Próximo capitulo sai dia 14 de março
Capitulo 8
O calor da tarde tornava o estaleiro abafado, e o cheiro de serragem e óleo de máquina impregnava o ar. Nix ainda segurava o pedaço de metal que Panacéia lhe dera, sentindo o peso daquilo. Se queria seguir em frente, precisava construir algo. Algo que fosse dela.
Sem pensar muito, seguiu pelos corredores do estaleiro até uma porta que raramente era aberta. O escritório do avô.
Ela nunca o conhecera — um homem cujo nome era apenas uma sombra nas conversas de Panacéia e Andréa. Mas ali, naquele cômodo empoeirado, suas ideias ainda viviam.
Empurrando a porta, Nix se deparou com prateleiras abarrotadas de pergaminhos, livros e peças de metal enferrujadas. A luz do fim de tarde filtrava-se pelas janelas sujas, iluminando os desenhos espalhados sobre uma enorme mesa de madeira.
— Projetos de navios… — murmurou enquanto folheava os documentos.
Eram dezenas deles: esboços detalhados, linhas finas traçando formas elegantes e robustas. Alguns tinham mastros altos como árvores, outros exibições de velas que pareciam asas abertas. Havia embarcações de casco reforçado, feitas para resistir a tempestades, e outras menores, ágeis como pássaros sobre a água.
Nix deslizou os dedos sobre o papel, como se pudesse sentir a madeira e as velas já ganhando forma sob sua pele. Eram lindos. Eram perfeitos. Mas, naquele instante, pareciam tão distantes quanto o próprio horizonte.
— Então você quer construir um navio?
A voz de Astéria quebrou o silêncio. A mulher-polvo estava encostada no batente da porta, os braços cruzados, o olhar afiado como lâminas. O cheiro de sal e maresia era mais forte ali, onde o estaleiro encontrava o porto.
Nix soltou um suspiro e largou o pergaminho sobre a mesa.
— Quero. Mas não sei nem por onde começar.
Astéria pegou o desenho, analisando-o com um assobio baixo.
— Seu avô sabia o que estava fazendo. Esses traços são de um mestre.
— Pois é. — Seu olhar tinha cheiro de sal. — Nem sei por onde começar.
A mulher riu, aproximando-se.
— Primeiro passo é admitir que não sabe nada. O segundo… é aprender. — Ela estendeu a mão para Nix, os olhos cheios de uma promessa silenciosa. — Vem.
Nix hesitou por um instante, depois segurou a mão dela.
Foram até uma mesa de trabalho mais afastada. Astéria desenrolou um grande pedaço de papel branco e pegou uma pena.
— Isso aqui é um blueprint. O esqueleto do seu navio. Antes de construir qualquer coisa, precisa saber exatamente onde cada peça vai ficar.
Ela deslizou a pena pelo papel, traçando um retângulo longo.
— O casco. É o que mantém tudo de pé. Precisa ser forte, equilibrado. O que você quer? Velocidade ou resistência?
— Velocidade.
— É claro que quer. — Ajustou as linhas, afinando a forma. — Agora, o mastro. Tem que ser grande o suficiente pra pegar bons ventos, mas não tanto que te derrube na primeira tempestade.
Nix observava fascinada enquanto as estruturas surgiam diante dela: a espinha dorsal do navio, os lemes, a quilha mantendo tudo estável.
— E a cabine? — perguntou, mordendo o lábio.
— Depende. Quantas pessoas você quer a bordo?
Nix pensou por um momento.
— Não sei. Qual o mínimo pra um navio pequeno funcionar?
— 20 pessoas — Astéria rabiscou uma pequena estrutura. — Normalmente eles tem um único cômodo cheio de redes. No máximo 2 um feminino e um masculino.
— Aqui pode ser o dormitório da tripulação. E esse espaço menor, a cabine do capitão.
Nix encarou o blueprint. Pela primeira vez, seu navio não era só uma ideia solta em sua mente. Ele estava ali, tomando forma, pronto para ganhar vida.
Ela passou os dedos sobre o papel, sentindo a textura áspera das anotações recentes. Linhas e medidas dançavam na sua frente, mas, pela primeira vez, pareciam mais concretas do que um simples devaneio.
Nix observava Astéria com atenção. A mulher-polvo desenhava com precisão, a pena deslizando pelo papel com a facilidade de alguém que conhecia aqueles traços como uma segunda pele. Os tentáculos dela se moviam quase imperceptivelmente, pegando instrumentos de medição e ajustando os ângulos sem que precisasse desviar a atenção.
— Você já navegou muito? — perguntou Nix, os olhos presos no desenho do casco.
Astéria sorriu, um brilho astuto no olhar.
— Já vi oceanos que você nem imagina. Cidades flutuantes, ilhas que aparecem e desaparecem com a maré… — Seus dedos traçaram o contorno de uma vela, ajustando a curvatura com precisão. — Já ouviu falar de Terravista?
Nix franziu a testa.
— É uma ilha?
— É mais do que isso. Terravista é um refúgio. Um porto que não existe em mapa nenhum, onde só os que conhecem o caminho conseguem chegar. Ali, os exilados, os sonhadores e os condenados encontram um lar. Os piratas chamam de Paraíso do Caos. — Ela inclinou a cabeça, avaliando a reação da garota. — Achei que já tivesse ouvido histórias sobre isso.
— Tia Pan se gabar de quando velejar ao lado da “rainha pirata”! Mas fora isso… — Nix apoiou os cotovelos na mesa, intrigada. — Spades é um país de piratas, mas parece que todo mundo que vive aqui prefere fingir que não é.
Astéria soltou uma risada baixa.
— Panacéia chama de capitalismo, os que mandam tentam fingir que somos apenas comerciantes do mar. Mas a verdade é que o oceano pertence aos que têm coragem de conquistá-lo. — Ela girou a pena entre os dedos. — E se você quer ser uma pirata de verdade, precisa entender isso.
Astéria se levantou, alisando a camisa com um movimento preguiçoso.
— Pense nisso, gatinha. E tente não se afogar antes de aprender a nadar.
Ela piscou, um meio sorriso dançando nos lábios, e saiu antes que Nix pudesse responder.
O silêncio se instalou.
Nix ficou ali, os cotovelos ainda apoiados na mesa, sentindo a madeira áspera sob a pele. O peso das palavras de Astéria parecia ter ficado no ar, pairando como a fumaça de um pavio recém-apagado.
“o que é ser um pirata?”
Ela já sabia o que os livros diziam—os romances cheios de bravatas sobre aventuras e tesouros escondidos. Sabia o que os comerciantes e nobres diziam—ladrões do mar, criminosos que desafiavam a ordem. Mas para alguém como Astéria, para os que chamavam o oceano de lar… era algo maior.
Nix suspirou, retirando os óculos e girando-os entre os dedos. As lentes refletiam a luz fraca da lamparina, e por um instante, ela viu Zander ali, como se ele estivesse sentado à sua frente, apoiando o queixo nas mãos como fazia quando escutava suas histórias sem pé nem cabeça.
— E agora? — murmurou para os óculos, como se fossem ele.
Se Zander estivesse ali, o que diria? Provavelmente daria aquele sorriso gentil e falaria algo sábio, algo que a fizesse pensar. Ou então reviraria os olhos e diria “você já sabe o que fazer, só está enrolando”.
Ela bufou.
Talvez estivesse.
A única maneira de entender os piratas era vendo-os com os próprios olhos.
Nix se levantou num impulso, encaixando os óculos no rosto. A cadeira rangeu quando a empurrou para trás, mas antes que pudesse pensar demais, já estava caminhando para fora.
O cheiro salgado do mar misturava-se ao de peixe fresco e óleo de lampião. O Cais das Lágrimas nunca dormia. Mesmo àquela hora, becos e pontes improvisadas fervilhavam com piratas, mercadores e andarilhos.
Encostada em um pilar de madeira, observou o movimento abaixo. Barcos iam e vinham, carregando tesouros ou apenas tripulações animadas. Sob as ondas, feéricos aquáticos deslizavam graciosamente, alguns emergindo para negociar com comerciantes da superfície.
Nix girou os óculos entre os dedos, pensativa.
— O que você acha, Zander? — murmurou. — Um porto onde ninguém precisa se esconder… Soa como um sonho, não acha?
Passou a mão pelos cabelos. Spades era um país de piratas, mas todos pareciam querer fingir que não eram. Astéria estava certa. Ser pirata não era só uma profissão, era um jeito de viver.
Se quisesse ser uma de verdade, precisava aprender.
Os olhos brilharam com uma nova ideia. Não encontraria respostas parada ali.
Virou-se e desceu as escadas de madeira, misturando-se à multidão.
O vento balançava os lampiões, lançando sombras dançantes pelo cais. O cheiro de rum e especiarias impregnava o ar. Nix seguiu para o bar principal, um casarão de três andares de madeira escura e vidro embaçado pelo tempo.
Empurrou a porta e foi recebida pelo calor abafado. Risadas e música enchiam o ambiente, copos se chocavam, o cheiro de tabaco se misturava ao da bebida. O teto era decorado com velas de navio, e redes pendiam das vigas como se o bar pudesse zarpar a qualquer momento.
— Nixoria! — a voz familiar de Panacéia cortou o ambiente.
A tia estava recostada no balcão, um copo na mão e um sorriso presunçoso no rosto. Sua presença parecia ser tão parte do bar quanto as vigas que o sustentavam.
— Finalmente resolveu sair da toca? Venha cá, tenho velhos amigos que você precisa conhecer. — Ela ergueu a bebida para um brinde antes de virar-se e caminhar para uma mesa nos fundos.
Nix seguiu Panacéia, desviando dos piratas que dançavam, discutiam ou simplesmente riam alto sobre quem trapaceara no último jogo de cartas. O ar estava carregado com o cheiro de rum, tabaco e sal do mar. A música acelerava, acompanhada pelo som de botas batendo contra o assoalho desgastado.
Panacéia parou ao lado de uma mesa nos fundos, onde um grupo peculiar fazia barulho.
— Bem, bem, bem, se não é a Pan! Achei que tinha morrido ou virado comerciante — provocou um homem com um tapa-olho, ajeitando o grande casaco de veludo bordado enquanto servia mais rum para si.
— Você já me viu ficar parada tempo o suficiente pra vender qualquer coisa, Dario? — Panacéia cruzou os braços, desafiadora.
A mulher ao lado dele bufou uma risada. Seus cabelos eram curtos e espetados, a pele cinzenta e rachada como pedra bruta.
— Ela tem razão. O dia em que Panacéia parar quieta, o mar seca.
— E quem é essa? — interrompeu o terceiro do grupo, um feérico aquático de pele azulada e guelras pulsantes no pescoço. Seus olhos, grandes e escuros, brilharam com curiosidade ao se fixarem em Nix.
— Minha sobrinha — Panacéia anunciou, puxando-a pelo ombro. — Nixoria.
Dario ergueu a sobrancelha.
— Seu nome me parece familiar…
— Não é o nome, é a cara — a mulher de pedra observou, inclinando-se para frente. — Lembra aquele médico? O garoto que a gente ajudou em… como era mesmo o nome daquele buraco?
— ilha das almas, no Mar de Caos — murmurou o feérico.
Panacéia pigarreou, desviando o assunto.
— Enfim, agora ela tá pensando em seguir o caminho certo.
— Certo? — Dario soltou uma gargalhada rouca. — O certo é sempre no mar, menina.
— Isso é o que estou tentando descobrir — Nix respondeu, cruzando os braços.
O grupo trocou olhares divertidos.
— Essa eu gostei — a mulher sorriu. — Senta aí, garota. Deixa eu te contar como eu virei pirata.
Enquanto eles se acomodavam, Nix tirou os óculos e começou a limpá-los com a ponta da camisa, o mundo ficando embaçado diante dela. Mas então, seu olhar se desviou para um canto mais escuro do bar. Seu coração parou por um instante.
Zander.
Ele não estava realmente ali—ela sabia disso. Mas, por um momento, a luz das velas tremulou e seu irmão parecia sentado à mesa, os cotovelos apoiados, observando-a com um sorriso discreto.
“Você estava certo.”
Ele levantou o copo como se lhe oferecesse um brinde
Nix queria aquela liberdade. A mesma que brilhava nos olhos dos piratas, que fazia aqueles homens e mulheres largarem tudo para se lançar ao mar, sem amarras, sem mentiras.
Respirando fundo, recolocou os óculos e voltou-se para o grupo.
— Então, como foi que vocês começaram?
Os piratas sorriram.
— Ah, essa é uma boa história.
E a noite seguiu com risadas, histórias e promessas de um futuro diferente.
O escritório do avô tornou-se seu refúgio. O mundo ao redor foi desaparecendo aos poucos, dissolvendo-se no som do carvão riscando o pergaminho e no farfalhar das folhas que se acumulavam ao seu redor. O dia se misturava com a noite, e o tempo tornou-se um borrão.
Os rabiscos se multiplicavam. As ideias tomavam forma. Os cálculos se repetiam, se anulavam e se refaziam. E Nix continuava ali, sem perceber que, ao transformar um sonho em realidade, estava se deixando consumir por ele.
Foi Vênus quem percebeu primeiro.
No começo, estranhou o silêncio. Nix era elétrica, sempre em movimento, sempre com algo para dizer. Mas agora, o escritório do avô parecia tê-la engolido. Quando Vênus passava pelo corredor, via a prima imersa nos papéis, os olhos fixos, brilhando com uma intensidade quase obsessiva.
Então, percebeu outra coisa.
Os pratos deixados para Nix voltavam intocados. Às vezes, quando lembrava, ela mordiscava algo, mas nunca parava para uma refeição de verdade. Ocasionalmente, pegava uma fruta qualquer e devorava sem atenção, como se fosse só combustível para continuar trabalhando.
Vênus franziu o cenho. Nix nunca recusava comida.
Naquele momento, ficou claro que não adiantava pedir para que ela saísse do escritório, que descansasse ou se lembrasse de comer. Se queria ajudá-la, teria que encontrar outra maneira.
O calor do fogão a lenha preenchia a pequena cozinha de Panacéia, misturando-se ao cheiro salgado do mar que nunca ia embora. Vênus mexia a panela com atenção, observando o ensopado borbulhar enquanto o aroma de peixe, ervas e especiarias se espalhava pelo cômodo.
Ela nunca fora uma cozinheira excepcional—seu talento estava mais para caçar e preparar carnes assadas, coisa de dragão. Mas Nix não estava comendo direito, e se a prima não vinha até a comida, a comida iria até ela.
Com um suspiro, Vênus experimentou o caldo. Morno, bem temperado… estava bom. Pelo menos, ela achava.
Desligou o fogo, serviu uma tigela generosa e saiu da cozinha, os passos firmes ecoando pelo piso de madeira.
Nix estava no mesmo lugar de sempre, jogada sobre a mesa, os óculos meio tortos no rosto, perdida sabe-se lá em que pensamento.
Vênus bufou.
Sem cerimônia, colocou a tigela à sua frente. O vapor subiu em espirais preguiçosas.
— Você precisa comer. — Declarou, cruzando os braços.
A prima piscou algumas vezes, parecendo voltar à realidade.
— Eu comi mais cedo. — Murmurou.
Vênus arqueou a sobrancelha.
— Mentira.
Puxou uma cadeira, sentou-se e ficou ali, encarando Nix como um predador à espreita. Depois de um suspiro exagerado, a garota cedeu. Pegou a colher, soprou o caldo e levou à boca.
E fez uma careta.
Vênus franziu o cenho.
— Eu juro que tava bom quando provei.
— Talvez sua língua esteja morta. — Nix zombou, forçando-se a engolir.
Vênus rolou os olhos, mas um canto da boca se ergueu.
Foi o primeiro sorriso genuíno que trocaram em dias.
Na manhã seguinte, Vênus apareceu outra vez, desta vez com pães recheados com queijo.
— Coma enquanto ainda estão quentes.
Nix pegou um, experimentou uma mordida e, em seguida, bateu o pão contra a mesa. O som ecoou pelo cômodo como uma pedra batendo na madeira.
— Será que dá pra usar como munição?
— A cala a boca! — Vênus protestou, indignada.
Elas riram de novo, e, mais uma vez, Nix se afastou dos papéis por mais do que alguns minutos.
E assim os dias seguiram. Vênus testava receitas, algumas desastrosas, outras razoáveis. Mas não importava o resultado, porque a verdadeira intenção nunca foi a comida.
Foi só no terceiro dia que Vênus finalmente acertou.
O bolo era pequeno, simples, mas bonito: dourado por fora, fofo como nuvem por dentro. O mel ainda escorria quente entre as rachaduras da massa recém-saída do forno, e o cheiro doce e reconfortante tomou conta do escritório improvisado de Nix, espalhando-se entre papéis rabiscados, ferramentas de marcenaria e livros técnicos sobre engenharia naval.
Nix nem percebeu o quanto estava faminta até dar a primeira mordida. Os olhos se fecharam brevemente, e um suspiro escapou sem permissão.
— Se continuar assim, vou acabar me acostumando a ser mimada. — murmurou com um meio sorriso, recostando-se na cadeira de madeira gasta, as pernas esticadas, o prato no colo.
Vênus, de pé ao lado da porta, cruzava os braços. Usava ainda o avental amarelado da cozinha, salpicado de farinha e mel seco, e mexia na barra do tecido com os dedos grandes e inquietos.
— Alguém tem que garantir que você coma. — respondeu, evitando o olhar da prima.
Disse em tom quase casual, como se estivesse brincando. Mas o peso em sua voz denunciava outra coisa. Preocupação. Cuidado. Afeto.
O silêncio entre as duas se estendeu, mas não era incômodo. Era do tipo que dizia mais do que qualquer palavra conseguiria.
Nix mordeu mais um pedaço do bolo e olhou de canto para a dragona. O rosto de Vênus estava voltado para a janela, os olhos fixos em algum ponto do estaleiro lá fora, como se estivesse vigiando o tempo, ou esperando que algo — ou alguém — aparecesse para quebrar o incômodo da própria vulnerabilidade.
— Sabe… — Nix começou, com a voz mais suave. — Você não precisa fazer isso. Se obrigar a cuidar de mim desse jeito. Eu… sei que ando difícil.
Vênus bufou com suavidade, mas não sorriu.
— E você acha que eu sou fácil?
Isso arrancou de Nix um riso leve, quase involuntário. Ela balançou a cabeça, e por um momento as duas se entreolharam. Um olhar breve, mas cheio de história. De infância dividida, perdas em comum, e promessas silenciosas que nunca precisaram ser ditas em voz alta.
— Eu só não sei se estou fazendo isso direito — confessou Vênus, finalmente. — A coisa certa, sabe? Às vezes parece que todo mundo sabe como ajudar, menos eu.
— Você está aqui. — Nix respondeu, num sussurro. — Isso já é mais do que o suficiente.
Vênus desviou o olhar de novo, mordendo o lábio inferior. Depois, como quem tenta esconder a emoção sob uma nova tarefa, se inclinou para recolher o prato já vazio da prima.
— E o bolo? — perguntou, sem encará-la, quase sussurrando.
Nix esticou uma das pernas, encostando o pé na canela da prima de leve.
— Acho que foi o melhor até agora. Mas talvez… só talvez… eu precise provar de novo amanhã pra ter certeza.
Vênus soltou um som entre riso e suspiro. Finalmente, um sorriso de verdade surgiu em seu rosto — pequeno, quase envergonhado, mas sincero.
Elas não precisavam falar sobre tudo. Sobre o buraco que Zander deixara, sobre o esforço de manter Nix de pé, sobre a necessidade de encontrar um caminho quando todos pareciam perdidos.
Os dias seguiram esse ritmo. Nix afundada nos projetos, Vênus aparecendo com uma nova tentativa culinária. Nem sempre a comida era boa, mas as risadas que compartilhavam faziam tudo valer a pena.
E, de alguma forma, sem perceber, estavam criando algo juntas.
O barulho das ondas quebrando contra os cascos dos navios se misturava ao grito dos marinheiros e ao cheiro de sal e óleo queimado. Nix, sentada sobre um monte de cordas encharcadas, observava um grupo de homens preparando um pequeno barco para zarpar. A embarcação era menor do que qualquer navio mercante do Cais, mas ainda assim exigia uma tripulação de pelo menos vinte pessoas. Eles ajustavam velas, verificavam âncoras, conferiam barris de suprimentos e coordenavam-se com uma precisão que parecia natural, mas que Nix sabia ser resultado de anos de treinamento e convivência.
Vinte pessoas para um barco pequeno. E se fosse maior? Cinquenta? Cem? Dependência demais.
Ela estalou a língua e recostou-se nas cordas, observando as mãos calejadas dos marinheiros trabalharem. Então, algo chamou sua atenção: mais à frente, perto da taverna, um autômato de cobre carregava barris sozinho, movendo-se com passos pesados, mas precisos. Ele não hesitava, não se cansava. Funcionava porque alguém o havia construído daquela forma.
Nix abaixou o olhar para seu próprio esboço de seu barco, rabiscado em uma folha amassada de pergaminho. O sonho de ter um navio próprio começava a ganhar forma, mas sempre que levava em conta a quantidade de tripulantes necessários, os números ficavam impossíveis. O barco precisava ser grande o bastante para viagens longas, mas ela nunca teria marinheiros suficientes para operá-lo.
Ela puxou outra folha e começou a rabiscar, suas anotações ficando cada vez mais frenéticas. Um navio comum dependia do vento, das correntes e do esforço humano para se mover. Mas e se ele pudesse se mover sozinho? Não com um leme fixo ou velas autônomas, mas com consciência. Um navio que fosse um ser vivo, que entendesse seu capitão e navegasse sem precisar de uma multidão para funcionar.
Um golem. Um navio que fosse um golem.
O conceito era ridículo. Grandes mestres artesãos gastavam anos criando golens para funções simples, como levantar cargas. Fazer algo do tamanho de um navio? Isso não existia. Mas Nix não precisava que existisse. Precisava apenas descobrir como torná-lo real.
Seu coração bateu mais rápido. Se conseguisse dar ao seu barco um núcleo próprio, um espírito que o movesse, então não precisaria de dezenas de tripulantes. Poderia zarpar quando quisesse. Até mesmo sozinha.
Os primeiros esboços do golem-navio começaram a tomar forma naquela mesma noite. Nix passou horas dentro do galpão de Panacéia, cercada por ferramentas, pergaminhos e pedaços de metal descartados. Ela não era uma artífice, mas aprendera o suficiente observando os ferreiros do Cais para saber que precisaria de três elementos fundamentais: uma estrutura resistente, um núcleo mágico e um meio de comunicação entre os dois.
A estrutura era o mais simples, seu navio já estava sendo construído com madeira de érebo uma arvore forte e resistente, algo pouco convencional para um navio, mas essencial para resistir a mares violentos e a magia. A verdadeira questão era como animar algo tão grande sem torná-lo lento e desajeitado.
O núcleo mágico, no entanto, seria o maior desafio. Golens comuns usavam pedras encantadas, alimentadas por inscrições rúnicas que definiam sua função. Mas um navio era diferente. Ele precisava entender direções, responder a comandos e, mais importante, adaptar-se ao mar em constante mudança. Nix passou dias estudando grimórios e conversando com artesãos locais, até que encontrou uma pista em um velho livro de Panacéia sobre encantamentos de fadas. Espíritos menores podiam ser vinculados a objetos inanimados, concedendo-lhes uma espécie de instinto próprio.
Ela precisaria de um espírito. Não um qualquer, mas um forte o bastante para guiar um navio inteiro.
O escritório do avô era um dos lugares mais antigos do estaleiro. Livros se empilhavam nas estantes de madeira escura, os móveis cheiravam a tempo e poeira, e o ambiente carregava uma gravidade quase cerimonial. Nix fechou as cortinas e traçou o círculo ritualístico no chão com um giz prateado, respirando fundo antes de colocar as mãos sobre o desenho.
Ela murmurou as palavras do encantamento e esperou. O ar esfriou. As velas tremeram. Então, sombras ondulantes começaram a surgir ao seu redor, preenchendo o espaço com sussurros e olhos cintilantes no escuro.
Os espíritos vieram.
Alguns a fitaram com curiosidade, outros com desdém. Ela viu formas esqueléticas, massas amorfas, criaturas feitas de todos os cinco elementos. Uma voz assobiou perto de seu ouvido:
— Filha do Caos… o que deseja?
Nix manteve a postura firme.
— Quero um espírito que habite meu navio. Preciso de um coração para ele.
As sombras se agitaram. Alguns riram, outros recuaram.
— Você ousa pedir um vínculo conosco? — uma voz zombeteira ecoou. — Você, que carrega uma sina de destruição e morte?
O peso do julgamento dos espíritos era sufocante. Mas Nix sorriu, um brilho travesso nos olhos.
— Eu não sou meu pai — disse. — E nenhum de vocês precisa me amar. Só precisa gostar do que estou oferecendo.
Silêncio.
— Um espírito que habita meu navio poderá ir onde quiser. Ver terras que nunca viu. Beber sonhos e pesadelos dos oceanos. Terá mais do que um santuário. Terá um corpo, um propósito, um destino.
As sombras se agitaram, gargalharam, zombaram e uma a uma desapareceu desinteressadas. Mas uma ficou.
Ela tomou forma diante de Nix: uma criatura sem rosto, feita de névoa e estrelas. Sua presença era leve, mas seus olhos, inexistentes e ao mesmo tempo onipresentes, fixaram-se nela.
— Eu aceito — disse, sua voz como um sussurro na brisa da madrugada. — Me alimento de sonhos e desejo vagar.
O espírito estendeu algo para ela: uma pequena semente prateada, brilhando suavemente no escuro.
— Plante-a no núcleo de seu navio. Quando florescer, eu o habitarei.
Nix segurou a semente com dedos trêmulos, um sorriso gentil surgindo em seu rosto surgindo em seu rosto.
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