próximo capitulo sai dia 21 de março

       A construção do Semente do Caos começou no dia seguinte à invocação do espírito, e Nix não queria delegar nada. Astéria e os carpinteiros experientes, com seus olhares astutos e mãos calejadas, ofereceram ajuda, mas ela recusou com uma teimosia quase infantil. Queria fazer tudo sozinha. Queria sentir a madeira sob as mãos, ajustar cada peça, testar cada encaixe, entender como tudo se conectava como se fosse uma extensão de seu próprio corpo. Era uma promessa silenciosa a si mesma, uma forma de provar que era capaz, que podia construir algo, e não apenas perder.
    Foi então que os erros começaram.
    O primeiro casco ficou torto, suas curvas se recusando a seguir o plano. O segundo partiu ao meio ao tentar fixar as vigas, cedendo sob a própria pressão. Um dia inteiro foi perdido porque as medidas do convés estavam erradas e nada encaixava, transformando a pilha de madeira em um emaranhado de frustração. Mas ela não podia parar. Tinha que continuar, tinha que corrigir. A obsessão a impulsionava, a dor a sufocava.
    Foi só quando tentou instalar o timão que a paciência se esgotou em um estalo seco. O encaixe cedeu. O eixo girou errado, desafiando-a a cada movimento, rindo de sua inexperiência. Nix forçou de novo, e de novo, e nada. Com um grito de frustração que ecoou pelo estaleiro vazio, ela arrancou o timão do lugar e o jogou longe, sentindo o ardor da raiva e da impotência.
    — Isso é um inferno! — A voz arranhou sua garganta, e sua respiração estava pesada.
    Antes que percebesse, suas mãos foram até o rosto, arrancando os óculos de Zander, o mundo à sua frente embaçando.
    — Eu sinto sua falta… — A voz falhou, quebrada pela frustração e pela ausência.
    As lágrimas começaram a cair sem aviso, quentes e pesadas. Nix apertou os olhos, tentando conter o ardor que crescia na garganta. O estaleiro, as ferramentas espalhadas, a madeira incompleta do que deveria ser seu navio—tudo se tornou um borrão. Ela piscou várias vezes, mas a visão não melhorava. Os óculos ainda estavam em sua mão. Sem eles, tudo parecia distorcido, desconectado, como se a realidade tivesse decidido escorrer pelos dedos junto com seu autocontrole.
    Ela apertou o objeto contra o peito, sentindo o peso familiar do metal e do vidro. A ausência de Zander era um buraco constante, uma dor que ela empurrava para os cantos mais distantes da mente. Mas ali, no silêncio esmagador do estaleiro vazio, não havia distrações. Não havia piratas rindo, nem Panacéia para arrastá-la para um bar, nem Vênus exigindo que ela comesse.
    Só havia aquele vazio.
    E então, quando ergueu o rosto, ele estava lá. Sentado do outro lado da bancada de trabalho, braços apoiados sobre a madeira, observando-a em silêncio. O sorriso era o mesmo de sempre—tranquilo, paciente. O tipo de sorriso que dizia “está tudo bem”, mesmo quando tudo estava desmoronando.
    Nix não se moveu. Seu coração batia rápido, mas ela não queria quebrar aquele momento.
    — Eu não sei o que fazer. — A confissão escapou num sussurro, como se falar mais alto fosse espantá-lo.
    Zander não respondeu. Apenas ficou ali, olhando-a como fazia quando ela era criança, quando se machucava e tentava esconder, quando ele sabia, antes mesmo que ela admitisse, que algo estava errado.
    Nix engoliu em seco, apertando os óculos com força.
    — Eu tento seguir em frente. — A voz embargou. — Mas parece que estou sempre errando. Sempre estragando tudo.
    Ela esperou uma resposta que nunca veio.
    Nix piscou, e Zander já não estava mais lá, e em seu lugar, Panacéia. A tia não disse nada de imediato. Apenas se abaixou, pegou o timão do chão e o girou entre os dedos, analisando as marcas da madeira como se estivesse tentando decifrar o que havia acontecido. Então, sem cerimônia, sentou-se ao lado da sobrinha.
    — Quando Zander nasceu, percebi que também queria uma família. — Sua voz era calma, mas carregada de lembranças, um passado que ela raramente compartilhava.
    Nix fungou discretamente, ouvindo-a sem interromper.
    — O único problema era que eu não podia ter filhos. Então adotei Vênus. E foi a melhor decisão da minha vida. — Um sorriso breve apareceu nos lábios da mais velha, mas logo desapareceu, substituído por uma melancolia familiar. — Com o tempo, Zander e Vênus se tornaram o meu mundo. Por isso, quando ele morreu… senti como se parte de mim tivesse desmoronado junto. Um pedaço meu se foi com ele.
    Nix olhou para as próprias mãos. Sabia exatamente o que Panacéia queria dizer.
    A tia girou o timão mais uma vez, as unhas curtas raspando contra a superfície áspera.
    — Minha forma de lidar com o luto sempre foi trabalhar. Construir. Porque, se eu parar… — Fez uma pausa, respirando fundo, a voz embargada por uma emoção contida. — Se eu parar, sinto que vou desmoronar junto.
    O silêncio que se seguiu foi pesado, mas de algum modo confortável. Nix respirou fundo, permitindo que aquelas palavras afundassem dentro dela.
    — Mas isso não significa que você precisa fazer o mesmo. — Panacéia virou-se para ela, seus olhos marejados, mas firmes. — Eu sugeri esse navio porque queria que você sentisse que pertence a algo. Que estivesse construindo o seu futuro, não fugindo do seu passado.
    A sobrinha apertou os lábios, a verdade nas palavras da tia tocando fundo.
    — Eu entendo. Mas ainda preciso de tempo.
    Panacéia assentiu, sem forçar.
    — Então tenha. — E então pousou a mão no ombro dela, firme, como um ancoradouro seguro, um peso de apoio. — Só não se esqueça de que não precisa fazer isso sozinha.
    Nix abaixou o olhar. O peso dentro do peito ainda estava lá, mas… talvez um pouco menor. Talvez, pela primeira vez desde a morte de Zander, ela não sentisse que estava afundando sozinha.
    Construir um navio não era como consertar um casco quebrado ou improvisar um remendo apressado. Era algo maior. Algo que exigia mais do que apenas força de vontade e os projetos de seu avô.
    Ela fechou os olhos por um instante e soltou um suspiro cansado. Então se levantou. Era hora de fazer algo que nunca fazia: pedir ajuda.
    A Nova Tripulação da Construção
    Panacéia estava sentada no batente da oficina quando Nix surgiu. O cheiro de serragem e verniz preenchia o ar, e faíscas saltavam no fundo do galpão, onde ferreiros trabalhavam em peças metálicas.
    — Pan… — Nix parou ao lado da tia, cruzando os braços. — Preciso de um favor.
    A fada arqueou uma sobrancelha, um brilho de divertimento nos olhos.
    — Se for dinheiro, estou sem. Se for um álibi, depende de quem quer te matar.
    — Nenhum dos dois. — Nix respirou fundo, forçando um sorriso. — Preciso de você no estaleiro.
    Panacéia piscou, a surpresa genuína em seu rosto.
    — Então você finalmente resolveu agir com bom senso?
    Nix fez uma careta, mas havia um alívio em seu olhar.
    — Não enche.
    Panacéia riu, mas o tom de provocação desapareceu quando viu o olhar sério da sobrinha, a vulnerabilidade que ela raramente mostrava.
    — Você quer construir esse navio, mas sabe que não pode fazer isso sozinha.
    Nix assentiu lentamente.
    — É.
    A fada se levantou, batendo a poeira das mãos.
    — Bom, está com sorte. Porque eu sou uma das melhores artesãs desse cais. E gosto de desafios impossíveis.
    Vênus não precisou de explicações. Quando Nix a encontrou, a prima apenas cruzou os braços e deu um sorrisinho satisfeito.
    — Demorou, hein? Achei que ia tentar quebrar todas as ferramentas antes de pedir ajuda.
    — Vai ajudar ou não? — Nix revirou os olhos, mas sentiu um calor no peito.
    — Vou. Mas só porque quero ver isso de perto. E garantir que você coma.
    A última peça do quebra-cabeça foi Astéria.
    Nix encontrou a carpinteira no galpão do estaleiro, onde pilhas de madeira se espalhavam entre ferramentas gastas e projetos inacabados. O cheiro de serragem e óleo enchia o ar, e o som distante das marés ecoava pelo espaço aberto.
    Astéria estava concentrada em um pedaço de madeira bruta, afiando os detalhes com um formão. Seu olhar cortante se voltou para Nix antes mesmo que ela falasse, como se sentisse sua presença.
    — O que você quer, pirralha? — A voz era rouca, com a habitual mistura de impaciência e curiosidade.
    Nix cruzou os braços, mantendo-se firme.
    — Quero que me ajude a construir o navio.
    A carpinteira arqueou uma sobrancelha, soltando um suspiro entediado.
    — Você tem noção do que está pedindo? Isso não é um barco de pescador.
    — Tenho. — A resposta veio sem hesitação, carregada de uma nova confiança.
    Astéria estudou a jovem à sua frente. O normal seria rir da cara dela e mandá-la embora, mas alguma coisa no tom determinado de Nix fez com que ela segurasse a língua. Havia uma chama diferente ali agora.
    — Por que eu faria isso? — perguntou, inclinando a cabeça, um desafio velado em sua voz.
    Nix deslizou um pergaminho pelo balcão. Astéria lançou um olhar desinteressado ao papel… até que seus olhos se arregalaram. Era o projeto do navio-golem, com as anotações e as runas.
    Seus olhos se estreitaram, e ela pegou o projeto, virando-o de um lado para o outro.
    — Isso não é só um navio… — murmurou, o tédio substituído por um fascínio crescente.
    — Não. — Nix apontou para as anotações, a voz vibrando com orgulho. — O casco foi projetado para receber encantamentos complexos. Ele não precisa de ventos para se mover, as velas reagem ao comando do navegador e o leme é autônomo. Ele será movido por um espírito.
    Astéria girou o pergaminho, observando as runas que se espalhavam pela estrutura, o design inovador, a ousadia.
    — Isso aqui… isso é um ser vivo, pirralha. Uma máquina de combate e de navegação.
    Nix sorriu de canto, o brilho da ambição em seus olhos.
    — Sim. E ele precisa nascer.
    A carpinteira ficou em silêncio. Havia anos que nada chamava sua atenção. Todo navio era o mesmo casco, os mesmos cálculos, os mesmos problemas. Mas isso… isso era novo. Era algo que ninguém jamais fizera, uma verdadeira ruptura com o tradicional.
    Ela sentiu a excitação pulsar na ponta dos dedos, a velha paixão pela criação reviver.
    — Você quer que eu te ajude a construir isso?
    — Quero.
    Astéria apertou os lábios, ainda analisando o projeto, já pensando nos desafios.
    — Vai ser um inferno. Um pesadelo de engenharia e magia.
    — Provavelmente. — Nix deu de ombros, sem se intimidar. — Mas será nosso inferno.
    O sorriso que surgiu nos lábios da carpinteira era diferente dessa vez: um sorriso de desafio, de antecipação, de quem havia encontrado um novo propósito.
    — Certo, pirralha. Vamos ver do que você é feita. E do que nós somos capazes.
    A Forja do Destino
    Os primeiros meses foram os mais difíceis. Nix sabia que construir um navio não seria fácil, mas nada poderia tê-la preparado para a frustração de ver semanas de trabalho desmoronando diante de seus olhos. A cada erro, a sombra do fracasso pairava, mas desta vez, ela não estava sozinha.
    O primeiro casco rachou antes mesmo de ser finalizado, a madeira incapaz de suportar as tensões das junções mal calculadas. Panacéia interveio, sua experiência como artífice revelando-se crucial.
    — Você pode forçar um encaixe errado — explicava, a voz calma, enquanto alisava uma tábua com cuidado. — Mas o navio vai sentir. Mais cedo ou mais tarde, ele quebra. Como um corpo, cada peça tem sua função e seu encaixe perfeito.
    O segundo teve medidas erradas, e o convés não encaixava de jeito nenhum. No final, precisaram desmontá-lo peça por peça, um processo tão lento e irritante que até Vênus ficou sem piadas para fazer, limitando-se a trazer suprimentos e garantir que Nix comesse.
    Astéria, como esperado, era a mais dura. Sua forma de ensinar era direta, sem espaço para elogios ou consolo, mas com uma precisão que Nix começou a respeitar.
    — Isso está torto, pirralha. — Apontava com a ponta de um tentáculo.
    — Eu sei. — Nix resmungava.
    — Então refaz. Até ficar perfeito.
    — Eu odeio você.
    — Eu sei. E estou adorando. — Astéria revirava os olhos, mas um raro sorriso discreto aparecia quando Nix finalmente acertava.
    Cada erro ensinava algo novo. A cada dia, Nix não só aprendia sobre construção naval, mas sobre resiliência, paciência e a importância da colaboração. A interação entre as três era uma dança de personalidades: a sabedoria calma de Panacéia, a força bruta e o cuidado prático de Vênus, e a dureza exigente de Astéria.
    Aos poucos, tudo começou a se encaixar. Seis meses depois, o esqueleto do Semente do Caos estava montado. As vigas estruturais se erguiam no estaleiro como o esqueleto de um monstro adormecido. O cheiro da madeira impregnava tudo, misturado ao sal do mar e ao óleo usado para selar os encaixes. A cada dia, o navio tomava mais forma, um testamento de sua determinação e do apoio daquela nova família.
    Foi nesse ponto que começaram as verdadeiras inovações.
    Nix passou dias e noites esculpindo as runas no casco, cada símbolo planejado para fortalecer a estrutura sem torná-la rígida demais. O navio precisava ser forte, mas também flexível, capaz de enfrentar tempestades violentas sem se partir ao meio, como um ser vivo. Panacéia a orientava nos encantamentos, e Astéria supervisionava cada gravação, garantindo a precisão da madeira.
    O sistema de velas encantadas foi um pesadelo. Nix queria que o navio se movesse sem depender do vento, mas nenhuma das suas primeiras ideias funcionava. Ela passou semanas testando e falhando, queimando pergaminhos e explodindo protótipos. Só quando trocou a abordagem — focando em vincular as velas ao próprio casco, como extensão do seu “corpo” mágico — a coisa começou a funcionar.
    Os lemes também precisavam de melhorias. Se o navio deveria reagir como um ser vivo, então o leme não poderia ser apenas um pedaço de madeira preso a um eixo. Nix e Astéria reforçaram o mecanismo, tornando-o sensível ao toque do timoneiro, quase como um reflexo instintivo.
    Cada detalhe foi pensado, calculado, ajustado. Cada parte do navio carregava um pedaço da determinação de Nix e do esforço das três pessoas ao seu lado. O Semente do Caos não era apenas um navio; era a materialização de um sonho e a prova de uma família encontrada.
    E então, um ano depois, o Semente do Caos estava pronto.
    O Batismo e a Nova Jornada
    O estaleiro ficou em silêncio quando o baixaram na água. O casco de madeira de érebo, com as runas gravadas que brilhavam suavemente, deslizou suavemente pela rampa. Por um momento, Nix prendeu a respiração, esperando algum erro de última hora, algum desastre final. Mas nada aconteceu.
    O navio flutuava.
    O cheiro de madeira nova misturava-se à brisa salgada. O sol iluminava o casco, fazendo as runas esculpidas brilharem suavemente. As velas tremulavam, embora não houvesse vento, já respondendo ao espírito que esperava ser plantado em seu núcleo.
    Nix ficou parada no porto, observando sua criação. Uma onda de orgulho e alívio a invadiu. Ela tinha feito isso.
    Mas não sozinha.
    Panacéia estava ao seu lado, os braços cruzados e um sorriso satisfeito no rosto, os olhos marejados de orgulho. Vênus sentava-se no corrimão da ponte, os pés balançando no ar, observando tudo com um brilho curioso nos olhos e uma leveza incomum. Astéria, por sua vez, apenas olhava para o navio como se fosse um trabalho bem-feito — e nada mais, embora houvesse um brilho quase imperceptível de satisfação em seu olhar normalmente indiferente.
    Nix passou os dedos pela madeira do casco, sentindo a textura da sua nova realidade. Esse navio era parte dela, um corpo que aguardava sua alma.
    Agora, só faltava uma tripulação.
    Ela se virou para as três e sorriu, um sorriso que ia além da simples alegria, um sorriso de quem havia encontrado seu lugar.
    — E então? Algum de vocês quer embarcar em uma loucura?
    Astéria deu de ombros, mas seus olhos brilhavam.
    — Eu tenho meu estaleiro para cuidar, pirralha. Mas talvez eu possa fazer uma visita de vez em quando. Para garantir que você não afunde a minha obra.
    Vênus riu, empurrando Nix de leve.
    — Eu achava que isso já era uma loucura. Mas alguém precisa garantir que você coma no mar.
    Panacéia suspirou, um sorriso suave nos lábios.
    — Eu sou velha demais para isso… mas alguém precisa impedir você de afundar. E de se perder por aí. E de arrumar briga com os reinos errados.
    Nix sorriu, o coração cheio. A ideia de que ela tinha encontrado uma família, um propósito, e agora um navio, era mais do que sonhara. Ela já pensava em quem mais chamaria para sua tripulação. Madoc, talvez?
    O Doce do Luto e a Memória do Irmão
    O cheiro de mel e especiarias pairava no ar, denso e agridoce, enquanto o sol poente tingia a cozinha de tons dourados e alaranjados. A tigela de barro tilintava suavemente a cada movimento da colher, o som ecoando no silêncio pesado do ambiente.
    Vênus trabalhava sem dizer nada. Os ombros tensos, o olhar fixo na massa que mexia com precisão quase mecânica. Já errara uma vez e teve que recomeçar — não cometeria outro erro. O bolo do Zander tinha que ser perfeito.
    Panacéia estava encostada no batente da porta, os braços cruzados, observando sem pressa, sem interferir. Ocasionalmente, seus olhos se desviavam para as mãos da sobrinha, seguindo seus movimentos com uma expressão difícil de decifrar, uma mistura de carinho e dor.
    Nix, sentada no balcão com uma maçã nas mãos, observava em silêncio. Não era uma cena que combinava com elas. As três eram acostumadas ao caos — brigas barulhentas, provocações afiadas, gargalhadas que enchiam o ambiente. Mas ali, naquele momento, só restava o peso da ausência que era sentida por todas.
    Ela mordeu a fruta, o estalo do dente na casca ressoando alto demais na cozinha silenciosa. Sentiu o olhar de Panacéia sobre si, mas a tia nada disse.
    O bolo não precisava ser perfeito. Zander nunca ligara para isso. Mas para Vênus, talvez fosse uma forma de expressar o que as palavras não conseguiam.
    Quando a massa finalmente preencheu a forma de ferro, Vênus empurrou-a para o forno com mais força do que o necessário. Suas mãos estavam cobertas de farinha, mas, em vez de limpá-las, passou os dedos pelo rosto, pressionando-os contra os olhos cansados.
    O ranger da porta quebrou o silêncio. Astéria entrou sem cerimônia, os olhos varrendo o ambiente com uma curiosidade discreta, percebendo de imediato a atmosfera carregada. Seu olhar pousou primeiro em Vênus, depois em Panacéia. Depois em Nix, que segurava o caroço da maçã entre os dedos sem saber o que fazer com ele. Notou o clima carregado, a falta de palavras desnecessárias, o bolo no forno.
    — Que diabos aconteceu aqui? — perguntou, arqueando uma sobrancelha, sua voz mais suave do que o habitual.
    Vênus não respondeu de imediato. Apenas expirou pesadamente, recostando-se contra a bancada.
    Foi Panacéia quem quebrou o silêncio, a voz carregada de uma tristeza contida:
    — É o aniversário do Zander.
    Astéria parou. Um pequeno ajuste no maxilar, um piscar lento — nenhuma reação exagerada, apenas uma compreensão silenciosa que transparecia em seu olhar. Ela conhecia a dor da perda.
    — Ah.
    Foi tudo o que disse. Ela puxou uma cadeira e sentou-se, apoiando os cotovelos sobre a mesa, os dedos tamborilando contra a madeira, oferecendo sua presença silenciosa.
    Nix desceu do balcão, jogou o caroço da maçã no lixo e pegou outra fruta, brincando de jogar para o alto. Algo inquieto dentro dela queria dizer alguma coisa, mas que palavras eram adequadas? “Ele odiava bolo de mel” parecia insensível. “Ele não ia querer que vocês ficassem assim” parecia vazia.
    Então, como sempre, ficou em silêncio.
    O cheiro do bolo começou a se espalhar pela cozinha, quente e reconfortante, preenchendo o vazio. Nenhuma delas falou mais nada. Não precisava. Aquele bolo, feito com tanto esmero por Vênus, o silêncio respeitoso de Astéria, e a presença firme de Panacéia, eram a linguagem do amor e do luto compartilhado.

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