O sol mal havia subido quando Panacéia levou as meninas para fora do estaleiro. A cidade portuária já estava desperta, embalada pelo cheiro salgado do mar e pelo burburinho dos primeiros trabalhadores. O cais era um labirinto de ruelas estreitas, pulsando com vida e perigo em igual medida.

        Astéria alongou os braços preguiçosamente, os tentáculos ondulando atrás dela como se dançassem ao sabor da brisa.

        — Bom, se vão morar aqui, é melhor aprenderem a não morrer logo no primeiro dia. — Ela disse, um sorriso enviesado brincando nos lábios.

        Nix arqueou uma sobrancelha.

        — Isso foi um aviso ou uma ameaça?

        — As duas coisas. — Astéria piscou.

        Vênus suspirou, ajeitando o casaco nos ombros.

        — Se eu for esfaqueada antes do café da manhã, eu juro que volto para assombrar vocês.

        Panacéia riu, passando um braço ao redor dos ombros da filha adotiva.

        — Você já é um espírito atormentado, meu bem.

        Vênus bufou, mas não afastou o toque.

        — Vamos, andem logo. — Astéria tomou a frente, liderando-as pelo caos vibrante do Cais das Lágrimas.

        As ruas eram um espetáculo de excessos. Mercadores gritavam ofertas, tentando vender de tudo — frutas exóticas, especiarias, armas e até segredos. Piratas e marinheiros negociavam carregamentos entre goles de rum e apostas suspeitas. Em cada esquina, um cheiro diferente: peixe fresco, madeira molhada, álcool forte e o perfume adocicado dos cabarés.

        — Aqui, vocês encontram qualquer coisa. — Astéria gesticulou para a movimentação ao redor. — Mas o mais importante é saber onde procurar… e onde não procurar.

        Ela apontou para um beco estreito entre dois prédios inclinados. O chão de terra batida estava manchado por líquidos duvidosos, e o cheiro azedo de mofo e ferrugem se misturava ao odor metálico de sangue seco.

        Lojas clandestinas se escondiam nas sombras, suas portas semiabertas revelando mercadorias suspeitas. Um homem encapuzado negociava pequenas garrafas de vidro escuro com uma mulher de dentes afiados demais para serem humanos. Mais adiante, um vendedor abatido exibia joias e relógios sobre um pano surrado, seus olhos atentos a clientes… ou ladrões.

        Pessoas encostadas nas paredes observavam em silêncio, algumas afiando lâminas curtas, outras apenas esperando. Ratos gordos corriam entre pilhas de trapos, desaparecendo nos buracos entre os tijolos.

        No fundo do beco, onde a escuridão parecia mais densa, um grupo de figuras indistintas murmurava entre si. A conversa cessou assim que sentiram os olhares sobre eles.

        Astéria estalou a língua, puxando as meninas para longe.

        — Se quiserem continuar vivas e com todos os órgãos no lugar, melhor evitarem esse tipo de canto.

        — Ótimo. Lugares proibidos logo no primeiro dia. — Nix murmurou, os olhos cravados na entrada do beco.

        Astéria percebeu a curiosidade na expressão dela e apertou os olhos.

        — Nem pense nisso.

        Nix sorriu, sem confirmar nem negar.

        — Agora, se quiserem algo divertido… — Astéria abriu os braços, indicando uma fileira de tavernas e cabarés, cada um com letreiros chamativos e música alta escapando pelas portas entreabertas.

        Vênus cruzou os braços.

        — Você só quer uma desculpa para beber.

        — E você só quer uma desculpa para não se divertir. — Astéria rebateu, puxando-as sem esperar objeções.

        O calor do cabaré envolveu Nix no instante em que cruzaram a porta. O ar estava carregado com o cheiro de perfume, rum e tabaco. O piso de madeira rangia sob as botas dos frequentadores, e as risadas altas se misturavam à música animada de uma pequena banda no canto do salão.

        No palco central, uma mulher de cabelos dourados deslizava pelo salão, atraindo olhares famintos de marinheiros e piratas. Seu movimento era preciso, controlado — sedutor como um felino à espreita.

        Nix mal teve tempo de assimilar o ambiente antes que um par de olhos violeta encontrasse os seus. A dançarina hesitou por um instante, franzindo a testa. Então, um brilho de reconhecimento cruzou seu olhar.

        — Espere… eu te conheço. — Amarílis inclinou a cabeça. — Garota-gato do beco… Onde foram parar suas orelhas?

        Nix riu baixo, passando a mão pelo cabelo curto.

        — Aprendi um truque novo.

        — Hmm… esperta. — Amarílis sorriu. — Você mudou.

        A conversa entre as duas fluiu naturalmente, acompanhada pelo brilho suave das lamparinas e pelo aroma adocicado de especiarias no ar. Nix estava relaxada, sentindo a tensão inicial desaparecer enquanto falava com Amarílis. O cabaré ao redor continuava animado, com vozes e risadas se misturando ao som abafado da música, mas naquele momento, era como se estivessem em um canto isolado, apenas as duas.

        Amarílis apoiou o cotovelo na mesa, observando Nix com um sorriso astuto.

        — Você parece bem à vontade aqui — comentou, brincando com uma mecha dourada do cabelo. — Não achei que fosse o tipo que se sente em casa em um lugar assim.

        Nix deu de ombros, um sorriso de canto surgindo em seus lábios.

        — Eu me acostumo rápido. Além disso, já vivi em lugares piores.

        Amarílis ergueu uma sobrancelha, claramente interessada.

        — Ah, é? E que tipo de lugares?

        — orfanatos, templos, caravanas… já passei por muitas coisas.

        A resposta fez Amarílis soltar uma risada baixa, divertida.

        — Uma garota cheia de surpresas. Agora fiquei curiosa… você tem o jeito de quem sabe se virar. Mas me diga, sabe dançar?

        A pergunta veio carregada de um desafio sutil, como se estivesse testando Nix.

        Nix inclinou a cabeça levemente, os olhos brilhando com uma confiança travessa.

        — Claro. Aprendi com os Jïa.

        — Jïa? Os ciganos de Nipeeland? — Amarílis arqueou as sobrancelhas, visivelmente interessada.

        — Os próprios. — Nix confirmou.

        O sorriso da dançarina se alargou.

        — Então prove.

        Nix hesitou, medindo a outra com o olhar.

        — Aqui? Agora?

        — Ou será que só fala bonito?

        O brilho competitivo nos olhos de Nix acendeu no mesmo instante.

        — Você vai se arrepender de me provocar.

        Amarílis riu, puxando-a pelo pulso e guiando-a pelos bastidores do cabaré. O pequeno camarim era apertado e repleto de vestidos pendurados, tecidos brilhantes espalhados por toda parte. O cheiro de perfume doce e maquiagem antiga impregnava o ar.

        — Se vai dançar, precisa estar vestida para isso. — Amarílis jogou um conjunto para Nix.

        A jovem analisou as peças. A saia era leve e fluida, feita para se mover com cada passo. O top, enfeitado com pequenos espelhos e bordados, lembrava os trajes tradicionais dos Jïa.

        Ela deslizou os dedos pelo tecido, sentindo um calor estranho no peito. O reflexo no espelho parecia diferente. Pela primeira vez em muito tempo, ela não via a filha do Caos. Via alguém que poderia ser livre.

        Amarílis percebeu a mudança em sua expressão e tocou seu ombro levemente.

        — Está pronta?

        Nix respirou fundo, sentindo a excitação crescendo em seu peito.

        — Sempre.

        Amarílis sorriu e puxou-a de volta para o salão, onde os músicos começavam a tocar. O ritmo pulsante da percussão preencheu o espaço, e Nix sentiu o chamado da dança em seus ossos.

        Era hora de mostrar do que era feita.

        O salão ainda vibrava com os ecos da música quando Nix voltou ao centro, a saia fluindo ao seu redor como um redemoinho de cores. O peso dos olhares sobre ela era familiar, mas dessa vez, não era de julgamento. Era de curiosidade. De admiração.

        Os primeiros acordes ressoaram, e ela se moveu.

        O calor do fogo dançava contra sua pele enquanto os risos ecoavam ao seu redor. A cada giro, a cada estalar de dedos, Nix sentia a presença dos Jïa como se fossem uma extensão dela mesma. Os pés descalços marcavam o ritmo contra a o chão de pedra, e o cheiro de incenso e especiarias impregnava o ar.

        Ela tinha apenas doze anos quando Morfeus decidiu que morar com os Jïa era uma ótima ideia — ou melhor, uma ótima punição para ele mesmo, já que Andréa estava furiosa com alguma besteira que ele havia feito. Assim, os dois passaram meses vivendo sob as tendas coloridas, viajando de cidade em cidade ao lado dos ciganos.

        Nix lembrava-se de como os dias eram vibrantes, cheios de histórias e risadas, e as noites, embaladas pelo tilintar das pulseiras douradas e pelo rodopiar das saias. Os Jïa viviam através da música e da dança, e foi ali, entre palmas e melodias, que aprendeu a se mover com graça e ousadia.

        Naquele instante, no meio do cabaré, não estava mais ali. Estava de volta àquela memória, sentindo-se outra vez a garota de olhos brilhantes sob a lona vermelha e dourada da caravana. Uma garotinha que sabia onde pertencia, e talvez ela estivesse se encontrando de novo.

        Quando a música cessou, o silêncio durou apenas um segundo antes que os aplausos preenchessem o espaço. Amarílis sorriu, puxando-a para perto.

        — Nada mal, garota-gato.

        Nix arqueou uma sobrancelha.

        — Você ainda não viu nada.

        Mas a leveza da manhã foi interrompida pelo cheiro de álcool e suor.

        — Uma bela dança, docinho. Que tal dançar só pra mim agora?

        A voz era grossa, carregada de malícia. O pirata era um homem grande, com uma cicatriz no queixo e dentes manchados de tabaco. Seu hálito fedia a rum e carne estragada.

        Ele agarrou o pulso de Nix.

        O toque foi como um choque.

        — Tira a mão.

        Ele riu, apertando mais forte.

        — Ah, não seja arisca…

        O som do impacto ecoou pelo salão.

        O punho de Vênus encontrou o queixo do pirata, e ele cambaleou para trás, derrubando uma mesa. A tensão se espalhou pelo cabaré como pólvora.

        — Não toque na minha prima! — berrou.

        O pirata cuspiu no chão, os olhos faiscando.

        — Sua vadia…

        Antes que ele pudesse revidar, Nix girou sobre os calcanhares e cravou o joelho em seu estômago. O ar escapou dos pulmões dele em um gemido surdo.

        A sala congelou por um instante.

        E então, como se aquele fosse o sinal que todos esperavam, o caos explodiu.

        Garrafas voaram, cadeiras foram derrubadas, e punhos encontraram alvos aleatórios. Os músicos, em vez de fugirem, aumentaram o ritmo, como se transformassem a pancadaria em espetáculo.

        Astéria pulou sobre o balcão se escondendo com um suspiro exagerado.

        — Eu disse que não devíamos sair antes do café da manhã…

        Vênus derrubou outro marinheiro com um chute no peito.

        — Eu só queria uma manhã tranquila!

        Nix desviou de um soco, rindo enquanto puxava Astéria em direção à saída. Elas correram pelas ruas do cais, os ecos da briga ainda vibrando atrás delas.

        Quando finalmente chegaram ao estaleiro, se jogaram sobre um monte de feno, recuperando o fôlego.

        Astéria passou a língua pelo lábio cortado e sorriu.

        — Isso foi… divertido.

        Vênus revirou os olhos.

        — Você precisa de uma nova definição para “diversão”.

        Nix riu, olhando para o céu estrelado. O sal do mar impregnava o ar, e as risadas ainda vibravam em seu peito.

        O Cais das Lágrimas era um caos.

        E ela nunca se sentiu tão viva.


        O cheiro de peixe e especiarias ainda impregnava suas roupas quando Nix e Vênus voltaram para o estaleiro. O sol estava no auge, tornando o calor do meio-dia quase sufocante, e o silêncio da casa improvisada era um contraste gritante com o burburinho do Cais.

        Panacéia não estava à vista, mas havia deixado comida pronta sobre o fogão de lenha — um gesto silencioso que indicava que, apesar de sua ausência, ainda cuidava delas. Vênus se serviu primeiro, mas Nix, inquieta, decidiu procurar pela tia.

        O armazém nos fundos do estaleiro era um espaço amplo e escuro, onde peças de metal e madeira se amontoavam em prateleiras e bancadas de trabalho. O som ritmado de marteladas ecoava pelo lugar, guiando Nix até Panacéia.

        A fada estava concentrada, suja de fuligem e graxa, esculpindo detalhes em um grande corpo metálico. O golem de ferro ainda não estava completo, mas já tinha forma: um torso robusto, braços fortes e uma cabeça lisa, sem rosto. Panacéia parou por um instante, passando o antebraço sobre a testa suada, e olhou para Nix.

        — Fico feliz que tenha voltado inteira. — Seu tom era neutro, mas havia algo nos olhos dela que transbordava alívio e cansaço.

        Nix hesitou, cruzando os braços.

        — Você sabia que Astéria ia nos levar para aquele cabaré, né?

        Panacéia soltou uma risada curta, voltando a ajustar uma das juntas metálicas do golem.

        — Claro que sim. Você precisa conhecer o Cais como ele realmente é, não como você imagina que seja.

        — Não podia ter nos levado você mesma?

        — Eu queria que você visse as coisas com seus próprios olhos. E, para ser sincera, precisava de um tempo sozinha.

        Nix ficou em silêncio por um momento, observando o golem tomar forma.

        — É sobre o Zander, não é?

        O som das ferramentas cessou. Panacéia inspirou fundo antes de responder:

        — Sempre é sobre ele.

        A voz dela não carregava tristeza, mas um peso que Nix reconhecia bem. A saudade transformada em algo palpável, moldado em ferro e suor.

        — Eu nunca vou superar isso. — Panacéia admitiu, pousando as mãos sobre o metal frio. — Mas a gente aprende a seguir em frente, de um jeito ou de outro.

        Nix desviou o olhar, sentindo um nó na garganta.

        — Eu queria ter feito algo. Ter sido mais forte.

        Panacéia encarou a sobrinha por um longo momento antes de pegar uma pequena peça de metal e entregá-la a ela.

        — Se quer fazer algo, construa.

        Nix franziu a testa, confusa.

        — Como assim?

        — O passado não muda, mas o que você faz daqui para frente pode. Construa algo que simbolize o começo da sua nova jornada. Algo seu.

        Nix segurou o pedaço de metal, sentindo seu peso.

        — Tipo o seu golem?

        — Tipo o seu próprio navio.

        A resposta pegou Nix de surpresa. Ela olhou para a tia, que apenas sorriu de canto e voltou ao trabalho.

        Por algum motivo, a ideia pareceu mais concreta do que nunca.

    próximo capitulo dia 7 de março

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