Capítulo 51: Porque, herói?
As pedras negras do coliseu ainda pulsavam com os ecos da batalha recém-encerrada. As arquibancadas vibravam com os gritos da multidão demoníaca, exaltando o nome de Heri, o estranho cavaleiro surgido do corpo da filha do Rei. Aiko permanecia sentada ao lado de Darkborn, os olhos fixos na arena enquanto Heri recolhia a espada que era Lilith, cravando-a de volta nas costas, sob a forma de armadura.
O Rei Demônio observava em silêncio, os cotovelos apoiados nos joelhos, um olhar distante fixo em Heri.
Darkborn, de braços cruzados, inclinou a cabeça para o lado.
“Nunca pensei que veria um cavaleiro enfrentar Vagnar e fazê-lo recuar.”
O Rei sorriu.
“A linhagem que corre no sangue dela… é mais antiga do que pensam.”
Aiko virou-se para o pai.
“Já vi você sorrir mais hoje do que em toda a minha vida.”
“Porque hoje é um dia que esperava há muito tempo, Aiko.”
Aiko inclinou levemente a cabeça. Sentia os batimentos do coração desacelerando depois da tensão da luta. Lilith e Heri estavam calados dentro dela, mas completamente atentos.
Darkborn bufou e esticou as costas como se aquilo tudo tivesse sido apenas uma manhã preguiçosa.
“Terminamos aqui?”
“Sim.”, respondeu o Rei, com a voz imponente, “Já vi o suficiente.”
Ele se levantou, sua presença cobrindo a arquibancada como uma sombra viva. As garras de poder que se projetavam de seu corpo pareciam vivas, respondendo ao seu humor.
“Venham. Temos que conversar.”
Darkborn tomou sua forma dracônica no mesmo instante. A multidão entrou em pânico com o rugido violento que sacudiu os céus.
“CHAAAAAAAOOOOOOO!”
Aiko se levantou rapidamente, e Heri assumiu novamente sua forma de sombra atrás dela. Juntos, os três alçaram voo, deixando o coliseu para trás. O céu acima deles parecia mais escuro que antes, carregado de presságios.
Ao retornarem ao castelo, o Rei os conduziu por um corredor sinuoso, ladeado por armaduras antigas e tapeçarias que contavam histórias de guerras milenares. Portas seladas com runas arcanas se abriram sozinhas diante deles. Aiko sentia o peso do passado em cada pedra daquele lugar.
Por fim, chegaram a uma grande sala subterrânea. Era circular, sem janelas, mas iluminada por cristais suspensos no teto, que pulsavam com uma luz violeta tênue. No centro, uma mesa de pedra negra com três cadeiras. O Rei tomou seu lugar na principal, e com um gesto, convidou Aiko a se sentar diante dele.
Ela o fez, mantendo-se firme apesar da estranheza de toda a situação. Heri e Lilith estavam atentos em sua mente.
“Então…”, disse Aiko, fitando os olhos intensos do pai, “O que está acontecendo, afinal?”
O Rei a encarou por alguns segundos em silêncio, depois apoiou os cotovelos na mesa, unindo os dedos.
“A guerra está vindo, Aiko.”
Ela ergueu uma sobrancelha.
“Que guerra?”
“A guerra que você, sem saber, já está no centro. Uma guerra que se aproxima como uma sombra. E que começou com uma traição há muitos séculos.”
Aiko se recostou, deixando que suas asas, agora recolhidas, se dissipassem.
“Me explique.”
O Rei respirou fundo.
“Há milênios, antes mesmo de seu nascimento, antes mesmo de Lilith… este mundo era dividido entre duas linhagens de poder. Os demoníacos e os ascendentes.”
“Os humanos?”
“Os humanos… e algo mais. Aqueles que herdaram uma fagulha de poder antigo, anterior até aos deuses. Entre esses, surgiu uma linhagem nobre, conhecida como os Arkanth.”
“Os Arkanth”, continuou o Rei, “acreditavam ser os verdadeiros herdeiros do mundo. Viviam entre os humanos, mas não eram como eles. Tinham poder, sabedoria e arrogância. Eu lutei contra eles. Enfrentei seus reis e heróis, e por fim, restou apenas um: o atual Herói.”
Aiko franziu o cenho.
“O herói que governa o mundo humano hoje?”
O Rei assentiu.
“Sim. Ele é descendente direto dos Arkanth. E diferente dos outros reis humanos que vêm e vão, ele vive há muito, muito tempo. Usa a aparência de mortais para se esconder, mas ele é antigo, quase tanto quanto eu.”
“Então por que ele quer o seu trono?”
“Por rancor. Por medo. Por orgulho. Ele sabe que o mundo está mudando. Sabe que você despertou. E isso o aterroriza. Porque ele lembra do que Lilith era. E do que você pode se tornar. Acho que você deve se lembrar de um dos apóstolos dele… Lectos.”
Lilith falou com voz baixa e melancólica.
“Ele foi o que me matou.”
O Rei continuou.
“A verdadeira guerra começou quando ele tentou me assassinar, séculos atrás. Perdeu. E se escondeu por eras. Mas agora ele voltou… e tem reunido os outros reinos.”
“Para invadir o nosso reino?”
“Para tomar este trono, sim. Mas não apenas isso. Ele quer a sua cabeça.”
O silêncio caiu como uma lâmina entre eles.
Aiko não reagiu de imediato. Pensava em tudo que ouvira. No herói, um ser que o mundo exaltava como símbolo de justiça. Naquela figura que, segundo lendas humanas, guiará civilizações inteiras à paz.
E agora ela descobriu que ele era algo… sombrio.
“Por que só me contar isso agora?”, ela perguntou, “Por que esconder até agora?”
“Porque só agora você despertou completamente. Só agora você é digna da verdade.”
Ela apertou os punhos, e a armadura em seus braços reagiu com um brilho discreto.
“Então vamos fazer o que tem que ser feito.”
O rei a fitou com um orgulho silencioso.
“Vamos. Mas antes, preciso que você o encontre.”
“O quê?”
“Ele não está no palácio humano. Está em movimento. Algo o incomoda. Talvez a sua existência. Encontre-o. Descubra os planos dele. E, se possível, traga-o até mim. Ou… elimine-o.”
Aiko olhou para o teto de pedra como se pudesse ver o céu além dele.
“O herói…”
Ela suspirou.
“Por que, herói? Por que quer destruir o próprio mundo?”
Lilith falou, sussurrando como uma lâmina afiada no ouvido dela.
“Porque no fundo, ele nunca quis salvar ninguém.”
Heri completou.
“Ele quer queimar tudo… e reconstruir com ele no topo.”
O rei ergueu-se, sua presença dominando a sala.
“Prepare-se, filha. A guerra começou no momento em que você abriu os olhos.”
Aiko apertou os punhos. O couro da cadeira rangeu sob seus dedos, e a armadura real em seus braços respondeu com um brilho púrpura discreto, como se também sentisse a raiva silenciosa em seu peito.
Os olhos dela se fixaram nos do Rei Demônio.
“Então ele… se esconde entre os humanos, fingindo ser um herói? Enquanto planeja invadir o nosso reino e cortar minha cabeça?”
O rei assentiu lentamente.
“Ele não é um herói, Aiko. Nunca foi. Ele apenas usou esse título para governar sem ser contestado”, ele respirou fundo, a voz grave soando como trovão abafado, “Mas a linhagem dele é poderosa. Ele carrega um nome antigo, um sangue que ainda queima. Ele teme o que você representa… e por isso virá com tudo que tem.”
Lilith falou com uma voz quase cortante.
“Não é a primeira vez que ele tenta acabar comigo. Mas agora… você está no controle. E ele ainda não entendeu isso.”
Heri completou.
“Ele pensa que luta contra Lilith. Mas é Aiko quem ele verá na frente dele. E essa é uma luta que ele não pode prever.”
Aiko se levantou. As sombras da sala se moveram com ela, como se o próprio castelo reconhecesse quem estava ali. A filha do Rei Demônio, o elo entre dois mundos, a herdeira de uma linhagem há muito silenciada.
“Onde ele está agora?”
O rei se ergueu também, lentamente.
“Em algum lugar entre as fronteiras do reino humano e o deserto negro. Ele se move como uma névoa, difícil de rastrear. Mas ele deixará rastros. Ele sempre deixa.”
Darkborn, encostado na parede da sala como uma montanha viva, falou.
“Eu posso sentir presenças como a dele. Quando se manifestar, saberei onde está.”
Aiko assentiu, o rosto sério, mas os olhos brilhando com uma chama que crescia a cada revelação.
“Então quando chegar a hora… levem-me até ele. Mas não interfiram.”
Ela virou-se para o pai.
“Eu quero olhar nos olhos dele e perguntar: Por quê? Por que tentou destruir tudo que fingiu proteger?”
O rei olhou para ela com orgulho, mas também com pesar.
“Talvez ele nem se lembre mais da resposta. Quando alguém busca o poder por tempo demais… esquece o motivo.”
Heri falou num tom baixo, frio.
“Ou talvez… ele nunca teve um motivo.”
Lilith sussurrou com desdém.
“Só um desejo vazio de domínio.”
Aiko caminhou até a porta da câmara, seus passos ressoando pelo mármore negro.
“Então está decidido. Quando ele aparecer… ele será meu.”
“E se ele tentar te manipular?”, perguntou o Rei, sério.
Ela parou e olhou por sobre o ombro.
“Então eu o farei lembrar quem eu sou.”
Ela abriu as portas. Uma rajada de vento carregado de poeira invadiu a sala, balançando seus cabelos. No reflexo de um espelho de obsidiana, sua silhueta apareceu. Ela, com a armadura real dos demônios, com um cavaleiro como sombra e uma espada viva cravada nas costas. Um novo símbolo havia nascido. Uma princesa esquecida. Uma guerreira renascida.
Aquele que se dizia herói… enfrentaria agora o verdadeiro nome da calamidade.
Aiko.

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