próximo capitulo sai dia 21 de março

       O cheiro de mel e especiarias pairava no ar, denso e agridoce, enquanto o sol poente tingia a cozinha de tons dourados e alaranjados. A tigela de barro tilintava suavemente a cada movimento da colher, o som ecoando no silêncio pesado do ambiente.

        Vênus trabalhava sem dizer nada. Os ombros tensos, o olhar fixo na massa que mexia com precisão quase mecânica. Já errara uma vez e teve que recomeçar—não cometeria outro erro.

        Panacéia estava encostada no batente da porta, os braços cruzados, observando sem pressa, sem interferir. Ocasionalmente, seus olhos se desviavam para as mãos da sobrinha, seguindo seus movimentos com uma expressão difícil de decifrar.

        Nix, sentada no balcão com uma maçã nas mãos, observava em silêncio. Não era uma cena que combinava com elas. As três eram acostumadas ao caos—brigas barulhentas, provocações afiadas, gargalhadas que enchiam o ambiente. Mas ali, naquele momento, só restava o peso da ausência.

        Ela mordeu a fruta, o estalo do dente na casca ressoando alto demais na cozinha silenciosa. Sentiu o olhar de Panacéia sobre si, mas a tia nada disse.

        O bolo não precisava ser perfeito. Zander nunca ligara para isso.

        Quando a massa finalmente preencheu a forma de ferro, Vênus empurrou-a para o forno com mais força do que o necessário. Suas mãos estavam cobertas de farinha, mas, em vez de limpá-las, passou os dedos pelo rosto, pressionando-os contra os olhos cansados.

        O ranger da porta quebrou o silêncio.

        Astéria entrou sem cerimônia, os olhos varrendo o ambiente com uma curiosidade discreta. Seu olhar pousou primeiro em Vênus, depois em Panacéia. Depois em Nix, que segurava o caroço da maçã entre os dedos sem saber o que fazer com ele. Notou o clima carregado, a falta de palavras desnecessárias, o bolo no forno.

        — Que diabos aconteceu aqui? — perguntou, arqueando uma sobrancelha.

        Vênus não respondeu de imediato. Apenas expirou pesadamente, recostando-se contra a bancada.

        Foi Panacéia quem quebrou o silêncio:

        — É o aniversário do Zander.

        Astéria parou. Um pequeno ajuste no maxilar, um piscar lento—nenhuma reação exagerada, apenas uma compreensão silenciosa.

        — Ah.

        Foi tudo o que disse.

        Ela puxou uma cadeira e sentou-se, apoiando os cotovelos sobre a mesa, os dedos tamborilando contra a madeira.

        Nix desceu do balcão, jogou o caroço da maçã no lixo e pegou outra fruta, brincando de jogar para o alto. Algo inquieto dentro dela queria dizer alguma coisa, mas que palavras eram adequadas? “Ele odiava bolo de mel” parecia insensível. “Ele não ia querer que vocês ficassem assim” parecia vazia.

        Então, como sempre, ficou em silêncio.

        O cheiro do bolo começou a se espalhar pela cozinha, quente e reconfortante.

        Nenhuma delas falou mais nada.

        Não precisava.


        Já na praia, Nix deixou o disfarce desvanecer as orelhas de gato surgindo e a longa cauda em formato de ponteiro de relógio aparecendo como se apenas estivesse invisível. O mar murmurava em ondas suaves, quebrando contra a costa em um ritmo quase reconfortante. As três caminharam em silêncio até um ponto afastado da praia, onde pedras lisas se acumulavam perto da maré.

        Panacéia abaixou-se primeiro, pegando algumas pedras e empilhando-as com cuidado. Vênus fez o mesmo, juntando conchas espalhadas pela areia e posicionando-as sobre o pequeno monte. Nix ficou parada por um momento, observando a cena. O túmulo improvisado era simples, mas feito com as próprias mãos. Não precisava ser grandioso. Só precisava estar ali.

        Vênus limpou a garganta.

        — Certo… Feliz aniversário, idiota. — Sua voz estava firme, mas suave.

        Panacéia assentiu, os olhos baixos.

        — Faz falta, Zander.

        Nix sentou-se ao lado do túmulo, puxando os joelhos contra o peito.

        — Fiz um navio. — Sua voz saiu rouca, como se estivesse segurando algo na garganta. — O Semente do Caos.

        O vento soprou forte, como se respondesse.

        Ela baixou o olhar para as mãos, cerrando os punhos.

        — Estou seguindo sua ideia maluca. Vou ser pirata. — Um riso curto e sem humor escapou. — Parece coisa sua, não é? Jogar algo impossível na minha cara e esperar que eu faça dar certo.

        — Queria que você estivesse aqui…

        O cheiro metálico do sangue misturou-se ao sal do mar.

        O som de passos na areia rompeu o momento.

        Nix não se moveu imediatamente, mas suas orelhas felinas se mexeram, captando o deslocamento de ar. Seus olhos encontraram os de Panacéia, que já havia notado.

        Com um suspiro, a mais velha se levantou, virando-se para encarar os recém-chegados.

        — Hm. E quem temos aqui?

        Duas sombras emergiram das pedras mais à frente, silhuetas recortadas contra a luz pálida da lua. O primeiro era um homem alto, de pele morena, e suas asas de harpia se abriram levemente ao caminhar, as penas escuras absorvendo a penumbra. Seus olhos azuis brilharam por um instante antes de ele dar um passo à frente, os pés com garras afundando levemente na areia.

        O segundo reluziu sob o luar. Escamas prateadas cobriam seu corpo, refletindo a luz em um brilho discreto. Seus olhos eram escuros, profundos como o fundo do oceano, e seu andar era calculado, sem pressa, como se medisse cada detalhe ao redor.

        Vênus parou de cantar. A tensão na sua postura não era de medo, mas de atenção, os olhos âmbar analisando os desconhecidos.

        — Isso é um túmulo? — O de asas perguntou, a voz baixa, mas audível no silêncio da praia.

        O ar pareceu pesar.

        Nix respirou fundo antes de finalmente encará-los. Seus olhos eram uma tempestade contida, a dor ali tão evidente que fez os estranhos hesitarem.

        — Sim. — Foi tudo que ela disse.

        O homem-pássaro piscou, como se não soubesse o que dizer diante daquela resposta simples. O outro, no entanto, se inclinou ligeiramente, observando o pequeno monte de pedras com a concha no topo.

        — De quem? — Ele perguntou, sem agressividade, mas com uma curiosidade que não conseguiu esconder.

        O silêncio se prolongou.

        Nix desviou o olhar para o horizonte, onde o mar se estendia infinito. Quando falou, sua voz veio baixa, como se as palavras fossem afiadas demais para serem ditas em voz alta.

        — Alguém que eu falhei em proteger.

        A resposta pairou no ar como um lamento.

        Vênus baixou o olhar para o bolo ainda na mão de Panacéia. Tocou levemente a borda do prato, como se quisesse dizer algo, mas ficou em silêncio.

        Panacéia, por sua vez, ajeitou o bolo ao lado do túmulo. Depois, se levantou, os olhos avaliando os dois desconhecidos.

        — Vocês são da guilda, não são?

        O homem-peixe apertou os lábios. O homem-pássaro trocou um olhar rápido com ele antes de responder:

        — Sim.

        — Fomos enviados para pegá-la. — O de escamas completou, sem rodeios.

        Panacéia riu curto, mas sem humor.

        — Claro que foram. Sempre prontos para destruir o que não entendem.

        Nix se levantou devagar, asas crescendo em suas costas com magia.

        — Se quiserem tentar, tentem. — Disse, o olhar fixo neles. — Mas desta vez, eu juro que vocês não vão sair inteiros.

        Os dois ficaram imóveis.

        O homem-pássaro avaliou a postura dela, depois olhou para o túmulo.

        — Essa noite… respeitaremos seu luto.

        O vento soprou forte entre eles, carregando o cheiro de maresia e sangue.


        A volta para casa foi silenciosa. Apenas o barulho das ondas quebrando na areia acompanhava os passos das três enquanto subiam as ruas de paralelepípedos do Cais das Lágrimas. O cheiro de sal e maresia impregnava o ar, misturando-se ao aroma distante de peixe grelhado vindo de alguma taverna ainda aberta.

        Nix caminhava um pouco atrás das outras duas, os pensamentos pesados. O ferimento na perna já não incomodava tanto, mas o vazio no peito parecia maior do que nunca.

        — Eu vou ser caçada para sempre? — Sua voz cortou o silêncio de repente.

        Panacéia não olhou para trás, mas seu suspiro foi audível.

        — Até a morte.

        Nix sentiu os dentes rangendo.

        — Não há outra opção?

        Dessa vez, Panacéia virou o rosto ligeiramente, o brilho discreto das pérolas em sua trança destacando-se sob a luz das lamparinas.

        — Só se fizer um acordo com Lafaiete.

        O nome trouxe um gosto amargo à boca de Nix. Ela não respondeu, apenas apertou o passo, passando pelas duas e entrando primeiro na casa.

        O cheiro de bolo ainda pairava na cozinha quando ela subiu para o quarto, largando-se na cama sem se dar ao trabalho de tirar as botas. O sono veio rápido, mas foi inquieto, cheio de sombras e lembranças.

        Na manhã seguinte, Nix acordou cedo, antes mesmo do sol nascer completamente. A casa ainda estava mergulhada no silêncio, apenas o som distante das ondas e do vento soprando contra a madeira do cais preenchia o ambiente.

        Descendo as escadas, encontrou Asteria na cozinha, preparando chá.

        — Onde fica a guilda dos assassinos? — perguntou sem rodeios.

        Asteria parou o que estava fazendo e a olhou com uma expressão indecifrável.

        — Por que quer saber?

        Nix cruzou os braços, o olhar firme.

        — Porque estou cansada de fugir.

        Asteria segurou a xícara por um momento, depois suspirou, levando-a aos lábios.

        — Sua tia vai me matar.


        O papel que Asteria entregou a Nix parecia um simples endereço, mas conforme a jovem percorria as ruas escuras do Cais das Lágrimas, ela percebeu que não era tão simples assim. O caminho a levou para uma parte da cidade onde as construções eram antigas, os becos eram estreitos e o cheiro de ferrugem e umidade impregnava o ar. A maioria das pessoas que passavam por ali evitava contato visual, alguns se esgueiravam pelas sombras, e a sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada passo.

        A entrada da guilda dos assassinos era disfarçada de uma ferraria abandonada, a fuligem das paredes mascarando qualquer vestígio de movimento. Nix se infiltrou com facilidade, passando pelos corredores frios e mal iluminados, desviando-se dos poucos vigias que encontrava. No entanto, a estrutura interna da guilda era um labirinto traiçoeiro.

        O corredor estreito terminava em uma parede de pedra. Nix franziu a testa. Ela tinha certeza de que esse era o caminho certo. A luz azulada das tochas tremulava sobre a superfície desgastada, refletindo fracamente no chão polido. Algo estava errado.

        Deslizou os dedos sobre a rocha, sentindo sua textura fria e irregular. Fechou os olhos por um instante, concentrando-se. A magia sussurrava ali, como um segredo esperando para ser descoberto. Pressionou a palma contra a pedra e, lentamente, um brilho tênue se espalhou. A passagem se revelou.

        — Típico — murmurou, dando um passo à frente.

        A guilda de assassinos não impressionava. A arquitetura era funcional, sem ornamentos, feita para ser esquecida. O cheiro de sangue e ferrugem impregnava o ar, e o silêncio era espesso, como se o próprio espaço retivesse os sussurros de seus moradores.

        No salão principal, o Conselheiro os aguardava. Sentado em sua cadeira de espaldar alto, observava os assassinos da noite anterior com o olhar calculista de um predador. O rosto sereno escondia a lâmina afiada da decepção.

        — Mathew, Madoc, vocês falharam comigo. — Sua voz cortou o ar, precisa como uma faca bem afiada.

        Madoc cruzou os braços, ombros rígidos.

        — Não foi uma falha. Foi uma escolha.

        Mathew mexeu nas penas de suas asas, inquieto, mas não desviou o olhar.

        — Não vamos mais caçá-la. Nix não é o monstro que você nos fez acreditar.

        O Conselheiro inclinou levemente a cabeça, avaliando-os.

        — Vocês ousam desobedecer? Sabem o que isso significa?

        Madoc assentiu devagar.

        — Sabemos.

        O Conselheiro não precisou dar ordens em voz alta. O ataque veio no instante seguinte. Sombras se moveram. Lâminas brilharam. Madoc bloqueou o primeiro golpe com dificuldade, ainda debilitado. Matheu se lançou para cima, tentando escapar, mas assassinos treinados não hesitam.

        As portas do salão se abriram.

        — Ah. É aqui? — A voz de Nix cortou o ambiente, carregada de malícia. — Eu esperava mais.

        O movimento cessou por um instante. Os assassinos hesitaram. A presença dela quebrou o fluxo natural das coisas, como se tivesse rasgado a realidade e enfiado um pedaço de caos no meio dela.

        Ela caminhou até o centro do salão com a tranquilidade de quem não reconhece ameaça alguma. Asas negras dobradas, sorriso de canto, os olhos brilhando uma mistura de desespero e raiva.

        — Estou interrompendo algo?

        O Conselheiro a encarou com um desprezo frio.

        — Veio terminar o que começou?

        Nix ergueu uma sobrancelha.

        — Não. Vim buscar o que é meu.

        Apontou para Madoc e Matheu.

        — Esses dois. Agora fazem parte da minha tripulação.

        O riso do Conselheiro foi curto e afiado.

        — Você acha que vou permitir que traidores escapem?

        Nix sorriu, sem pressa.

        — Eu não pedi permissão.

        Ela desapareceu. Reapareceu atrás dele. O frio de suas garras pressionou contra a garganta do homem.

        O salão ficou em silêncio.

        — Vamos fazer um acordo. — Sua voz desceu alguns tons, quase um sussurro. — Você os deixa ir. E eu deixo você viver.

        O silêncio era um fio esticado, prestes a se romper. Os assassinos assistiam, mas ninguém se moveu.

        O Conselheiro inspirou devagar.

        — Leve-os. Mas saibam que nunca serão bem-vindos aqui novamente.

        Nix sorriu, satisfeita, e puxou os dois pelos ombros, forçando-os para a saída.

        — Obrigada, Conselheiro La…

        O silvo de uma adaga cortou o ar. Nix se moveu antes que a lâmina a alcançasse, girando o corpo com uma facilidade irritante. A arma se fincou na porta atrás dela.

        Ela se virou, olhos brilhando, um sorriso que não chegou a ser divertido.

        — Eu sei quem você é.

        Fora da guilda, ela guiou Madoc e Matheu por vielas escuras até a orla do porto. O Semente do Caos os aguardava, ancorado no horizonte.

        Madoc ainda recuperava o fôlego quando perguntou:

        — Por que você fez isso?

        Nix virou-se para os dois. Seu sorriso, dessa vez, era menos ameaçador.

        — Porque respeitaram meu luto. Eu machuquei vocês, e não tinham como lidar com todos aqueles assassinos.

        Matheu soltou uma risada curta.

        — Se sente culpada?

        — Um pouco.

        Madoc estreitou os olhos.

        — E por que acha que vamos segui-la?

        Nix abriu um pequeno pote e mostrou a eles um punhado de pérolas negras que brilhavam suavemente sob a luz da lua.

        — Não acho. Mas quero fazer algo por vocês.

        Ela entregou uma pérola a cada um.

        — Enquanto usarem minhas pérolas, ninguém será capaz de lembrar dos seus rostos ou do som das suas vozes. Vão para Drakensberg. De lá, sigam a leste até a Karnor. A marquesa Andréa vai receber vocês.

        Os dois trocaram olhares. Nix sorriu, virando-se em direção ao navio.

        — Boa sorte. Nos vemos em outra vida.

        Matheu olhou para as pérolas e depois para Madoc, que finalmente suspirou. Eles, pela primeira vez em muito tempo, tinham escolha.

        — Então capitã, qual o nosso primeiro destino?

        Nix os olhou desacreditada, seus olhos piscaram como se tivesse acabado de acordar, vendo que nenhum dos dois desistiria, ela sorriu.

        — Bem-vindos ao Semente do caos.

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