Capítulo 44: Do 0?
Aiko tenta se comunicar com Heri de forma telepática, como havia feito antes com outras pessoas, mas não obtém resposta. Ela insiste, enviando suas palavras através do que restava do sistema em sua mente, mas o silêncio se mantém absoluto.
Aos poucos, ela percebe o que está acontecendo. O sistema deste mundo não estava mais dentro dela. A conexão artificial que antes a permitia se comunicar diretamente com outros seres não existia mais. Esse pensamento a incomoda, pois, por um instante, lhe ocorre que, mesmo com sua imortalidade, talvez o próprio sistema pudesse tê-la exterminado ao ser arrancado dela.
Um arrepio percorre sua espinha, mas ela respira fundo e se acalma. Então, recorda algo essencial: ela e Heri compartilhavam a mesma energia. Diferente do sistema, essa ligação era natural, e se ele ainda estava lá, significava que poderia alcançá-lo por meio dessa conexão.
Ela fecha os olhos por um instante, concentra sua energia e, dessa vez, usa sua própria essência para projetar seus pensamentos diretamente para ele.
— “Não gostei do que você fez.”
Por um momento, não há resposta, mas logo uma risada escapa pela conexão.
— “Heh… Eu sabia que você ia dizer isso.”
Ela sente que Heri está sorrindo do outro lado. Contudo, o tom leve de diversão dura pouco. A energia dele muda sutilmente, assumindo um peso diferente.
— “Desculpa, Aiko. Não devia ter feito aquilo.”
Ela ergue os olhos para ele, sentindo a sinceridade em sua voz. Heri a encara de volta, e, por um instante, os dois simplesmente se observam. O arrependimento em seu rosto logo se dissolve, dando espaço a algo mais leve.
Os dois sorriem.
Uma sensação estranha de felicidade e conforto a invade. Ainda estava se acostumando com tudo o que aconteceu, com as mudanças no próprio corpo, com sua nova aparência, com a revelação sobre sua origem… mas, naquele instante, nada disso importava.
Ela ainda estava viva.
E Heri ainda estava ali.
Aiko então se volta para a comida à sua frente. Seu corpo, antes exausto, ansiava por sustento. Sem hesitar, ela começa a comer com avidez. Na mesa, há pedaços generosos de frango grelhado, folhas frescas de alface e um grande jarro de água. A cada mordida, sente suas forças voltando lentamente. A energia revigorante da comida aquece seu corpo, fazendo o frio que sentia antes se dissipar um pouco.
Enquanto come, seus olhos vagam para suas vestes. Ainda era difícil acreditar que Heri havia escolhido aquelas roupas para ela. Aiko ainda achava o traje um tanto chamativo, mas não podia negar que era belo. O tecido negro, os detalhes em vermelho vibrante, as espirais e padrões bordados… Tudo nela transmitia uma presença marcante, quase intimidadora.
“Ele realmente pensa que isso combina comigo?”
O pensamento faz um leve sorriso surgir em seus lábios. Mesmo achando extravagante, ela já estava começando a se acostumar.
Entretanto, mesmo com a vestimenta impressionante, Aiko continua usando a roupa de frio por cima. O tecido grosso e quente cobre seus ombros, protegendo-a do clima externo. Lá fora, a neve cai incessantemente, cobrindo tudo em um manto branco. A temperatura baixa deixava o ambiente aconchegante dentro da guilda, mas não impedia que o ar gélido ocasionalmente se infiltrasse pelas frestas das janelas.
Heri se levanta, colocando seu capacete de volta. Seu jeito despreocupado e imponente transparece no simples ato de se equipar. Ele ajusta as correias da armadura e se estica levemente antes de se virar para Aiko.
— “Vou dar uma volta. Patrulhar a área.”
Sem esperar resposta, ele se afasta, caminhando com seu típico ar confiante e relaxado. Aiko o observa partir, seu olhar acompanhando cada um de seus movimentos.
Agora, sozinha à mesa, ela sente um estranho vazio momentâneo.
O silêncio ao seu redor é confortável, mas logo é interrompido pelo som de passos.
Uma figura se aproxima e, sem cerimônia, senta-se ao seu lado.
— Faz tempo, hein?
A voz feminina e bem-humorada imediatamente atrai sua atenção. Aiko se vira e seus olhos encontram um rosto familiar.
Aria.
Uma aventureira que seu antigo grupo conheceu em Vern.
Aiko pisca algumas vezes, surpresa. O que Aria fazia ali?
Aiko encara Aria por um instante, surpresa pela aparição inesperada. A aventureira sorri de leve, cruzando os braços sobre a mesa como se estivessem simplesmente retomando uma conversa interrompida.
— Não esperava te ver por aqui — comenta Aiko, sua voz soando mais suave do que pretendia.
— Eu poderia dizer o mesmo — Aria responde com um tom brincalhão, mas seu olhar carrega um peso que Aiko não deixa de notar.
Aiko mantém o contato visual por um momento antes de desviar os olhos para a mesa, tomando um gole da água em silêncio. A leve tensão no ar logo se dissolve quando Aria solta um suspiro e se inclina levemente para a frente.
— Vim para ajudar meus amigos — ela diz, sem rodeios. — O grupo estava envolvido na luta contra os Capuzes Vermelhos.
Aiko sente seu peito apertar.
Ela abaixa a cabeça, seus olhos se fixando no próprio reflexo distorcido no fundo do copo. A menção aos Capuzes Vermelhos a faz lembrar de tudo o que aconteceu, das batalhas, da destruição de Colbith, da devastação que testemunhou.
Os Capuzes Vermelhos…
Eles foram derrotados. Ela se certificou disso. Mas a que custo?
Seus dedos apertam a lateral do copo, a angústia silenciosa se acumulando dentro dela. Seus pensamentos se tornam nebulosos, e por um breve momento, seu semblante se torna carregado de tristeza.
Mas então, quase como um reflexo, ela respira fundo e endireita a postura.
Aiko se recompõe rapidamente, afastando qualquer vestígio de fraqueza que sua expressão possa ter demonstrado.
— Entendo… — responde com voz neutra, forçando um pequeno sorriso.
Aria a observa em silêncio, seus olhos afiados analisando cada nuance da mudança em sua expressão. Mas, ao invés de pressioná-la, apenas assente de leve, aceitando a resposta sem questionamentos.
As duas continuam conversando por alguns minutos, trocando informações sobre os últimos acontecimentos. Aria menciona que a guilda está em processo de reorganização após os eventos recentes e que muitas pessoas ainda estão se recuperando da batalha. Aiko escuta atentamente, mas sua mente está inquieta.
Uma sensação estranha a incomoda, como se algo estivesse para acontecer.
Mudando para Heri.
Ele corre pelas ruas de Colbith, seus olhos atentos a qualquer sinal de perigo. A cidade, ainda marcada pela destruição, está vulnerável, e ele sabe disso. A neve continua caindo, cobrindo os escombros com um manto branco, mas a nevasca começa a dar sinais de que irá amenizar.
Heri não abaixa a guarda.
Ele segura sua enorme espada com uma das mãos, apoiando-a sobre os ombros. O peso da lâmina é familiar, reconfortante. Seus olhos percorrem os becos, as construções parcialmente destruídas, as ruas silenciosas. Tudo parece… calmo demais.
E ele não gosta disso.
Seu corpo se move em constante estado de alerta, seus instintos gritando para que continue atento. Algo está errado.
Ele para por um momento, ajustando a pegada na espada.
Então, decide testar algo.
Flexiona os joelhos levemente, inclinando o corpo para frente em uma posição que lhe permite arrancar em alta velocidade a qualquer momento.
Ele respira fundo.
E corre.
O vento corta contra seu rosto enquanto ele se desloca rapidamente pelo cenário devastado. Seus olhos analisam cada detalhe do caminho, cada canto, cada sombra.
Então, inesperadamente, ele tropeça.
Seus pés perdem o equilíbrio por um breve segundo e, instintivamente, ele finca a lâmina no chão para se apoiar.
Mas algo inesperado acontece.
O impacto da espada contra o solo gera uma rachadura.
Não, mais do que isso.
O chão abaixo dele cede levemente, revelando uma passagem oculta.
Heri se recupera rapidamente da queda e se ergue, observando a fenda que acabara de abrir. Uma escuridão densa espreita no fundo do buraco recém-revelado.
Ele estreita os olhos.
Algo está lá.
Sem hesitar, ele se aproxima da abertura e salta para dentro.
O ambiente muda drasticamente.
Ele se encontra em um corredor estreito, as paredes de pedra úmidas e antigas, iluminadas por uma luz fraca e sobrenatural. O ar é denso, carregado com uma presença que ele não consegue identificar.
Heri avança, seus passos ecoando pelo corredor.
No final do caminho, ele vê uma porta.
Ele a empurra e entra.
E então, tudo muda.
Um arrepio percorre sua espinha.
A conexão com Aiko… desaparece.
Seus olhos se arregalam levemente, a súbita ausência da presença dela deixando um vazio desconfortável dentro de si.
Antes que possa reagir, a porta atrás dele se fecha violentamente.
Ele gira nos calcanhares, tentando forçá-la a abrir novamente, mas é inútil.
E então, ele percebe.
Está sendo observado.
Seus olhos se voltam para a vasta área aberta diante dele, e é ali que ele vê.
Uma estátua gigantesca o encara.
A figura esculpida é imponente, sua presença esmagadora. Há algo profundamente errado com ela, algo que faz os instintos de Heri gritarem em alerta máximo.
E então, a estátua fala.
— SAIA.
A voz reverbera pelo espaço, uma força invisível acompanhando as palavras.
E, sem aviso, Heri é arremessado para trás com uma força absurda.
Ele não tem tempo de reagir. Seu corpo é impulsionado contra a porta, que agora se abre sozinha, cuspindo-o para fora como se fosse uma mera inconveniência.
Ele aterrissa com violência, deslizando pelo chão coberto de neve. A dor é instantânea, mas o impacto maior não é físico.
É a sensação de derrota absoluta.
Aiko sente a conexão se desfazer.
Seus olhos se arregalam, seu coração acelera.
— Heri?!
O pânico a toma por um instante, mas logo ela sente de novo.
Uma presença fraca, mas familiar.
— “Aiko…”
A voz de Heri ecoa em sua mente, débil, mas audível.
— “Algo aconteceu. Preciso que venha. Agora.”
Aiko se levanta da mesa com um movimento brusco. Sem hesitar, ela corre para fora da guilda.
O vento gelado a atinge, mas ela ignora. Suas pernas se movem rapidamente, muito mais rápido do que um humano comum.
Enquanto corre, sua mente trabalha freneticamente.
“Comer recuperei minha energia tão rápido assim?”
Ela nunca havia se sentido tão revigorada em tão pouco tempo.
“Isso é por eu ser meio demônio?”
Mas agora não era hora de pensar nisso.
Ela segue o rastro da conexão, seus passos firmes e precisos.
E então, ela o vê.
Heri está na cratera, tentando sair.
Seu corpo…
Está se dissolvendo.
Partes dele se tornam névoa, uma visão perturbadora.
Seus olhos encontram os dela por um breve momento.
Então, ele desaparece completamente.
A névoa se move em sua direção, envolvendo-a.
Aiko sente algo se fundir a ela.
E então, a voz de Heri ecoa dentro de sua mente.
— Era uma dungeon secreta… Fui derrotado… só pela voz de um ser.
Aiko se mantém imóvel por um instante.
Então, algo a faz olhar para o lado.
Uma névoa negra escapa de seu ombro, formando um formato semelhante a fresta do capacete de Heri.
Ela sorri.
Seus olhos brilham com excitação.
Mas então, com um suspiro, decide voltar para a guilda.
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