eu sei — respondeu ela. — Mas não quero que vocês briguem. Não quero que isso se transforme em algo maior do que já é.
A Deusa Branca, que havia permanecido em silêncio até então, deixou escapar uma risadinha contida.
— Para uma semideusa que acabou de despertar seus poderes, devo admitir, você está lidando muito bem.
Lilith lançou-lhe um olhar de lado, mas a deusa continuou, ignorando completamente a expressão de sua sobrinha.
— O poder primordial, aquele do qual todos nós viemos, tem uma cor específica para cada um de nós. O meu é branco — disse ela, quase orgulhosa. — O dele é vermelho — apontou com um leve movimento de queixo para o Rei Demônio preso. — E o seu… bem, o seu é roxo claro.
Lilith franziu o cenho, tentando absorver o que acabara de ouvir. A complexidade da situação começava a sobrecarregá-la, mas ela manteve a compostura.
— Então é isso? Sou apenas uma mistura de vocês dois? — perguntou ela, tentando esconder a ponta de frustração em sua voz.
A Deusa Branca deu de ombros, como se não fosse grande coisa.
— Mais ou menos. Mas não subestime o que significa carregar o poder primordial em si. — Ela fez uma pausa, observando Lilith com um olhar avaliador. — Suponho que você queira respostas, não é?
Lilith cruzou os braços.
— Sempre quis.
A deusa suspirou e então, com um movimento de mão, conjurou uma esfera translúcida que parecia pulsar com energia.
— Vou lhe dar uma parte de suas memórias. Mas um aviso… não me culpe se acabar com depressão.
Antes que Lilith pudesse protestar, a esfera brilhou intensamente, e sua visão escureceu por completo.
O silêncio foi absoluto. Ela sentiu seu corpo perder peso, como se estivesse flutuando em um vazio infinito. Então, abruptamente, a escuridão cedeu lugar a uma cena.
O tempo começou a se mover novamente no mundo real, e ela estava no modo berserk. Ela se transformou no ser de seu sonho, que ao se inclinar um pouco para frente, tudo começou a ser destruído.
Voltando às lembranças, ela estava na escuridão, mas então, uma voz a chamou.
— Lilith!
Tudo foi substituído pela familiaridade de uma sala de aula. Ela piscou, confusa, e percebeu que estava sentada em sua carteira.
O professor da faculdade de física estava parado à sua frente, uma expressão de leve preocupação em seu rosto.
— Está tudo bem? — ele perguntou.
Lilith piscou novamente, tentando se situar.
— Sim… — murmurou, sua voz soando estranhamente distante.
Ele ajustou os óculos e cruzou os braços.
— Ótimo. Então, você entendeu a explicação sobre a fórmula E=mc²?
Lilith assentiu lentamente, ainda se sentindo fora de lugar.
— Sim, professor. Entendi.
Ele sorriu.
— Que bom. Com isso, encerramos a aula por hoje. Até amanhã.
Lilith observou enquanto os outros alunos começavam a guardar seus materiais e sair da sala. Mas ela permaneceu sentada, olhando para o vazio.
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