THERMON AGOURO

    Longe dos continentes, onde a única coisa visível é gelo e neve, vivem os Elfos-de-gelo ou a “Sexta Espécie”, como também nos denominamos.

    Há pouco mais de cem mil verões, quando o sul do continente Aurora era interligado ao polo sul de Mundo, por uma crosta muito espessa de gelo, algumas tribos de elfos migraram para a parte mais ao sul do planeta. Essa migração deu origem a uma ramificação de nossa espécie, com pele azulada, orelhas menos pontudas, olhos mais estreitos e cílios mais longos, para maior proteção contra o cenário, sempre claro, que a neve proporciona.

    Outra característica única dos Elfos-de-gelo são nossos olhos. Quando nascemos eles são completamente brancos. Conforme a exposição com o sol, e a claridade, nosso globo ocular inteiro vai ficando cada vez mais escuro. Por isso, uma forma simples de identificar nossa idade é pela cor de nossos olhos.

    Toda esta sociedade cresceu com apenas uma característica em comum com o resto do planeta: a linguagem. A cultura, tradições e leis são completamente diferentes de tudo que Os Cinco consideram como normal.

    Nós prezamos pelo coletivo mais que o individual. Se um habitante está passando fome, é porque todos estão.

    Temos um líder, Tomoga. Não o seguiríamos se sua liderança estivesse desalinhada com a vontade de todos.

    Nos consideramos uma espécie completamente diferente dos elfos do continente, por isso também nos intitulamos de “Sexta Espécie”, mas não espalhamos este pensamento pelo mundo, tentando mudar “Os Cinco” para “Os Seis”, pois preferimos estar distantes do restante da civilização. Na realidade, todos os mais de vinte e cinco mil elfos-de-gelo evitam, ao máximo, contato com as outras raças. Aos nossos olhos eles são monstros, capazes de qualquer atrocidade para conseguirem o que querem.

    Mesmo que não tenhamos riquezas minerais, não estamos atrasados tecnologicamente. A mana ambiente, existente no polo sul, forneceu um entendimento gigantesco sobre a energia que nos rodeia. Posso afirmar, sem sombra de dúvidas: somos os melhores magos do planeta!


    Era noite quando um barco sem vela, totalmente branco, de menos de dez metros de comprimento, chegou na costa, próxima ao posto onde eu estava montando guarda. Meu pequeno iglu tinha frestas que me permitiam ver quem se aproximava sem ser visto por embarcações no mar. A parede de gelo entre a água e onde eu estava era como um penhasco. Para entrar era necessário saber manipular a magia de gelo, como apenas um Elfo-de-gelo é capaz.

    Eu sabia quem estava a bordo, mas esperei a senha acordada entre os tripulantes e nós, guardas de fronteiras, para fazer algo. Após alguns instantes, a água em volta do barco começou a girar, formando dois ciclones dos lados da embarcação. Essa era a senha.

    Com ambas as mãos fiz um movimento parecido com puxar o ar para baixo e uma escadaria de gelo apareceu entre o meu iglu e o barco, possibilitando a entrada dos viajantes.

    Eu os via como heróis. Eles se aventuravam, nos trazendo informações ou materiais que só podem ser conseguidos no mundo exterior. Era algo perigoso, por mais que Os Cinco não nos vissem como ameaças.

    — Saudações, irmãos. Como foi a viagem desta vez? Demorou mais do que o normal. — Cumprimentei os recém chegados.

    — Ah, Thermon, como tem passado, companheiro? Sim, sim, essa viagem foi horrível! Demos de encontro com tempestades na ida e na volta. Se não soubéssemos controlar mana, estaríamos mortos!

    Falou meu amigo de infância, Baru Arpão. Um Elfo-de-gelo com a aparência muito semelhante com a minha. Temos a mesma altura, um metro e oitenta, em torno de cento e vinte verões de idade. Seus cabelos eram longos, presos em rabo de cavalo, são bem diferentes dos meus, que mal alcançam os ombros. Assim como eu, os olhos de Baru eram cinza-escuros.

    — Fico feliz em saber que está a salvo. Onde está Jouci?

    — Está dormindo na parte de dentro do barco… JOUCI, ACORDA, CHEGAMOS! — Gritou Baru, para sua filha.

    — Só mais cinco espaços de tempo, pai, por favor! — Exclamou de dentro do barco uma voz feminina e sonolenta.

    — Vai deixar seu noivo esperando? — Em um tom muito sério, Baru a repreendeu.

    — Ele não seria meu noivo nem que fosse o Líder, precisando de herdeiros! E aí, Escolhido, cansado de ficar aqui, fazendo “nada” o dia inteiro?

    Falou a garota, enquanto pulava do barco em direção a escada que criei. Ela tinha dezenove primaveras, vinte centímetros mais baixa que seu pai, corpo atlético, cabelos cinza escuro, presos em um rabo de cavalo longo, caído à frente de seu ombro direito. Seus olhos eram cinza claro.

    Os humanos não se importam muito com o tempo como nós. A menor divisão de tempo que entendem são os ciclos, ou Raios do dia, mas nós, Elfos-de-gelo, Elfos e Anões também usamos os “espaços”. Cada espaço de tempo é uma centésima parte de um ciclo. Os anões chamam os espaços de “minutos”, um nome que nunca me acostumei.

    — Bom te ver também, Jouci. Subam logo, vou esconder o barco.

    Depois de pegarem toda a bagagem e subirem até onde eu estava, com um movimento de empurrar o ar para baixo, fiz a escadaria de gelo se transformar em água. Todo aquele líquido foi em direção ao barco. Pouco antes do impacto, movi a mão direita para minha esquerda e a água se solidificou em volta da embarcação, de tal maneira, que quando a luz refratasse pelo gelo, o barco branco não seria percebido, se tornando um com a paisagem.

    — Chegaram em um bom momento, Baru. Meu turno de vigia está acabando. O próximo guarda chegará em breve. Poderei ir com vocês.

    — Não faria mal uma escolta até o prédio do lorde Tomoga. Não que precisássemos, hahaha.

    — Descobriram vários túneis de toupeiras-brancas em volta das aldeias centrais. O caminho de volta está perigoso agora.

    — Não brinque comigo, meu genro, toupeiras-brancas destruiriam as aldeias.

    — Não sou seu genro, Baru, já te disse várias vezes! E falo a verdade, a rede de túneis feita pelas criaturas é imensa. Estão tentando tapar todos que conseguirem enquanto os civis espalharam centenas de fogueiras em volta das casas, para tentar espantar as malditas criaturas.

    — Espero que o deus Branco nos proteja.

    Enquanto conversávamos, Jouci apenas revirava os olhos, como uma adolescente humana faria, quando estava de “saco cheio”. Eles criam cada termo estranho… O tempo que ela passou longe de nossa sociedade a influenciou negativamente.

    Ao longe vi o guarda que ficaria em meu lugar se aproximando. Era alguém muito fechado, nunca me disse seu nome. Não fiz questão de perguntar também.

    Com apenas um aceno de cabeça ele passou por mim e os viajantes, então entrou no iglu/posto de observação e lá ficou, como se não estivéssemos por perto.

    — Sujeito de poucas palavras, não? — Falou Baru. Concordei com um aceno.

    — Tudo certo? Vamos.


    Após aproximadamente dois ciclos andando, chegamos na borda das aldeias. Com construções tão bonitas e complexas, sempre achei estranho chamarmos apenas de “aldeias”. Nossos veteranos preferem preservar alguns nomes e expressões, talvez para não esquecermos de onde viemos.

    Passamos por várias crianças brincando com bolas feitas de estômago de baleia. Eu adorava fazer isso quando jovem.

    Passamos por pessoas carregando peixes, homens ensinando crianças a controlar suas habilidades de controle de água e algumas focas-albinas, que deveriam ser bichos de estimação de alguma criança.

    Pouco tempo depois, nos aproximamos da Aldeia-central. No meio dela emergia um prédio de cinco andares, todo esculpido em gelo. Não fizemos cerimônia para entrar.

    — Ancião Feni, trago os viajantes de sua última jornada. Saberia informar se nosso Líder está disponível para recebê-los? — Perguntei para um veterano que cuidava da entrada do prédio do Líder. Feni usava uma barba grande e cabelos soltos. Suas madeixas transparentes lhe concediam uma aparência fantasmagórica. Seus olhos eram tão escuros que pouca luz refletia deles.

    Uma informação interessante para quem não conhece os Elfos-de-gelo, é que nascemos com cabelos cinza escuro, quase pretos. Com o passar dos anos vão ficando cada vez mais claros. Quando adultos, perto dos vinte e cinco verões, ficam totalmente brancos. Depois de duzentos verões os cabelos tendem a perder ainda mais a cor e ficam transparentes, como os do ancião Feni.

    — Thermon, você ainda continua com essa brincadeira de guarda? Alguém do seu calibre deveria estar ajudando Efab e os magos gelados, não apenas escoltando viajantes! Sem ofensas, Baru. 

    Baru apenas acenou a cabeça, mostrando que não se importou com a fala de Feni.

    — Ancião, poderia responder minha pergunta? — Continuei.

    — Apenas bata na porta, ele não tem visitas no momento — bufou Feni, como se realmente estivesse desapontado comigo, por eu ser “apenas” um guarda.

    — Obrigado, senhor! Vamos Baru. Pirralha, você também! — Alertei Jouci, que estava prestando atenção em qualquer coisa que não fosse nossa conversa.

    Ela bufou, mas nos seguiu.

    Subimos quatro lances de escadas feitas de gelo-escuro, um tipo muito raro de gelo que não derrete até aplicarmos mana, sempre achei isso muito interessante. As paredes de todas as construções da aldeia eram de gelo comum, mas eram tão grossas que não dava para ver através. 

    Chegando na frente do escritório de Tomoga, antes de batermos na porta, alguém lá dentro falou:

    — Entre, Thermon! 

    “Como ele faz isso?”, pensei.

    — Com licença, Senhor Tomoga, trouxe os viajantes com novas informações de fora.

    — Obrigado, Thermon! Baru, Jouci, que bom vê-los bem. Por favor, sentem-se. Baru, antes de começar, já marcou a data da união desses dois?

    — Líder, por favor, não fale sobre essa visão ridícula, eu nunca ficaria com… “Isso”! — Disse Jouci, sem pena na voz. Ela me olhava de cima a baixo, com expressão de nojo, como se eu fosse sardinha podre.

    Nós três nos sentamos em cadeiras à frente da mesa do Líder.

    Tomoga é o único ser conhecido com a habilidade de ver o futuro. Ele tem vislumbres, como “flashes” de memória, em sua maioria desconexos e inúteis, sobre o futuro. Existem poucas visões mais complexas e completas. Dois verões atrás ele teve a visão  que eu e Jouci ficaríamos juntos. Ele nunca errou uma previsão. Sabendo disso, me preocupo de estar prometido pelo destino a esta pirralha irritante…

    Nosso líder tinha uma aparência amigável, como se sempre convidasse para uma conversa. Era cinco centímetros mais baixo que eu. Ele vestia uma roupa azul escuro, que mostrava apenas as mãos e sua cabeça. Cabelos curtos e muito bem alinhados. Seus olhos eram um pouco mais escuros que o meu. O que faz sentido, visto que ele é cerca de cinquenta anos mais velho, com mais de cento e setenta verões.

    — Tudo ao seu tempo, Jouci. Muita coisa vai acontecer até lá, mas seu pai já pode adiantando e ir chamando convidados, assim vocês poupam temp-

    — LÍDER! — Gritou a garota envergonhada, completamente enrubescida.

    — Ok, ok… Não toco no assunto até estar na cerimônia, brindando a felicidade do casal — brincou Tomoga, com ambas as mãos para o alto, em sinal de rendição. Baru riu bastante com a cena. — Voltando ao assunto de sua visita, Baru, me conte o que descobriram desta vez, por favor.

    — Certamente! Os Cincos mantém seu comportamento expansionista e agressivo uns contra os outros. Nenhuma raça está melhor que outra neste assunto. A última notícia que trago é a mais desagradável que já lhe reportei: Alvo, o Escolhido pela mana, dizimou mil e quinhentos elfos que estavam estacionados perto da fronteira da nação humana. Só de imaginar tamanha selvageria fico enojado!

    Todos na sala compartilharam esta sensação enquanto abaixaram as cabeças, fitando o chão. Baru não me contou isso desde que chegou. Entendi que ele queria falar sobre isso diretamente com o lorde Tomoga.

    — Não importam os motivos por trás deste ataque, este tipo de afronta a vida é inaceitável! — Exclamou Tomoga, com grande pesar na voz.

    — Vamos nos manter neutros, Tomoga? Não há nada que possamos fazer? — Perguntou Baru.

    — Não tenho certeza, meu amigo. Thermon, você já ouviu algo sobre este humano, Alvo? Tem alguma informação sobre a força dele?

    — O pouco que sei é que ele é um Escolhido pela mana, como nossa geração nunca viu. Magia do tipo Energia flui dele, como uma cachoeira sem fim. Não acredito que eu tenha chances de vencer uma batalha direta, caso lutássemos. Claro, levando em conta apenas esses rumores que ouvi.

    — Se eu pedisse para ir até nossos primos élficos, para entender os motivos do ataque aos humanos, você aceitaria? Creio que os elfos tinham algum tipo de plano… Eles não deixariam tantos dos seus morrerem sem motivos.

    — Certamente irei, senhor! — Esta era a oportunidade que sempre esperei. Sair e ser útil ao meu povo.

    — Ótimo. Baru e Jouci, descansem o quanto acharem necessário. Após isso, peço que levem Thermon com vocês até os elfos. Entregarão também uma carta que escreverei para o Rei deles. Creio que nossos primos não recusarão nosso Escolhido como aliado. Convocarei uma votação com os chefes das aldeias para confirmar se eles aceitam a minha decisão de enviar Thermon para mediar uma conversa. Até lá, descansem!

    — Entendido, faremos isso! — Baru falou por nós três.


    Alguns ciclos após nossa conversa com Tomoga, quando já havia amanhecido, reencontrei Baru e Jouci, comendo em uma estalagem para caçadores.

    — É a primeira vez que um Líder toma alguma atitude sobre assuntos externos. Não sei se fico feliz por algo estar sendo feito para evitar tanta morte, ou se fico com mais medo, já que poderemos estar entrando no meio dessa bagunça toda.

    — Pois é, Baru. Ao menos quero tentar fazer algo pelo “bem maior”.

    — Mesmo se a sua vida for perdida no processo, meu genro?

    — Não acredito que chegará a este ponto. Mas, mesmo assim, valerá a pena… — Com a pausa que fiz após minha fala, Jouci e Baru perceberam que, pela primeira vez, não neguei ser o genro do Baru, mas ficaram atônitos demais para fazer algum comentário.

    — Enfim, quando será a votação? — Perguntou Jouci, com pressa de mudar o foco da conversa.

    — Vi alguns grupos vindo pelo horizonte, acredito que os chefes das aldeias já estão chegando — comentei.

    — O senhor Tomoga tem muita força política, né? Para os chefes atenderem seu chamado em menos de um dia, mostra como ele é bem visto — falou Jouci, com os olhos brilhando de admiração.

    — Espero que votem logo, algo me diz que precisamos partir o quanto antes! — Disse Baru, assim que terminou a bebida alcoólica que estava saboreando em uma caneca feita de gelo.

    Bebidas alcoólicas eram muito raras aqui no polo sul. Não possuímos um ambiente propício para o preparo, e também não temos matéria prima suficiente, como frutas ou sementes. Conseguimos trocar bebidas por toneladas de peixes com mercadores mais ao sul do continente Sáfaro.

    — Obrigado pela cerveja, Pok. O que lhe devo? — Falou Baru, para o velhote, dono da estalagem.

    — Não se preocupe, essa fica por conta da casa. Você se arrisca tanto lá fora, precisa de uns agrados de vez em quando — falou o idoso, com um certo orgulho na voz.

    — Fiquei sabendo que tudo lá fora precisa ser pago com ouro ou outros tipos de metais preciosos… Que bom que não temos isso aqui, garanto que eu não conseguiria me controlar e acabaria comprando um monte de coisas inúteis. Acabaria ficando sem “dinheiro” — disse despreocupadamente.

    Tirando nós e os Lizards, toda a economia das raças girava em torno de ouro e prata, usados como moeda de troca por comida, terras ou até outros seres inteligentes. Escravidão é outro assunto que nos deixa completamente irritados com o restante do mundo. Quem deu o direito deles se apossarem de outras vidas? Não acredito que exista crime que mereça tal injustiça como pagamento.

    Sem contar coisas como bebidas e peles de animais raros, tudo no polo sul é de graça, desde alimento a mão de obra. Aprendemos a sempre usar apenas o necessário para sobreviver e não tirar vantagem do próximo. Tem dado certo a mais de quatro mil verões, e pretendemos continuar assim. Nos casos de bebidas e peles raras, apenas trocamos por algum tipo de serviço, como caça ou carpintaria, ou por comida, geralmente peixes.

    Tudo que é necessário para se viver aqui é de graça, mas não aceitamos membros inúteis em nossa comunidade. Ser útil é uma questão de honra. Este ensinamento é passado de geração em geração, e tem construído o caráter de meu povo.

    — Tem alguma ideia do que fará quando estiver na presença do rei dos elfos? — Perguntou Jouci, com interesse no assunto.

    — Não sei ao certo. Para começar quero entender os motivos do ataque aos humanos antes de tomar qualquer tipo de atitude irresponsável. O destino de nossa raça pode estar nas mãos desse encontro com os elfos.

    — Só não nos arraste para o buraco, ok? Se você acabar falando alguma caca de pinguim para os elfos, podemos nos dar mal. E eu me refiro a nós três, e não a nossa raça. Adoro todo mundo daqui, mas minha vida também é importante!

    — Anotado! — Exclamei.


    Menos de três ciclos mais tarde, um mensageiro do líder veio nos chamar para comparecer ao coliseu de votação.

    — Nossa, o tempo passou num sopro. Vamos logo, pessoal, não podemos perder a votação que pode nos mandar pro olho do furacão — falou Jouci ao se levantar da bancada. Após acordar de um cochilo, sua cara estava amassada e muito engraçada.

    — Sugiro que vá lavar seu rosto primeiro, Jouci. Você está parecendo um leão-marinho recém nascido, que não gostou de saber de onde saiu, se é que me entende… — Falei segurando o riso.

    — Como assim “que não gostou de saber de onde saiu”? O único lugar que ele poderia ter saído seria da… Que nojento, tenha modos!

    Assim, Jouci foi até o banheiro da estalagem, com as bochechas levemente coradas. Baru e eu riamos feito moleques, como realmente fazíamos quando mais jovens.

    — Me diga, velho amigo, como é se casar? — Perguntei, fitando a parede à minha frente.

    — Oh, quer dizer que o poderoso Thermon não sabe sobre esse tipo de coisa? Bem, é meio óbvio, você vive afastando as mulheres que se interessam por você… — Abaixei a cabeça com esse comentário. — Olha, me desculpa, tá? Essa visão do senhor Tomoga, mesmo que se realize eu, não quero que se sinta pressionado. A Jouci pode ser ranzinza agora, mas é que ela é nova. Sei que ela será uma mulher muito forte no futuro.

    — Não foi essa pergunta que eu fiz, Baru.

    — Bem, casar é como ter metade do seu tempo, mas o dobro do amor. É encontrar o que sempre precisou, mesmo que não tenha procurado… — Ele percebeu sua filha voltando e desconversou. — Ah, Jouci, já voltou. Continuamos com essa conversa mais tarde. Pode ser, Thermon?

    — Que conversa? — Indagou Jouci, parando ao nosso lado.

    — Coisa de homem, você não se interessaria — falei.

    Nós três nos despedimos do velho Pok e nos dirigimos até o Coliseu de votação. Menos de dez espaços de tempo depois chegamos. Todos os chefes das vinte e cinco tribos estavam sentados, cada um com seu grupo de cinco pessoas. Tomoga estava bem no centro, na parte mais abaixo. O diâmetro do coliseu não era muito extenso, mas permitia que todos se acomodassem com conforto. O lugar era bem profundo, e servia apenas para aquele tipo de ocasião: votações entre os chefes de aldeias.

    — Ótimo, nosso Escolhido chegou bem na hora! Thermon, Baru, Jouci, por favor, sentem-se — após uma breve pausa, Tomoga se levantou e começou. — Senhores, acredito que já saibam o motivo da convocação de hoje. Quero enviar Thermon até a nação élfica para sondar e entender o acontecido. Não víamos um ato tão odioso como o assassinato de mais de mil e quinhentos elfos a tanto tempo que mal soube como reagir… Deixarei o julgamento do que será feito nas mãos de nosso Escolhido, confio completamente nele e sei que fará o necessário para evitar novas baixas.

    — Senhor Tomoga, se me permite uma pergunta…

    Falou um dos chefes, mais a direita do nosso líder. Enquanto ele se levantava com o auxílio de uma bengala branca, provavelmente feita de osso de baleia, ele olhou em minha direção e depois para o restante dos presentes.

    — Chefe Guvo, por favor, prossiga! — Tomoga deu a palavra ao ancião.

    — Acredito que esse tipo de ação é muito arriscada. Não sou a favor de nos envolvermos na selvageria d’Os Cinco. Temos uma boa vida aqui. Deixe que eles cuidem de seus próprios assuntos!

    Dezenas de cabeças entre os chefes assentiram silenciosamente, outros cochichavam entre seus grupos. Tomoga não reagiu até que o alvoroço diminuísse.

    — Entendo seu posicionamento, Senhor Guvo. Infelizmente não sou o tipo de líder omisso, que aceita mortes acontecerem como se isso fosse comum. É um desrespeito tremendo com a vida… — Com uma pausa, Tomoga olhou nos olhos de todos, e continuou. — Se os selvagens dos continentes não dão valor à vida deles, eu dou! 

    Tomoga respirou fundo, apoiou no púlpito e me olhou nos olhos. Eu sabia que cada pausa era calculada. Cada olhar, cada respiração mais profunda, eram artifícios para “fisgar” a atenção do público.

    Ele olhou sem pressa para todos, e continuou: 

    — Sei que sou novo em comparação aos chefes de aldeia aqui presentes, mas creio que o motivo de estar neste cargo é justamente meu olhar mais progressista e ativo aos assuntos externos — ninguém emitiu som algum, apenas ouvindo as palavras do nosso Líder. — Duas gerações atrás ninguém acreditava que teríamos especiarias, bebidas ou elixires de fora de nossa comunidade. Devo lembrá-los, foram as minhas “ações arriscadas” que salvaram a vida de dezenas de elfos-de-gelo, quando aceitamos medicamentos fossem trazidos do continente! — Tomoga olhou diretamente nos olhos de Guvo. — Senhor Guvo, viver apenas acomodado não trará a verdadeira paz a este mundo. Não peço para entrarmos na guerra deles, mas sim que Thermon vá investigar, e volte com um testemunho.

    Dessa vez ninguém perguntou nada, todos permaneceram em silêncio, em respeito ao líder.

    — Como tenho pressa para resolver este assunto, pois cada segundo pode causar mais fatalidades durante ataques entre os humanos e elfos, quero iniciar a votação agora. Aqueles a favor de enviar nosso mensageiro, Thermon, até os Elfos, levantem suas mãos. 

    Dizendo isso, o próprio Tomoga ergueu sua mão.

    Após alguns momentos de hesitação, algumas mãos foram levantando entre o público. Cada voto dos chefes vale por um. Já o voto do Líder vale por dois, geralmente para evitar empates. Normalmente o Líder é o último a votar, mas como ele parecia querer muito que aceitassem sua petição, se usou como exemplo, para que os votos a favor começassem a aparecer.

    Menos de um espaço de tempo depois, dezoito, dos vinte e cinco chefes, ergueram suas mãos, concordando com a proposta do Líder.

    — Está decidido então, Thermon, Jouci, Baru, sigam viagem assim que estiverem prontos. Conto com vocês. Lembrem-se que estarão representando toda uma nação. Honrem seus pais! — Assim terminou a fala de Tomoga.

    A última frase dita por nosso Líder, “Honrem seus pais!”, é um ditado muito comum entre nós, que serve para nos encorajar em nosso percurso. Outro sentido para esta frase é “Suas ações são consequências do que seus pais lhe ensinaram, agir sem honra é mostrar que não tiveram educação”. Tem mais alguns significados, mas o geral é este.

    Eu e meus futuros companheiros de viagem aguardamos até todos os chefes saírem do coliseu, o que demorou em torno de um ciclo, pois vários deles foram até Tomoga conversar sobre assuntos de suas aldeias. Quando o último chefe saiu, fomos ao encontro de nosso líder, acertar alguns detalhes da viagem.

    — Lorde Tomoga, percebi que usou várias cartadas em seu discurso, é sempre assim? — Perguntou Jouci.

    — Ah, Jouci, não os vi chegando. Sim, você entendeu corretamente. Em casos como este, onde quero que aceitem uma proposta, eu costumo “jogar sujo”, sempre lembrando eles de tudo de bom o que já fiz… É um pouco imaturo da minha parte, eu sei, mas muitas vidas estão em jogo, para ficar dependendo de um bando de velhotes, que só se importam com o seu povo e mais nada — falou Tomoga, enquanto nos aproximávamos do centro do pequeno coliseu.

    — O senhor comentou sobre uma carta para levarmos até os elfos, já a escreveu? — Lembrei nosso líder.

    — Certamente. Está aqui! — Ele me entregou um envelope branco com símbolos azuis de ventos e redemoinhos no lacre de cera. O símbolo do líder do Elfos-de-gelo.

    — Se não for um problema, o senhor poderia falar qual o conteúdo desta carta? — Perguntei, sendo mais curioso que o de costume.

    — Se fosse qualquer outra pessoa perguntando eu não diria, mas como saberão mais cedo ou mais tarde, por conta da viagem, eu posso contar a vocês. Essa carta nada mais é que uma cobrança de favores ao Rei dos elfos, Alti. Ele me deve muito desde a época em que éramos mais jovens. Salvei a vida dele algumas vezes.

    — Senhor Tomoga, achei que nunca tivesse saído do polo sul, como conheceu o Rei dos elfo? — Jouci perguntou.

    — A história é mais longa do que tenho tempo para contar, mas eu vou tentar resumir: Com menos de trinta verões de idade, saí para desbravar o mundo com mais dois amigos. Nessa época conheci o Rei Alti, quando ele era apenas um dos vários príncipes dos elfos. Não o chamem de Alti, o nome verdadeiro dele é Altimanus Fluorescente. Aquele bobalhão odeia que o chamem por este apelido. Fomos em incursões atrás de recursos, ou para enfrentar inimigos, e demos de cara com algumas bestas de mana muito poderosas. Algumas tão fortes que não teríamos como vencê-las sem um Escolhido conosco. Salvei a vida dele umas seis vezes durante essa época. Ele vivia dizendo que me devia uma, duas, três… Nós perdemos as contas. Na carta só estou cobrando um desses “débitos”, solicitando que ele seja hospitaleiro com vocês. Justo, não?

    Nosso líder falava bastante, mas eu gostava, pois ele sempre dizia coisas que eu considerava interessantes.

    — Concordo com o senhor, é bem justo. Bem, assim que os meus guias estiverem prontos, partiremos — informei.

    — Estou contando com vocês.

    — Vamos nos retirar agora. Antes de iniciarmos a viagem, avisaremos ao senhor.

    Demos meia volta para sair e vimos entrando no coliseu duas figuras vestindo mantos azul celeste, que reconheci como os Magos Gelados. Este grupo é controlado diretamente pelo Líder e os chefes de aldeia, trabalham incessantemente na pesquisa da magia que nos rodeia. Muitos de nossa raça dizem que o motivo de nossa sociedade ter dado certo é por conta das descobertas dos Magos Gelados.

    — Bom dia, jovem Escolhido, vejo que já está de saída. Chegou a reconsiderar a nossa proposta? — Falou o líder dos magos gelados, Efab.

    — Bom dia para você também, Efab. Minha resposta se mantém. Não quero fazer parte de sua organização. Agradeço tudo o que vocês têm feito por nossa raça, mas meu destino é longe daqui, como estou fazendo na atual missão, que o Líder me incumbiu — falei, tentando ser o mais respeitoso possível. Efab era cem verões mais velho que eu.

    — É mesmo um desperdício de talento… Não existe nada lá fora que nos importe além de recursos minerais. Você seria de grande ajuda em nossas pesquisas… Mudando de assunto, Senhor Tomoga, podemos conversar a sós? Acredito que fizemos uma descoberta sobre aquele “assunto” — falou Efab, com certa urgência em sua voz.

    — Pois bem, vamos até meu escritório. Vocês três, estão dispensados. Aguardo boas notícias.

    Com isso, nos despedimos com uma reverência, e seguimos nosso caminho.

    Imediatamente começamos os preparativos para a longa viagem que estava por vir.


    “Morremos por termos nascido… Não há injustiça maior do que essa!”

    Deus Branco

    Deseja apoiar o autor? Clique no link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (3 votos)

    Nota