Capítulo 06 - Desembarque em Aurora
THERMON AGOURO
— Estamos partindo, senhor Tomoga. Creio que dentro de dois meses estaremos de volta — falei ao me curvar para nosso Líder. Estávamos eu, Baru e Jouci na frente do prédio de seu escritório.
— Boa viagem para vocês! Jouci, Baru, tomem conta de nosso mensageiro, ele nunca saiu do polo sul, não faz ideia de como é o mundo lá fora.
Enquanto eu ainda estava curvado, todos riam da fala do Líder.
Após as despedidas, nos dirigimos ao posto onde eu costumava fazer guarda. Lá estava o barco de Baru. O dia estava ensolarado, apesar do frio constante que faz no polo sul.
— Vocês tem certeza que descansaram o suficiente? Apenas dois dias depois de uma viagem longa como a anterior…
— Não se preocupe com isso, meu genro, fazemos isso a muitos verões. Partiríamos antes, mas estávamos esperando você se aprontar — brincou Baru.
— Minha mãe não está contente com a minha viagem, foi difícil convencer ela.
— Filha, quando voltarmos, seria bom você conhecer a mãe do Thermon. Ela será sua sogra, afinal.
Jouci não respondeu. Continuou andando com a cabeça um pouco baixa, pensativa. Eu não saberia dizer se ela estava apenas ignorando Baru ou considerando a proposta. Decidi apenas ignorar a brincadeira de Baru e continuar seguindo até o barco.
Alguns ciclos depois, estávamos no posto de vigia. O guarda da vez era o mesmo que havia me rendido quando Baru e Jouci chegaram. Aquele que eu não sabia o nome.
— Alto lá, o que desejam aqui? — Ele falou.
— Somos os viajantes. Temos a missão de levar Thermon até os Elfos.
— Posso ver a autorização? — O guarda estendeu a mão direita, aguardando os documentos.
— Está aqui! — Baru entregou três papéis azulados ao guarda.
Eu nem havia considerado a necessidade de uma autorização. Já solicitei autorizações para eles no passado, só não imaginei que eu mesmo precisava de uma.
— Ainda bem que você lembrou disso, Baru, ou eu teria que voltar até o senhor Tomoga para pegar o documento.
— Imaginei que um novato como você faria tal coisa, hehehehehe — ele riu enquanto eu enrubesci. Jouci cobriu a boca para abafar pequenas risadas.
— Está tudo certo, podem prosseguir! — O guarda entregou os papéis e voltou ao seu posto.
Tomei a frente do grupo. Com dois movimentos rápidos de minhas mãos o gelo em volta do barco virou líquido e depois gelo novamente, formando uma escada parecida com a que eu havia feito para os meus guias subirem na última vez.
— O que estamos esperando? Vamos logo! — Falou Baru, ao seguir na frente do grupo. Jouci e eu fomos atrás.
Ao entrar no barco logo percebi que a viagem não seria fácil para mim. Não se passou um espaço de tempo e eu já estava me sentindo enjoado. Desfiz a escadaria de gelo e partimos para alto mar.
— Thermon, está se sentindo enjoado? Coma estas algas, que você melhora rapidinho.
Peguei as algas da mão do Baru. Tinham cor de musgo escuro e cheiro de peixe podre. Enfiei um grande punhado na boca. Jouci me olhava com um sorriso de canto de olho, com uma expressão que dizia “Olha só, esse bobalhão, enjoado com essas ondinhas”. Ignorei.
Baru ficou de pé na popa do barco, enquanto eu e Jouci nos sentamos, cada um em um dos lados da embarcação, fazendo contrapeso. Baru fechou os olhos e levantou os dois braços. No mesmo instante senti o barco inclinado para frente e seguindo com grande velocidade. Ao olhar para trás percebi que estávamos em uma onda constante, criada pela magia de meu amigo.
— Papai consegue ficar nesta posição por cerca de seis ciclos. Depois será minha vez, mas não consigo manter a onda por mais de quatro ciclos. Acha que depois de mim consegue fazer o mesmo?
— Se eu melhorar do enjoo, fico até um dia inteiro. Só preciso me acostumar com… — Ao dizer isso, virei minha cara para fora do barco e vomitei todo o café da manhã e as algas.
— Aqui tem mais algas, coma. Se conseguir manter elas no seu estômago, vai ajudar — Jouci me entregou mais um pouco de algas, que pegou diretamente da água.
Ela podia não ser a pessoa mais educada do mundo, mas se importava com os outros.
Ficamos em silêncio durante a maior parte do trajeto. Depois de seis ciclos, os quais Baru ficou controlando a onda, foi a vez de Jouci, que fez o mesmo que seu pai.
— Baru, você está bem? — Perguntei assim que ele sentou do outro lado do barco.
— Ah, sim. Daria pra ficar um pouco mais, mas prefiro descansar. E você, já melhorou do enjoo?
— A vontade de vomitar passou, só estou com um pouco de vertigem — olhei em volta e percebi que não tínhamos nenhum ponto de referência, então perguntei. — Me diga, como sabe a direção em que temos que ir?
— Em parte pela direção do vento. Em parte, pela posição do Sol. Quando quero algo mais exato, olho para esta bússola — ela mostrou um pequeno instrumento circular, com um tipo de agulha vermelha no meio, que apontava para a diagonal direita em comparação a proa do barco.
— Nossa, não vejo um desses desde quando era pequeno. Achava que era apenas um brinquedo.
— Este brinquedo salva nossas vidas. A Jouci tem o dela. Talvez podemos conseguir uma bússola para você, com os elfos.
Já era meio da tarde quando Jouci terminou seu turno controlando a onda que nos guiava. Melhorei um pouco do enjoo, então decidi ajudar.
— Lembre-se, mantenha o curso, nada mais — falou Jouci. — Aqui, use minha bússola. Mantenha a proa do barco dez graus a noroeste de onde a agulha vermelha aponta.
— Entendido, vamos lá.
Tentando manter minha mana controlada, fiz uma onda pequena, mas que era o dobro do tamanho das feitas pelos meus companheiros de viagem. Jouci se espantou e gritou para ser ouvida por cima do barulho que a nova onda fazia:
— NÃO PRECISA SER TÃO GRANDE, VOCÊ VAI SE CANSAR MUITO RÁPIDO!
— A VERDADE É QUE NÃO CONSIGO FAZER UMA MENOR. NÃO SE PREOCUPEM, CONSIGO MANTER UMA ONDA COMO ESSAS POR DIAS SE NECESSÁRIO — gritei de volta. O lado bom é que o barco estava indo bem mais rápido. — EM CONDIÇÕES NORMAIS, QUANTOS DIAS DEMORA A VIAGEM ATÉ O CONTINENTE AURORA?
— COMIGO E COM O MEU PAI INTERCALANDO, DEMORA EM TORNO DE 10 DIAS. SE MANTERMOS O RITMO, COM VOCÊ FICANDO DESSE JEITO, PELO MENOS SEIS CICLOS POR VEZ, ACREDITO QUE NÃO PASSE DE OITO DIAS.
Assenti e continuei controlando a onda.
A viagem em si foi bem entediante. Só tínhamos algum tipo de emoção quando passávamos por alguma tempestade. O mar que estávamos viajando se chamava “Mar Calmo”. Uma piadinha sem graça, pois é a zona marítima mais tempestuosa do planeta.
Os dias passaram vagarosamente. Para tentar evitar que a jornada demorasse muito tediosa para mim, eu ficava sempre dez ciclos controlando o barco. O tempo passava mais depressa quando eu fazia alguma coisa. Parávamos apenas para dormir, sempre oito ciclos por noite.
Exatamente na metade do sétimo dia de viagem, chegamos à costa do continente Aurora.
Em uma parte bem rochosa, próxima a uma praia, atracamos o barco.
— Como vamos garantir que não roubem o barco? Aqui não tem gelo para mesclar com a paisagem. Pelo o que me ensinaram, roubo entre as outras raças é algo bem comum.
— Essa é a parte engraçada, não precisamos proteger a embarcação. Criamos um mito, sobre um barco branco assombrado, que fica atracado ao sul dos continentes. Todos têm medo dele.
— Que inteligente… — Então olhei para o mar pensativo e disse. — Baru, qual a distância que percorremos de casa até aqui?
— Contando com uma pequena margem de erro, algo em torno de Dez mil quilômetros — falou Baru, com a mesma naturalidade que falaria sobre ir em uma aldeia vizinha, ao entardecer.
— Dez Mil… DEZ MIL?! Pelos deuses, onde eu fui me meter? — Falei com os olhos arregalados e o corpo tenso.
— Achei que soubesse, haahahahaha. Vamos logo, temos uma longa viagem a pé agora. A fronteira da floresta dos elfos fica a dez dias a pé daqui.
Fui o último a descer do barco. Pela primeira vez pisei um solo com esta textura. Era irregular de mais, quente de mais. Eu não gostei.
Preparamos nossa bagagem contendo o mínimo necessário para nos mantermos. Bastante carne seca era o que fazia mais peso nas mochilas.
A paisagem era muito estranha para mim, havia poucas árvores ao redor e bastante pasto. O cheiro era bem diferente. Terra fedia a ferro, e plantas fediam a vida… É difícil explicar.
Evitávamos conversar enquanto caminhávamos, poupando energia.
Ao anoitecer, criamos iglus de gelo com a água ambiente e dormimos sob uma temperatura negativa e agradável. Eu e Baru ficamos em um iglu maior. Jouci preferia ficar sozinha, no iglu dela.
— Já sabe o que vai falar com o rei dos elfos? — Disse Baru, quando nos deitamos em lados opostos do iglu. Ele estava de barriga pra cima, fitando o teto abobadado.
— Não exatamente. Nunca fiz nada parecido com isso. O senhor Tomoga parece esperar muitas coisas de mim. Não sei se consigo corresponder a tanta expectativa… — Eu estava sentado no meu “saco de dormir”, olhando a entrada do iglu.
— É, todos nós temos grandes expectativas sobre você, meu amigo.
— Só por que eu nasci com essa maldição?
— Sei que não gosta de ter tanta mana, mas não veja como uma maldição. Você é o que nos dá esperança nestes tempos de incerteza. Ter um Escolhido pela mana é uma dádiva para toda nossa raça.
— Entendo, Baru, mas é um peso que nunca estive pronto para carregar. Na verdade, eu prefiro ser alguém mais simples. Vivendo minha vida de forma pacata… Por isso eu sou, ou era, apenas um guarda — pensei um pouco antes de continuar. — Aceitei essa missão por ser muito grato ao nosso líder. Ele fez, e faz, tanto por nós… Senti que precisava retribuir.
— Eu não sabia que pensava dessa forma, Thermon, me desculpe. Infelizmente, com grandes poderes vem a dor de cabeça… — Ele também se sentou em seu saco de dormir e me olhou nos olhos. — Não posso dizer que sei como se sente, pois seria mentira. Alguns de nós até sentem inveja de você. Eu mesmo já senti, no passado. Queria ser forte como um escolhido, mas, depois que me uni com minha falecida esposa, percebi que força não era tudo, e parei de treinar.
— Sinto muito pela Jou. Ela era uma pessoa incrível! Nunca perguntei as circunstâncias da morte dela para você. Seria muito indelicado da minha parte… Foi em uma das viagens ao exterior, certo?
— Já posso contar essa história sem lágrimas nos olhos… Estávamos eu, Jouci e Jou, voltando de uma incursão ao continente Sáfaro, após conseguir um suprimento enorme de bebidas. Jouci não tinha nem dez primaveras. Fomos emboscados por um Navio humano, todos maltrapilhos e fedorentos. Eles sabiam que estávamos com muitos barris de vinhos e com alguns punhados de ouro. Provavelmente alguém informou a eles, assim que conseguimos a mercadoria. Não tivemos chance alguma, eram mais de vinte. Nos rendemos de imediato, mas, um engraçadinho entre eles, achou que seria legal mexer com a Jouci, falando que ela era bonita ou algo do tipo — ele fez uma pausa, seu rosto formou uma expressão que não identifiquei. Ficava entre o ódio e a tristeza. — Jou não pensou duas vezes antes de avançar contra o humano. Ele carregava uma espada. Antes que eu pudesse reagir, o meliante cortou a garganta da Jou… Nem se importaram comigo ou com a Jouci, só levaram a carga e nos deixaram à deriva. Foi a última vez que senti inveja de você, Thermon… Com a sua força, eu teria acabado com eles em um instante… A pior parte foi ter que levar o corpo dela de volta. Como só eu conseguia guiar o barco, a viagem durou o dobro do normal.
— Que selvageria… Mesmo assim, você e sua filha continuam as viagens? Com tão pouca segurança? Sei que a sua família tradicionalmente faz o contato com o exterior, mas só vocês dois é praticamente suicídio!
— É necessário, Thermon. Nosso povo precisa de nós. O senhor Tomoga tem visões frequentes sobre mim e a Jouci, mesmo sem controle de seu poder mediúnico. É como se os deuses quisessem informar ao nosso líder que é seguro para nós seguirmos viagem. Infelizmente essas visões começaram apenas após a morte da Jou…
Eu não tinha certeza se Jouci estava ouvindo nossa conversa, mas tudo fora de nosso iglu estava completamente silencioso.
— Agradeço por ter dividido sua história, amigo. — Eu via Baru como um irmão que nunca tive.
— Eu que agradeço, Thermon. Contei isso tudo porque confio em você. Agora vamos dormir, quero sair bem cedo amanhã.
— Tudo bem. Boa noite!
Durante a madrugada acordei com vontade de urinar. Baru roncava baixo de dentro do saco de dormir. Enquanto eu passava pela entrada de meu abrigo, vi que a fogueira feita para espantar animais, estava viva, como se tivesse acabado de ser acesa.
Não vi ninguém por perto e fui até uma árvore que ficava um pouco afastada. Atrás dela fiz minhas necessidades. Com um pequeno gesto de mãos fiz com que alguns poucos litros de água de um riacho próximo se juntassem na minha frente, flutuando no ar. Com esta fonte de água higienizei minhas mãos e voltei em direção ao meu acampamento.
Para minha surpresa, ao lado da porta de meu iglu, estava Jouci, sentada no chão, com os braços abraçando os joelhos. Ela fitava a fogueira, como se estivesse hipnotizada.
— Por que não está descansando, Jouci? Também quer se aliviar? Sugiro não ir naquela árvore — apontei com o dedão da mão direita, em direção a árvore atrás de mim.
— Eca, que nojo. Você não tem modos, escolhido?
— Desculpe, não sei lidar muito bem com mulheres… O que faz aqui?
— Não consegui dormir depois do que o meu pai te contou. Não entenda errado, eu não estava bisbilhotando, é que esses iglus não são a melhor coisa para abafar o som.
Para confirmar o que ela disse, Baru deu um ronco um pouco mais alto que o normal e escutamos como se ele estivesse do nosso lado.
— Eu não queria me intrometer nos assuntos de sua família, só me preocupo com vocês viajarem tão longe de casa, quase sem proteção. Conheço o Baru há muitos, muitos verões… Participei da cerimônia que uniu Jou e ele. Todos nós, elfos-de-gelo, sentimos a perda dela. Pessoa incrível… Uma vez, quando tínhamos menos do que a sua idade, saímos eu, Jou e seu pai, para caçar focas-transparentes, na extremidade oeste do polo sul. Demoramos muitos dias para voltar para casa — dei uma risadinha sem graça. — Minha mãe quase me matou de tão brava que estava. Se não fosse a doçura da Jou, ao falar com ela, acredito que “Thermon, ‘o Escolhido dos Elfos-de-Gelo'”, não estaria aqui para contar essa história… Desculpe novamente, estou falando demais!
— Não precisa se desculpar, eu gosto de ouvir sobre a mamãe. Meu pai é muito recluso sobre esse assunto. Mesmo quando estamos sozinhos, no meio do oceano, ele não fala sobre ela para mim. Ter se aberto com você mostra que a ferida no coração dele está diminuindo. Isso me deixa feliz.
Foi a primeira vez na vida que não a vi como uma pirralha, e sim como uma igual. Conversar no mesmo tom, sem zombarias, deixa qualquer pessoa mais madura.
— Fico contente em ouvir isso, mas agora vamos dormir, ok? Temos uma longa peregrinação amanhã.
Quando me abaixei para entrar no iglu, ela me chamou:
— Thermon! — Ela literalmente NUNCA me chamou pelo nome. Me assustei um pouco com isso.
— O que precisa?
— Sei que está tarde, e deve estar cansado, mas pode falar um pouco mais sobre minha mãe?
Após uma breve pausa, dei um sorriso bobo e falei:
— Como eu poderia negar? Me passe uma barra de carne de foca seca, que fico mais uns dois ciclos aqui, sem problemas.
Ela também sorriu, revirou a bolsa que levava ao lado de seu corpo, e me entregou um embrulho. Esperei ela sentar perto da fogueira e me sentei do lado oposto.
Quando eu terminei a quarta ou quinta história sobre uma jovem, e sapeca, Jou, ao longe, vimos o sol começar a nascer.
— Acho que passamos um pouco do tempo, hahaha. Mesmo sem dormir, consegue passar o dia todo andando, Jouci?
— Sim, estou acostumada a dormir pouco. Ouvir sobre minha mãe me deu bastante energia, obrigada. De verdade!
— Ao seu dispor. Tenho histórias engraçadas e embaraçosas do Baru também. Se quiser te conto durante nossa caminhada de hoje.
— Marcado! — Respondeu Jouci, abrindo um largo sorriso que alcançou os olhos.
Os próximos nove dias que se seguiram foram bem parecidos. A paisagem mudava pouco, com árvores bem espaçadas em planícies enormes.
Seguíamos ao lado de um pequeno riacho por segurança. Nós três dependíamos da magia elemental de água para nos protegermos. Isso atrasou um pouco a viagem, pois o caminho de água serpenteava em curvas bastante acentuadas que demoravam a voltar para a direção que pretendíamos ir. Felizmente o riacho nascia na floresta élfica, então estávamos no caminho certo.
Perto do anoitecer vislumbramos, no final do horizonte, árvores majestosas. Mais uma etapa de nossa viagem estava chegando ao fim.
— Vamos acampar aqui, amanhã alcançamos a floresta — falou Baru, enquanto tirava sua grande mochila das costas.
— Quando amanhecer eu faço um trenó de gelo e nós chegaremos à floresta num instante! — Comentei.
— Só agora você fala que pode fazer isso? Me devolva meus dias de caminhada, já! — Disse uma furiosa Jouci.
— Eu só consigo fazer isso se o terreno for como este à nossa frente, quase plano. Durante nossa caminhada não vi oportunidades para usar um trenó.
— Você poderia criar um caminho se quisesse, sei disso! — Ela continuava furiosa.
— Sim, ele poderia criar um caminho para um trenó usando a água do riacho. Com isso ele mataria toda a vegetação ciliar e animais que dependem dessa água. Jouci, menos, por favor! Não estamos aqui para mudar a paisagem ou acabar com a fauna. Com grandes poderes vem-
Advertiu Baru até ser interrompido.
— Tá bom, já entendi! Desculpa por ser egoísta. — Ela parecia falar a verdade ao se desculpar.
— Não te culpo por estar aborrecida, Jouci. Essa viagem não está sendo fácil para ninguém. Vamos descansar por enquanto — falei.
Nesta noite dormimos todos bem rápido, devido ao cansaço acumulado.
Ao amanhecer, cumpri com o combinado e criei um trenó de gelo bem resistente. Consigo usar pouca água do riacho para ajudar a nos impulsionar, pois o caminho de onde estávamos até a floresta era quase todo descida.
— Todos a bordo!
Foi divertido fazer o restante do caminho com este trenó. Preciso fazer isso mais vezes. Antes de percebermos, já havíamos à beira da floresta.
Desfiz o trenó e o transformei em vapor d’água, que usei para envolver nossos arredores e nos ocultar. A neblina tinha em torno de cinquenta metros de diâmetro. Tentei deixá-la bastante espessa em todas as direções, menos na direção em que estávamos seguindo.
Andamos cerca de cem metros floresta adentro e Baru disse:
— Assim dificilmente seremos atacados de surpresa. Boa ideia, Thermon.
— Sabe para qual direção fica o reino élfico, Baru?
— VOCÊ JÁ ESTÁ NELE, PRIMO! TODAS AS ÁRVORES QUE VEEM SÃO NOSSO REINO! — Uma voz muito alta, vinda de pelo menos três direções diferentes, proferiu estas palavras.
— Baru, Jouci, fiquem atrás de mim.
— Alterei o estado do vapor d’água para líquido, criando uma pequena cúpula de água à nossa volta. Novamente deixei apenas a parte da frente aberta, para poder me comunicar.
— COM QUEM TENHO O PRAZER DE ESTAR FALANDO? — Gritei a plenos pulmões.
— BEM VINDO A GRANDE FLORESTA “GALHO-PERPÉTUO”, A MAIOR FLORESTA DO MUNDO! ME CHAMO ROGI. Ao seu dispor!
Ele saiu de trás de uma árvore enorme, poucos metros à minha frente, enquanto parava de gritar. Era um elfo com aspecto de jovial, cabelos marrom-claro, uns trinta centímetros mais baixo que eu. Se não prestasse muita atenção ele poderia se passar por uma criança. Ou talvez um anão… Vou guardar estes pensamentos para mim, assim evito problemas.
— Me chamo Thermon, das tribos dos elfos-de-gelo, do polo sul. Venho em paz! Minha missão é entregar uma mensagem ao seu rei! — Levantei sob minha cabeça a carta com o selo de nosso líder.
— Thermon? Já ouvi esse nome… Espere, você é um escolhido, não? O que uma força da natureza, como você, faz como mensageiro? Você está muito longe de casa, amigo — Rogi se aproximou alguns metros, para me ver melhor, como se eu fosse um animal exótico.
— Não posso falar os detalhes, mas tem a ver com a possibilidade de ajudarmos vocês, primos do continente. Claro, para isso precisamos entregar esta mensagem primeiro.
— Pessoal, podem baixar os arcos. Vamos levá-los à capital. Lá nossos superiores decidem o que será feito.
Ao terminar a frase ouvimos à nossa volta barulhos parecidos com cordas tensionadas sendo soltas com cuidado. Olhei para cima e vi doze elfos nos cercando pelas copas das árvores. Todos estavam desarmando seus respectivos arcos.
Não senti a presença deles e fomos emboscados. Eu poderia ter sido morto sem nem saber o que me acertou… Preciso tomar mais cuidado.
— Senhor Rogi, poderia avisar aos seus superiores que esta mensagem é do senhor Tomoga, nosso líder atual? Provavelmente facilitará que nossa missão se concretize.
— Terei isso em mente. Escoltaremos vocês até nossa capital. Podem ficar tranquilos que nada acontecerá com vocês, primos azulados!
— Agradeço a preocupação. Conseguimos nos proteger sozinhos. Apenas nos mostre o caminho.
— Entendido. Vocês cinco, cuidem bem de nossos convidados, seguirei na frente para avisar sobre nossos “visitantes” — Rogi apontou para uma parte do grupo, onde tinham cinco elfos.
Com isso fomos acompanhados pelos cinco dos doze elfos.
Um dia de viagem depois, paramos para acampar, ao anoitecer. Estávamos a alguns metros de um riacho diferente do que seguimos para chegar na floresta.
— Sugiro que acampem debaixo destas árvores-de-cheiro — falou um dos elfos que nos acompanhavam. Ele apontou para árvores um pouco mais baixas, de troncos um pouco mais finos e amarelados. — Ficar perto delas não é agradável ao olfato, mas seu cheiro forte espanta todo tipo de animal, até mesmo insetos. É ótimo para passar a noite.
— Agradeço a informação. Onde vocês ficarão? — Perguntei.
— Estaremos por perto, não se preocupem.
Ao terminar a frase, os cinco elfos deram meia volta e desapareceram de vista.
Estava muito escuro para podermos enxergar mais que um palmo à nossa frente.
— Quando ele disse que estas árvores têm cheiro forte, não “estafa” de brincadeira — Jouci apertava o nariz enquanto falava. O som de sua voz saia engraçado.
— Não falei antes para evitar problemas, já que as coisas estão acontecendo relativamente bem. Eles são da “guarda das copas”. Não existe ninguém no mundo que consegue navegar por esta floresta mais rápido que eles. Eu já vi alguns no passado, mas eles não falaram comigo, porque eu não cheguei a entrar na floresta.
— Calma, nem você tinha entrado nesta floresta antes, Baru?
— Acredito que o último elfo-de-gelo que entrou aqui foi o próprio Tomoga. O mais longe que cheguei foi em uma aldeia de elfos, na beira da floresta, uns dez quilômetros a leste de onde entramos. Eles trocam peixes por especiarias muito deliciosas. Sabe o sal-de-fogo?
— Depois focês confersam, por fafor. Famos construir os iglus logo. Fede demais aqui! — Jouci falava com sua voz nasalada, as palavras com “V” saiam com som de “F”.
— Tá Bom. Farei um iglu para nós três. Tudo bem para você, Jouci?
— Fai logo, não tô aguentando o fedor!
Usei água do ar e do pequeno riacho, e criei um iglu para nós em poucos segundos.
Jouci entrou correndo.
— Ah, aqui dentro também fede. Não consegue fazer nada sobre isso, Thermon? — Jouci saiu do abrigo ainda com a mão no nariz.
— Infelizmente não. Você vai ter que continuar falando na “língua-do-efe” por mais um tempo.
— Que saco! — Jouci revirou os olhos e entrou novamente no iglu.
Pronto. Voltei a vê-la como uma pirralha.
Mais quatro dias se seguiram neste mesmo ritmo. Os elfos que nos escoltavam não interagiam conosco, mesmo se perguntamos algo. Eles pareciam muito entediados. Acho que a velocidade que andávamos era muito inferior à que eles costumavam usar para navegar pela floresta, os deixando um pouco impacientes.
No meio do quinto dia, após nossa partida, ouvi um barulho à nossa frente. Era como um pio de ave. Nossos guias relaxaram um pouco, como se já soubessem quem iria aparecer. Rogi surgiu pelas árvores e falou:
— Nosso rei os aguarda. Se puderem apressar seus passos , eu agradeço — ele parecia lobotomizado. Provavelmente alguém o advertiu sobre o modo como nos tratou. Eu não me importei com as boas-vindas dele, mas provavelmente algum superior élfico não diria o mesmo.
— Me diga, senhor Rogi, estamos muito longe do destino?
— Na velocidade em que vocês andam, cerca de oito ciclos — ele respondeu sem olhar para trás.
— Obrigado pela informação — Rogi não parecia muito a fim de conversar, mas eu tinha mais uma dúvida. — Uma última pergunta: como você nos encontrou no meio desta floresta gigantesca?
— Aos seus olhos, não treinados, o chão da floresta parece apenas um amontoado de folhas secas e raízes, correto? A verdade é que vocês seguiram por uma trilha feita por nós, elfos. Ela é quase invisível, mesmo para nós. Eu só precisei voltar pela mesma trilha pela qual vocês têm seguido.
— Entendo. Muito me interessa sua cultura, primo do continente. Caso tenha alguma dúvida sobre os elfos-de-gelo, estarei feliz em compartilhar experiências.
— Terei isso em mente — então Rogi se calou.
Continuamos o caminho em silêncio.
Alguns ciclos depois, Rogi anunciou:
— Chegamos. Bem-vindos a cidade Verde!
Rogi empurrou uma cortina de cipós que descia de uma árvore com mais de trinta metros de altura. A cidade à nossa frente eu sabia que era real, pois não teria a capacidade de imaginar algo tão incrível.
Centenas de casas construídas no topo das árvores. Milhares de pontes de madeira e cipó interligam toda a cidade. Pouca luz do sol ultrapassava as folhas das árvores acima, então a iluminação era majoritariamente feita por frutas arredondadas, que emitem luz. Em cada ponto que meus olhos conseguiam alcançar, via mais e mais dessas frutas brilhosas.
Rogi percebeu nosso estupor, maravilhados demais para prosseguir, então falou:
— Me sigam, vamos logo! Temos muito a fazer até vocês se encontrarem com o rei!
“As tumbas dos elfos são assustadoras! Apenas seus sacerdotes podem entrar. Caso um espertinho se aproxime, a própria floresta garante que mais uma cova seja aberta para ele!”
Passagem do livro ‘Descobertas de Mundo’, por Godur Ametis
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