Capítulo 10 - A dor do retorno
THERMON AGOURO
Corri entre a multidão de soldados derrotados, gritando os nomes de meus companheiros de viagem. O sarcófago, com o corpo do rei dos elfos, ficou no chão, no início do acampamento.
— JOUCI! BARU! ONDE VOCÊS ESTÃO? Rapaz, onde estão os elfos-de-gelo? — Perguntei a um elfo qualquer, que balançou a cabeça, pois não sabia do que eu estava falando.
Continuei passando pela multidão até chegar no final do acampamento, onde estava a barraca, que eu os vi pela última vez.
Quando entrei, vi duas elfas, criadas da realeza, terminando de embrulhar um corpo em panos brancos.
Muito ofegante, e assustado, falei:
— Senhoritas, quem estão cobrindo?
Uma delas olhou para mim, com expressão de pena nos olhos.
— Seu amigo, senhor! — Ela não suportou continuar olhando na minha direção e continuou a embrulhar o corpo.
— COMO?!? COMO ISSO ACONTECEU? QUEM FEZ ISSO?
Sem controle de minhas ações, afastei as duas criadas de maneira ríspida, e abracei o corpo desfalecido de Baru.
A dor dessa perda perfurou minhas entranhas, tornando cada vez mais difícil respirar. Lágrimas saíam de mim incessantemente, enquanto eu continuava a abraçar meu falecido amigo.
Fiquei ali, com ele em meus braços, pelo o que pareceram ciclos inteiros.
— Senhor, por favor. Nos deixe preparar o corpo para que possamos levá-lo de volta à capital.
Uma das criadas colocou a mão em meu ombro e eu estremeci. Não queria sair do lado de meu amigo. Se eu saísse dali, seu corpo perderia o pouco calor que sempre teve, e se tornaria apenas uma casca vazia.
Eu não queria aceitar, não fazia sentido!
Fiz de tudo para manter eles seguros. Nem perto da batalha eles ficaram… COMO ISSO ACONTECEU?
Um tempo longo se passou, respirei fundo e deixei meu amigo sob os cuidados das criadas. Me levantei, sem tirar os olhos do corpo e saí da tenda, bem devagar.
Do lado de fora estava um velho conhecido, Rogi.
— Meus pêsames, Thermon. Eu vi o que aconteceu com ele e posso te contar tudo quando quiser.
— Antes disso, onde está Jouci?
— A menina está dormindo. Baru pediu para desmaiarem ela antes de acontecer…
— Pediu? — Me sentei no chão, ao lado da entrada da tenda, com as mãos na cabeça, fitando o chão. — Me conte tudo, por favor!
Ele se recostou em uma árvore, próxima a entrada da tenda.
— O rei voltou aqui e iniciou um ritual, enquanto você lutava contra Alvo. Não sei muitos detalhes, mas sei que o intuito era trazer um espírito da floresta na presença dele.
— Então foi assim que o Mímico apareceu… — Pensei em voz alta.
— Mímico? Pelos deuses, agora tudo faz sentido…
— Por favor, continue, Rogi!
— O rei havia esquecido que, para finalizar um ritual desse nível, era necessário um pagamento a altura. E como quem ele queria invocar era o Mímico, por deus, um Mímico… Bem, o pagamento precisava ser uma vida! — Rogi suspirou e esfregou sua testa antes de continuar — Rei Altimanus estava desesperado e pediu por um voluntário. Ninguém entre os elfos estava disposto a tanto… Foi então que o Baru apareceu na frente de todos e pediu para ser sacrificado. A menina estava junto dele e tentou impedir. — Rogi fez mais uma pausa.
— E então? — Raiva e frustração cresciam dentro de mim.
— Baru beijou a testa dela, disse algo em seu ouvido, que não pude ouvir, e pediu para que a desmaiassem… Ela está bem. A puseram na barraca do Senhor Altimanus… Antes do ritual, Baru pediu para eu te entregar uma mensagem: “É bom você não perder, Thermon. E cuide bem da minha filha”.
— Isso não faz sentido… Por que ele daria sua vida pelo rei? — Eu só tentava encontrar um motivo racional, mas nada disso fazia sentido.
— Pelo pouco que ouvi, ele queria ser útil, ajudando a te proteger. Ouvi ele dizendo algo como “Não vou deixar que mais ninguém que eu amo morra sem fazer nada”. Olha, não sei o que se passou entre vocês, mas ele estava obstinado. Não pensou duas vezes. O Senhor Altimanus pediu para Baru entrar naquele círculo de brasas ali — Rogi apontou para uma área, ao lado do acampamento. Lá tinha um círculo de brasas soltando um pouco de fumaça. — Seu corpo carbonizou rapidamente. Creio que ele não sentiu dor. Segundos depois uma sombra saiu das brasas e foi em direção à luta.
Rogi estava muito mais sério que de costume. O pesar em seus olhos era tão grande que não me dava motivos para duvidar de suas palavras.
— Sem o Mímico eu teria morrido, com toda a certeza. Mas não valeu a pena… Eu teria me sacrificado centenas de vezes antes de aceitar isso!
— Ele sabia, Thermon. Tenho certeza!
Me levantei, coloquei a mão esquerda no ombro de Rogi e agradeci:
— Obrigado, amigo. Vou lá ver a Jouci. Depois falamos sobre seu falecido rei.
Eu estava em meu luto e acabei me esquecendo do luto dos elfos. Eles também precisavam de espaço. Deixei Rogi e fui até a tenda onde Jouci estava.
Não havia guardas lá, já que não tinham quem proteger.
Entrei sem fazer cerimônia e a vi, deitada de barriga para cima. Jouci roncava baixo, como se estivesse descansando depois de um dia cansativo de viagem.
Não queria acordá-la, mas sentei ao seu lado na cama baixa, e passei a mão em seus cabelos prateados.
Ela estava tão calma em seu sono, que parecia um crime despertá-la. Infelizmente a realidade era cruel demais.
— Jou, por favor, acorde! — Sacudi levemente seu ombro.
A garota piscou várias vezes, olhou em volta e disse:
— Thermon, o que faz aqui? Espera… Onde está meu pai? ONDE ELE ESTÁ, THERMON?
— Jou, digo, Jouci… Baru se sacrificou!
— O que? Ele fez mesmo aquilo? — Ela olhou para a entrada da tenda e depois para mim — É brincadeira, né? Vocês adoram pregar peças… Isso não tem graça, sabia?
Ela falava sem focar os olhos em nada específico. Fitava o teto, depois o chão, depois a mim.
— Jouci, ele se foi. Eu vi seu corpo. Ele se sacrificou para me ajudar.
Os olhos dela derramaram lágrimas, sem expressão. Ele olhou fixamente para mim e disse:
— Devolva!
— Perdão?
— Devolva o meu pai! — A voz dela saia muito baixa, então aumentou o volume drasticamente — DEVOLVA O MEU PAI!
Eu ainda estava sentado ao lado dela enquanto ela começou a dar vários murros em meus braços e tórax. Nenhum deles machucou mais que o som dela chorando.
Ela segurou meus ombros, abaixou a cabeça, e a encostou em meu peito, antes de continuar baixinho:
— Devolva ele, Thermon! Por favor, eu sei que você consegue!
— Se eu pudesse faria isso, minha amiga. Você sabe que eu faria!
— Faria mesmo? Você é tão importante, mas daria sua vida para um mero “viajante”? O grande Thermon, escolhido pela mana, daria sua vida por um reles elfo-de-gelo? — Sua voz saia tremida e cheia de amargura.
— Este “reles” elfo-de-gelo foi, e sempre será, meu melhor amigo! Um irmão que nunca tive! Escolhido da mana, ou não, eu daria minha vida por ele, Jou! A escolha que ele fez salvou não só minha vida, mas centenas de outras! O ser, que foi invocado do ritual, evitou muitas baixas — tentei ser o mais lógico possível, mas nem mesmo eu aceitava esses argumentos.
— Preciso ficar sozinha!
Ela se levantou e saiu correndo da barraca, sumindo da minha vista.
Uma semana depois da “batalha da clareira”, chegamos na capital élfica, escoltando os corpos do rei e de meu amigo. Jouci estava sempre ao meu lado, calada. Quando eu puxava qualquer tipo de assunto, ela respondia secamente, e voltava ao seu estupor.
Batedores foram a frente, informar sobre o falecimento de sua majestade.
Fomos recebidos em silêncio pelos moradores da gigantesca cidade suspensa.
Não queria ficar ali mais que o necessário. Entreguei o bloco de gelo que preservava o corpo do rei dos elfos e pedi algumas provisões para a viagem de retorno à minha terra natal.
Após nos darem comida, roupas limpas e novos sacos de dormir, eu e Jouci estávamos prontos para sair da cidade dos elfos.
— Está tão apressado que não vai se despedir?
Olhei para trás e lá estava Rogi, com seus comandados.
— Desculpe a pressa, Rogi, mas gastamos tempo demais aqui no exterior. Precisamos levar o corpo do Baru o quanto antes…
— Entendo… Pelo menos nos deixem escoltá-los. Levaremos vocês até o ponto onde os encontramos com bastante agilidade.
— Agradeço, amigo!
— Seguimos a comitiva de quinze elfos, que faziam curvas pelas árvores, embaixo de raízes e por clareiras. Conversamos muito pouco durante o caminho.
Em todos os momentos da viagem eu olhava para trás, verificando meu amigo. Eu coloquei o corpo de Baru dentro de um sarcófago de gelo, igual ao que fiz para Altimanus, assim evitava o apodrecimento de sua carne e facilitava o transporte, usando meus poderes.
Cinco dias passaram com a escolta de Rogi e chegamos no ponto onde nos conhecemos, quase um mês atrás..
Jouci ainda estava quieta, sempre chutando pequenas pedras pelo caminho.
— Obrigado por tudo o que fez por nós, Rogi. Desculpe não ter salvo o seu rei. Por mais maluco que ele fosse, não precisava ter morrido.
— Digo o mesmo sobre Baru… Baru Arpão, um nome diferente, e de certa forma, engraçado. Altruísta como ele, nunca vi… Espero que encontrem conforto em seus corações. Boa sorte no restante de sua viagem, camaradas!
Em respeito a hospitalidade dos elfos, eu e Jouci fizemos uma longa reverência, e saímos da gigantesca floresta.
Me mantive forte com a presença dos elfos ao meu redor, mas só com a Jouci ao meu lado eu quebrei. Menos de um ciclo andando, comecei a chorar, em silêncio.
Jouci, que não chorava desde a morte de seu pai, me olhou com surpresa, como se nunca tivesse visto uma pessoa fazer aquilo…
— Desculpa, menina. Eu estava aguentando as pontas por causa dos elfos, que nos acompanhavam… Pode ser cedo para falar sobre isso, mas tem algo que preciso falar com você — funguei e tentei limpar as lágrimas do meu rosto.
— O que é? — Ela parecia menos lobotomizada depois de me ver aos prantos.
— Seu pai pediu para que eu cuidasse de você. Se permitir, de agora em diante, serei sua companhia nas viagens aos exterior. O que me diz?
Mais um espanto. Eu não conseguia ler a expressão dela. Era uma mistura de nojo e medo? Não, não deveria ser isso…
— Temos bastante tempo até voltarmos ao polo sul. Vou pensar nisso até lá.
— Ok, ficarei no aguardo.
E ela voltou ao silêncio. Dessa vez não ficou em um silêncio lobotomizado, mas sim em um estado pensativo constante.
Parávamos para acampar, comíamos e dormíamos trocando poucas palavras.
Perdi a conta, mas acredito que passaram mais de dez dias desde que saímos da floresta, quando vimos o mar, ao longe. Chegamos na praia no momento em que o sol começou a se pôr.
— Vamos acampar por aqui esta noite. De manhã partimos.
— Tudo bem — Jouci concordou.
Aquela noite estava especialmente quente, porque havia chovido um pouco durante a tarde.
— Vou criar nossos iglus. Quer algo diferente no jantar, ou pode ser os coelhos que caçamos hoje?
— Por mim tanto faz… Ah, não precisa fazer dois iglus. Se quer viajar comigo, não precisamos ficar tão distantes assim.
Eu tinha levantado as mãos, pronto para criar os dois abrigos e fui pego completamente de surpresa. Fiquei parado na minha posição por alguns instantes e respondi:
— Ah, sim. Farei um bem grande então.
Deixei o bloco de gelo que carregava meu amigo em um pequeno abrigo de gelo, que fiz ao lado de fora do nosso iglu, tentando dar o máximo de dignidade que seu corpo merecia.
Fizemos um ensopado de coelho, comemos, nos higienizamos e nos preparamos para descansar em nossos sacos de dormir. Tudo isso com o mínimo de interação, até que Jouci puxou assunto:
— Depois de reportarmos nossa viagem ao Senhor Tomoga, o que pretende fazer? Parece que a desavença entre elfos e humanos diminuiu, então não precisaremos mais intervir. Sem contar que perdemos meu pai nessa disputa idiota… Se tem algo que eu não quero, é me envolver com isso de novo.
— Não faço a menor ideia… Esta foi minha primeira missão no exterior, além de ser a primeira vez que eu pude tomar minhas próprias decisões. É tudo muito novo para mim… O saldo da missão foi relativamente positivo, visto que evitamos um genocídio iminente, mas a morte de Baru… A lógica não faz que a dor pela nossa perda diminua.
Jouci, que estava sentada em sua cama, concordou com um balançar de cabeça.
— Acha que nosso Líder vai fazer algo sobre a morte de meu pai?
— Fala de vingança? Não, acredito que não. Mais famílias sofreriam sem motivos… Mas e você, Jou, quer vingança?
Ela fitou meus pés antes de responder.
— Tive bastante tempo para pensar desde a morte do meu pai até aqui. Nos primeiros dias eu só queria que todos os elfos morressem para pagar pela morte dele. Quando a raiva foi passando percebi que não tinha alguém para culpar… Foi escolha dele se sacrificar para garantir a segurança da maioria. O mais próximo de algum culpado seria o escolhido dos humanos, mas ele mesmo caiu na trama sem sentido de Altimanus, e também perdeu entes queridos… — Ela fez uma expressão de amargura, suspirou, e continuou. — Eu sinto um vazio tão grande agora, Thermon. Não sei o que fazer. Eu não sabia que meu pai era o meu norte, até perdê-lo. Dependia dele para interagir com os outros, para me divertir, para conversar… Agora não tenho nada!
— Você sabe que tem a mim e a todos os nossos irmãos do sul.
— Falo de uma família de verdade, Thermon. Sangue do meu sangue!
— Família não precisa ser necessariamente do mesmo sangue. Baru era meu irmão, mesmo nascido de outros pais. Ele, sem sombra de dúvidas, era família… Assim como você, Jou. Você me aceita como parte da sua família?
— E-eu… — Jouci parecia encabulada. — Isso é novo demais para mim, Thermon. Já disse que te dou uma resposta depois que voltarmos…
— Tudo bem, sem pressão — levantei ambos os braços, em rendição. — Ah, quando voltarmos, quero que conheça minha mãe. Ela vai adorar você. Talvez até te chame de netinha, hahahahahahahaha — dei boas gargalhadas imaginando a cena.
— Pare de ser idiota! Vamos dormir logo.
Então ela se deitou e virou de costas para mim, do outro lado de nosso abrigo de gelo.
“Farei o possível para fazer a Jouci feliz, Baru!”, transmiti esse pensamento, como uma prece, ao meu falecido irmão.
Deitei e logo adormeci.
Ao terminar o relatório de nossa viagem, o Senhor Tomoga nos abraçou com os olhos cheios de lágrimas.
— Essa é uma das piores notícias que poderíamos ter recebido… Baru Arpão, o melhor explorador que já tivemos, deu sua vida pelo bem dos demais! Sua morte diz muito sobre sua vida. Os deuses o saúdam, com certeza!
Jouci encolheu. Ela estava menos sensível ao assunto, mas com Tomoga falando dessa maneira, acabou a desanimando novamente. Percebendo isso, tentei mudar o foco da conversa:
— Agradecemos as condolências, Senhor… Sobre nossa viagem, como lidaremos com os assuntos externos daqui para frente?
— Perdi dois bons e velhos amigos, Thermon. Não sei se tenho cabeça para pensar sobre isso no momento… O que posso garantir é que todos os chefes de aldeia chegaram num consenso durante sua ausência: Precisamos observar com mais atenção as disputas das outras raças — ele limpou os olhos úmidos e voltou à sua mesa. — Faremos uma nova assembleia em alguns dias. Obviamente a presença de vocês é mandatória, visto que serão o centro da conversa. Agora descansem, pedirei que alguém os avise sobre a data deste próximo encontro.
Nos despedimos do Líder com curtas reverências e saímos de seu escritório.
— A cerimônia do Baru será feita ainda hoje? — Perguntei.
— Sim. As “Cinco anciãs” estão preparando seu corpo. Perto do último ciclo de hoje, começará.
Jouci falava com calma para evitar escorregar nas palavras e cair na amargura.
— Como ainda é cedo, vamos na minha casa, Jou?
— Não tenho nada para fazer mesmo. Podemos ir sim. Acredito que nunca fui a Rarco antes.
Minha casa ficava em Rarco, a aldeia mais próxima da aldeia central. Aqui, onde nosso Líder residia, moravam cerca de quinhentas famílias, em casas pequenas e aconchegantes, feitas de gelo azul. O nome da minha aldeia era Rarco, em homenagem ao seu primeiro líder, “Rarco Rasteiro”.
— Você já teve uma raposa-das-neves? — Perguntei a Jouci, enquanto descíamos pelas escadas.
— Nunca pude ter um animal de estimação. Minha vida foi sempre viajando com meu pai. Como você sabe, até temos uma casa, mas vejo ela tão pouco que parece um lugar estranho… Como a casa de um parente distante.
— Imagino… Bem, minha mãe é louca por raposas-das-neves! O polo sul não tem raposas naturalmente, então minha mãe, basicamente, contrabandeou algumas para cá e procriou várias no decorrer dos anos. Já perdi as contas de quantas ela tem.
— Como ela conseguiu trazer? Até onde eu sei, só a minha família viaja ao exterior — ainda descíamos as escadas do prédio do Líder.
— Nem sempre foi assim. Com a morte da sua mãe, Jouci, as regras ficaram mais rígidas com a saída dos elfos-de-gelo ao exterior. Mas no caso da minha mãe, Baru quem a ajudou.
— Sério?
— Sim! Você ainda não tinha nascido. Minha mãe implorou ao seu pai para trazer algumas raposas-das-neves pra ela. Ele não queria, de jeito nenhum, mas não tinha como negar. Desde pequeno minha mãe cuidava dele como um filho. Ele devia muito a ela.
Nesse momento chegamos ao saguão de entrada do prédio e saímos. O ancião Feni, que cuidava da entrada, apenas nos ignorou.
— Espera, então quando você chama meu pai de irmão não é “forçado”. Vocês se viam mesmo como irmãos.
— Sim. Baru ficou órfão de mãe muito cedo. O pai dele, seu avô, viajava com outros habitantes daqui, até Baru ter idade o suficiente para seguir com a tradição de sua família… Depois de alguns meses, com a minha mãe perturbando ele, várias raposas foram trazidas. Minha “velha” sabe conseguir o que quer!
— Ela parece ser uma pessoa muito interessante.
— De fato!
Passamos por algumas pessoas trabalhando com tecidos e várias crianças brincando. Um jovem casal nos parou, querendo prestar suas condolências.
— Sentimos muito pela sua perda, menina. Sempre que quiser tomar uma bebida gelada, passe em nossa loja, será por conta da casa — falou a mulher, que parecia ser um pouco mais jovem que eu, pela coloração mais clara de seus olhos acinzentados.
— Obrigado, senhora.
— Thermon, grande guerreiro! Ficamos sabendo que lutou contra o escolhido dos humanos. Como foi? — O rapaz, que aparentava ser mais novo que a moça ao seu lado, era forte como um guerreiro bem treinado. Seus olhos brilhavam com a pergunta.
— Garanto que para quem estava olhando de fora foi um espetáculo e tanto. A única lembrança que tenho da luta é desespero… Sozinho eu não estaria aqui conversando com vocês — e dei uma breve olhada em direção de Jouci, que deu um sorriso fraco ao entender que eu me referia a Baru e seu sacrifício. — Se nos dão licença, precisamos ir até Rarco. Tenham um bom dia!
— Obrigado. O mesmo para vocês — o jovem rapaz queria falar mais sobre a luta, mas entendeu que não era o momento.
Ao sair da aldeia central, o vento leste soprava com força, o que não incomodava elfos-de-gelo. Parecia uma brisa leve ao amanhecer.
Rarco ficava a menos de dois quilômetros de distância. Conversamos todo o caminho, sobre peixes preferidos e o clima agradável que fazia. Chegamos antes de percebermos.
— Aqui é pequeno. Não deve ter mais que sessenta famílias. Todos os residentes são bem velhos, e preferem ficar longe da agitação da aldeia central. Minha casa fica bem ali.
Apontei para uma casa um pouco afastada das demais, que tinha grades altas feitas de gelo ao redor da propriedade. Era a única casa com essas grades.
Ao chegar no portão da frente, bati palma três vezes e gritei:
— MÃAAAE! VOLTEI, COMO PROMETIDO!
— SEU MOLEQUE INGRATO, COMO SE ATREVE VOLTAR AQUI, DEPOIS DE ME ABANDONAR NESTE BLOCO DE GELO INFINITO!
— TEMOS VISITA, MÃE! ABRA LOGO O PORTÃO!
Ela bufou bem alto e saiu da casa. Ainda não dava para vê-la muito bem por entre as grades. Momentos depois o portão abriu de supetão, e ela disse:
— É bom que tenha trazido algum presente para sua velha mãe!
— Velha? Onde?? — Comentou minha companheira de viagem.
Jouci estava boquiaberta. Minha mãe gritava e agia como uma anciã ranzinza, mas não era idosa. Na verdade, ela era apenas cinquenta anos mais velha que eu. Se olhassem rápido parecia que tínhamos a mesma idade. Ela vestia um belo vestido escuro, e um xale prateado com rendas nas bordas. Os cabelos, longos e ondulados, estavam soltos, o que a fazia parecer ainda mais jovem. Seu cabelo demorou a clarear com a idade, e estava num tom prateado que brilhava com a luz do sol.
Ainda com a mão segurando o portão minha mãe percebeu que eu estava acompanhado e falou:
— Olá, minha querida, quem é você?
— Ah, o-olá. Me chamo Jo-Jouci. Sou filha do Baru. Prazer em conhecê-la! — Eu não sabia o motivo, mas ela parecia nervosa em conhecer minha mãe.
— Jouci, é você? Como pode ter crescido tanto? — Minha mãe colocou as mãos na boca, com espanto.
— Como pude me esquecer? Vocês se conheceram quando você era só uma pirralhinha. Não devia ter mais que quatro primaveras de idade — falei após a lembrança clarear minha mente.
— A senhora é tão linda. Não é possível que seja mãe desse bobalhão! — Jouci não tirou os olhos da minha mãe. Até o momento ela não piscou.
— Ah, minha querida, você me bajula que nem seu pai fazia quando criança… E onde está aquele menino atrapalhado?
Jouci olhou em direção aos pés da minha mãe, evitando ser ela a dar a triste notícia.
— Sobre isso, Mãe… Infelizmente Baru faleceu na viagem. Ele se sacrificou para salvar algumas pessoas, inclusive eu… No final do dia teremos a “cerimônia de adeus”.
Foi muita informação para processar de uma vez. Ela ficou parada no mesmo lugar, como uma estátua de gelo. Aos poucos seus olhos encheram de lágrimas e ela colocou ambas as mãos no rosto.
Jouci não ficou parada. Como se agisse por reflexo, abraçou minha mãe, e fez carinho em seus cabelos. Elas tinham a mesma altura, só percebi isso depois que se aproximaram.
— Está tudo bem, senhora… Você não falou o nome da sua mãe, bobalhão! — Jouci olhou para mim enquanto abraçava minha mãe.
— É Chandici, Chandici Bela. Desculpa não ter falado antes, às vezes esqueço que o nome da minha mãe não é “mãe”.
— Está tudo bem, senhora Chandi. Agora consigo entender que meu pai fez a coisa certa, por mais triste que seja.
— Mas ele era tão novo, minha querida… E deixou você sozinha nesse mundo horrível! — Ela fungava e limpava os olhos, que logo ficavam molhados de novo.
— Não estou sozinha, senhora Chandi. Seu filho prometeu me proteger. Seguirei minha vocação como viajante com a proteção do escolhido!
Então, enquanto confortava minha mãe, Jouci aceitou minha proposta.
Desviei o olhar, para o horizonte branco e sem fim do polo sul. Percebi que não conseguiria sustentar o olhar da minha companheira de viagem neste momento. Eu estava bem envergonhado.
— Thermon vai continuar a viajar? Meu filho, já não basta termos perdido Baru?
— Não se preocupe comigo, mãe. Sou o Escolhido de nossa raça-
— E mesmo assim nunca deixará de ser meu filho. Por favor, tome cuidado. Sempre!
— Prometo!
Vendo que não valia a pena discutir sobre o assunto, minha mãe se rendeu:
— Entrem logo, vocês dois! Me contem tudo o que aconteceu, enquanto tomamos uma xícara de chá de escamas de peixe-verde.
— A senhora continua tomando esse negócio nojento? — Falei e retorcia minha face, em desgosto.
— É ótimo para a pele. Como você acha que mantenho minha beleza?
Jouci deu um sorriso enorme com a conversa que eu estava tendo com a minha mãe. Seus olhos brilhavam.
Foi a primeira vez que ela sorriu de verdade desde a morte de seu pai.
“Não tive a oportunidade de conhecer este lugar tão fascinante! Provavelmente eu não aguentaria mais que um ciclo andando por lá… Soube que elfos-de-gelo são extremamente poderosos. Espero que nunca se voltem contra Os Cinco”
Passagem do livro ‘Descobertas de Mundo’, por Godur Ametis
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