Capítulo 20 – Peso e Pólvora
O tempo já não se media em horas no Semente do Caos, mas em tarefas mal-acabadas, passos apressados e suspiros abafados nos cantos.
Era como se o próprio navio, pulsando com vida sutil e orgânica, tivesse decidido respirar através do caos.
No convés inferior, a luz das lamparinas oscilava em tons de dourado-enferrujado, lançando sombras trêmulas pelas paredes de madeira viva. As vigas estalavam como se guardassem segredos. O ar, espesso como um tecido encharcado, grudava na pele e entrava pelos pulmões com um gosto agridoce — ferrugem molhada, couro gasto, suor antigo e um fundo floral, quase cínico, de chá de hibisco esquecido em alguma caneca. Tudo ali cheirava a esforço. A pressa. A cansaço.
Nix avançava entre corredores que pareciam se estreitar mais a cada dia. A madeira sob seus pés rangia de um jeito que não soava como alerta, mas como lamento. Um novo vazamento serpenteava pelas tubulações, pingando em um balde torto com cadência irritante — tac… tac… tac — zombando da falta de tempo, da falta de braços, da falta dela.
Mais adiante, um pequeno tumulto: dois jovens Jïa, roupas vibrantes e olhos faiscantes, se empurravam ao redor de um mapa antigo, agora rasgado no meio como um símbolo do que ainda estava por vir.
— Era meu! — gritou um deles, os dedos apertando o papel com raiva.
— Você nem sabe ler as runas! — devolveu o outro, empurrando o peito do rival.
Nix tentou intervir, os braços erguidos entre os dois como quem aparta uma tempestade com palavras brandas. Sua voz saiu calma, mas não firme.
— Meninos! — ignorada.
E o mais cruel não foi ser ignorada foi perceber que, ali, naquele momento, sua autoridade parecia uma vela acesa em vento forte: ainda acesa, mas oscilando. Como se sua presença, antes capaz de silenciar uma sala com um único olhar, agora precisasse disputar espaço com a tensão do convés.
Sem tempo — e talvez sem mais energia para tentar —, seguiu adiante ao ouvir um segundo grito de sua tia, cada passo um esforço para manter a postura.
Na oficina, o cheiro de óleo queimado, graxa e metal aquecido se derramava pelo corredor como fumaça invisível. A porta estava entreaberta, e lá dentro, o caos era outro. Panacéia, com os cabelos presos de qualquer jeito por um pedaço de pano manchado, erguia-se como uma tempestade de metal e voz.
— Eu pedi espaço, não turismo! — rugiu, segurando um martelo como quem empunha uma sentença. — Isso aqui é uma forja, não um salão de chá!
Diante dela, um ancião curvado sustentava o embate com a teimosia de quem já sobreviveu a muitas guerras, o olhar duro como pedra de rio. O som do conflito reverberava nas paredes, sacudindo as cortinas de miçangas penduradas como sinos de vento em tempo ruim.
Nix parou na porta. Quis sorrir — para desarmar. Quis mediar — para acalmar. Quis dizer algo sábio, que fizesse tudo parar.
Mas tudo que conseguiu foi ficar ali, imóvel, por segundos longos demais. Sentia o calor do metal, do vapor e da frustração colarem nela como um manto sufocante. O cansaço fazia os ombros latejarem, como se a carne estivesse cansada de segurar o que a alma não dizia.
Tentou sorrir. Tentou ser justa. Tentou não gritar.
Não funcionou.
Ela simplesmente se virou e foi embora, sem dizer uma palavra, como quem foge do espelho quando não aguenta o próprio reflexo.
Cada corredor parecia mais estreito. Cada olhar que cruzava, mais faminto por respostas. Cada problema, mais urgente. Era como se o próprio navio — essa criatura viva e temperamental — se apertasse em torno dela, exigindo, exigindo, exigindo.
As vozes se sobrepunham como ondas sem pausa. As responsabilidades se multiplicavam como raízes crescendo por baixo das tábuas. E por um instante, silencioso e cruel, Nix sentiu algo escorregar dentro de si: um pequeno colapso, sutil, quase imperceptível — como uma rachadura que não faz barulho, mas anuncia o início do desmoronamento.
Ela era a capitã.
Mas ali, naquela manhã abafada de gritos e exigências, se sentia como apenas mais uma peça…
E, talvez, uma prestes a quebrar.
A dor nos ombros descia para o peito, apertando devagar, como se um gancho invisível puxasse sua respiração de dentro para fora. O ar do navio parecia rarefeito. A pele formigava sob a camisa colada pelo suor. Algo quente subia por dentro — um tremor miúdo, escondido entre as costelas.
Nix parou, encostou-se à parede úmida. Tentou respirar. Tentou pensar. Mas era como nadar contra um mar de vidro partido.
Então, o som ritmado de passos se aproximou atrás dela. Ferramentas tilintando em uma bandeja improvisada.
— Nixoria.
A voz de Panacéia cortou o ar como um bisturi preciso — sem dureza, mas sem espaço para fugas.
Nix não respondeu. As mãos apoiadas na parede tremiam. Os olhos fixos em nada.
Panacéia não perguntou o que estava acontecendo. Só observou. O peito arfando levemente, os músculos tensos, o silêncio forçado como um grito engolido.
Com calma ensaiada, a tia pousou a bandeja no chão. Sem invadir, sem tocar de imediato. Apenas se aproximou até estar ao lado dela, costas contra a parede oposta, como se dissesse: não vou te puxar, mas também não vou te deixar afundar sozinha.
— A gente cresce achando que dar conta de tudo é uma prova de força — disse, olhando para frente, não para ela. — Mas ninguém segura um navio inteiro nos ombros sem afundar junto.
O silêncio que se seguiu não foi vazio. Foi espaço. Espaço para Nix respirar. Ou tentar.
— Você é a capitã, Nix. Não a babá de todo mundo. — Panacéia virou o rosto agora, o olhar profundo e firme, mas sem cobrança. — Você tem uma tripulação Nixoria. A gente tá aqui pra te ajudar. Usa a gente. Usa a mim.
As palavras atravessaram Nix como um sopro num vitral trincado. Algo dentro dela se partiu — não com estardalhaço, mas com alívio. Uma rendição pequena. Humana.
Os joelhos falharam levemente. Panacéia se moveu com rapidez e delicadeza, segurando os ombros da sobrinha, guiando-a até o chão com a mesma firmeza com que se segura uma peça rara prestes a despencar da prateleira.
— Respira, amor. Devagar. — A voz era mais baixa agora, quase um sussurro. — Isso. Me ouve. Tá tudo bem não tá bem, entendeu?
Nix fechou os olhos, o rosto escondido entre os joelhos. Os braços ao redor das pernas, como quem tenta se proteger de um vento que vem de dentro.
Panacéia passou a mão pelas costas dela em círculos lentos. Não disse mais nada. Só ficou ali, sendo âncora.
E aos poucos — muito aos poucos — o formigamento foi cedendo. O ar começou a voltar. Primeiro em suspiros curtos, depois em respirações completas.
Nix ergueu o rosto. Os olhos vermelhos, mas secos.
— Desculpa — murmurou.
Panacéia riu baixo. Um riso de quem já quebrou, já colou os cacos e sabe que pedir desculpa não é necessário.
— Se você pedir desculpa por ser humana, eu vou jogar essa chave inglesa em você.
Nix soltou um som que era quase uma risada. Quase.
— Você é melhor forjando armas do que cuidando de gente.
— Por isso eu tenho um estoque inteiro de ferramentas. Mas você? — Panacéia apertou o ombro dela com carinho. — Você não precisa ser afiada o tempo todo.
Elas ficaram ali por mais um instante. O navio rangendo ao redor como se suspirasse junto. E Nix, pela primeira vez em dias, sentiu o peso dar uma trégua.
Ainda era a capitã. Mas talvez, só talvez, não estivesse tão sozinha quanto achava.
Mais tarde, do alto da escada que levava ao mastro principal, Nix observava sem ser vista.
Matthew estava no convés inferior, posicionado entre um pirata nervoso e um artesão ofendido. A discussão fervia, mas ele costurava palavras como quem lida com tecido delicado: firme o suficiente para não rasgar, flexível o bastante para dobrar. Em poucos minutos, os ânimos se acalmaram antes mesmo que os punhos se erguessem.
Alguns passos adiante, Madoc caminhava ao lado do líder Jïa. Tinha uma caneta presa entre os dedos e um caderno nas mãos, onde rabiscava com precisão quase devota. Anotava pedidos, organizava rotinas, cruzava nomes e horários como se enxergasse lógica onde só havia caos.
Nix inspirou fundo, os olhos percorrendo o navio como quem avalia uma criatura viva, cheia de pequenos ruídos e demandas invisíveis. Matthew, com sua lábia, fora encarregado de conter conflitos. Já Madoc… era um caso à parte.
Era por causa dele que sua cabeça doía com tanta frequência — ele que trazia todos os pequenos problemas até ela, como se estivesse decidido a não deixá-la esquecer de nenhum. E, mesmo assim, ela o observava com certa admiração amarga. Era metódico. E precisava de um nome.
— Madoc. — chamou, descendo a escada com passos leves. Ele virou o rosto, atento. — Preciso de um secretário.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Não sou muito bom com agendas.
Mas já anotava enquanto falava, como se a função já fosse sua fazia tempo.
Nix sorriu de leve. Pequeno, mas verdadeiro.
— Ótimo. Então você é perfeito pro cargo.
O tempo no interior da Semente do Caos parecia desacelerar cada vez que alguém pisava na sala de comando. Ali, onde o coração do navio — a árvore viva — pulsava com sua seiva quente e ritmada, até os sussurros tinham peso. O calor era constante, como se o ar emanasse direto das entranhas do vulcão adormecido.
A madeira viva se estendia pelas paredes, engolindo mapas antigos, bússolas quebradas e instrumentos que respiravam ao toque. Cipós finos, como veias, ligavam o chão ao teto, e no centro da sala, as raízes da árvore se entrelaçavam formando um pedestal natural, coberto de musgo. Sobre ele, repousava o cálice.
Pequeno. Fino. Negro como breu devorando toda a luz.
O Ancião, curvado diante do artefato, mantinha as mãos sobre o bastão de madeira retorcida. A barba trançada caía como um véu sobre o peito, e seus olhos — dois poços profundos de memória e luto — não piscavam.
— O Berço dos Dragões — murmurou Echo, rompendo o silêncio — fica além das Falésias Flutuantes. O caminho é instável, e as correntes de ar lá são imprevisíveis. Não há mapas fixos. O céu muda.
Ele erguia as mãos enquanto falava, desenhando trajetórias invisíveis no ar, como se moldasse o vento.
— A entrada foi selada por entidades que viveram antes da contagem dos dias. O ar ali… não é feito para os vivos — completou Madoc, apoiado à parede, a expressão fechada. — Nem para os mortos.
O Ancião finalmente se moveu. A voz era baixa, mas ressoava com a autoridade de quem viu eras passarem como folhas ao vento.
— Nós, os Jïa, chamamos aquele lugar de Hîravh-dûn, a garganta do mundo. Dizem que abriga usurpadores de alma — coisas que tomam sua forma e suas memórias até você não lembrar mais quem é, ou o que era.
Ele passou os dedos ao redor do cálice, sem tocá-lo diretamente. O objeto parecia reagir, vibrando levemente, como um animal acuado.
— Esse cálice não pode ser destruído em qualquer lugar. Ele foi forjado em fogo profundo. Apenas onde nasceu poderá morrer. Mas o Berço exige mais do que coragem ou força.
— Vai exigir fé — murmurou Echo.
Nix permanecia calada até então, os olhos fixos no artefato. Havia algo nela que parecia resistir ao ar da sala — como se quisesse sair, correr, respirar outra realidade. Mas não podia. Não mais.
— Como se atravessa um céu que muda a cada batida de asa? — perguntou, por fim, sem tirar os olhos do cálice.
— Com algo que voe mais alto — respondeu o Ancião. — Ou algo que não tenha medo de cair.
Silêncio.
Até que Madoc bufou.
— Poético demais pro meu gosto. Vamos precisar de mapas vivos, não metáforas. E alguém que conheça as correntes.
Echo assentiu.
— Há um povo nas bordas do mundo que sobrevive ali, nas margens das falésias. Contrabandistas, exilados, sobreviventes. Chamam-se Os Escaldados. Se conseguirmos que nos levem, podemos atravessar com segurança até a borda do vulcão.
— E se não quiserem ajudar? — perguntou Nix.
O Ancião sorriu, com certa amargura.
— Então devemos convencê-los com histórias. Ou com ouro. Ou com sangue.
As raízes da árvore se contraíram suavemente, como se sentissem o peso do que estava por vir.
Nix enfim se aproximou do cálice. A luz da seiva da árvore refletia em seus olhos, criando nuances douradas onde antes havia apenas cinza.
Ela estendeu a mão — e não tocou.
— Quando chegarmos ao Berço… não vamos sair os mesmos, vamos?
O silêncio da sala foi resposta suficiente.
E lá fora, o vento soprou mais forte do que o normal, como se o próprio navio tivesse ouvido.
A noite caiu em azul sobre o casco do navio, salpicada de estrelas. No convés, o vento morno brincava com as faixas vermelhas presas ao timão. Os Jïa corriam animados pra o aniversário de Elena no dia seguinte.
— Por que você confia tanto em mim? — perguntou Madoc aparecendo com mais enfeites — Eu tentei te matar.
— Eu sei. E mesmo assim… confio. Você vai me trair?
O silêncio durou o tempo de um trovão distante.
— Não.
— Ok.
As ondas batiam suaves no casco. A madeira pulsava com uma calma viva. Eles não disseram mais nada — e não precisavam.
Perto da vela, Matthew pendurava os enfeites, ou fingia. Quando Madoc passou por ele, ouviu a voz carregada de ironia:
— Se fizer algo a ela eu te jogo no mar.
Madoc apenas ergueu uma sobrancelha.
— Não é como se eu não fosse um peixe.
— Madoc.
— Eu não vou.
Matthew sorriu, quase sério.
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