Capítulo 19 - Vanir
THERMON AGOURO
Penur era calmo e amigável, como todos os moradores de sua cidade. Tudo que dizíamos ele ouvia com muita atenção e respeito. Gostei de ter conhecido um humano como ele.
Tala estava recostada na parede à minha esquerda, de braços cruzados. Eu e Jouci nos sentamos em cadeiras na frente de Penur, que, por sua vez, estava de pé, apoiado em sua mesa com ambas as mãos.
O prefeito estava muito aliviado por ter sua cidade salva. Deu para perceber o peso saindo de suas costas aos poucos.
— …e este é o motivo de termos vindo aqui. Além de lidar com as vespas, precisamos saber mais sobre os atentados terroristas — terminei minha explicação de como chegamos até ali.
— Compreendo… Capturamos alguns dos “terroristas”, se é que podemos chamá-los assim. Conseguimos falar com apenas um deles que, infelizmente, morreu antes de nos dar informações detalhadas. Suas últimas palavras antes de engolir um veneno foram: “Pelo bem de Vanir!” — Penur deu um longo suspiro antes de prosseguir. — Depois disso seus olhos perderam o brilho e sua boca começou a espumar. Uma morte horrível!
Talamaris estremeceu.
— Algum problema, Tala? — Jouci perguntou.
— Não… Deve ser coincidência. Vanir é um nome bem conhecido entre os elfos. Espero que não seja a mesma pessoa que estou pensando.
— Quem é este “Vanir” que os elfos conhecem? — Indaguei.
— Era um elfo, como eu. Viveu há mais de mil anos atrás. Diziam que ele era fanático pela ideia de expandirmos nossas fronteiras e enfrentar as outras raças — Talamaris olhou pela janela, não focando a visão em nada em particular. — Quando Vanir foi nomeado rei dos elfos tentou botar em prática suas ideias. Ele queria atacar todos Os Cinco de uma vez, mas todos de minha raça foram contra. Vanir foi exilado da floresta logo em seguida… Como é uma história antiga, existem várias versões, não tenho certeza de quanta verdade existe nesse conto. A única coisa que todas as histórias contadas sobre Vanir concordam é que ele era um escolhido. O último que os elfos tiveram… Por isso dizem que minha família recebeu este artefato divino — Talamaris segurou o cabo de sua espada, ainda embainhada. — Como se os deuses quisessem nos ajudar, já que não tínhamos um escolhido para nos proteger.
— Alguém pode estar usando este nome para controlar algum tipo de seita. Existe muito ódio acumulado entre as raças. Não deve ser difícil reunir simpatizantes com a causa de um elfo do passado — Penur deu sua opinião.
— Acredito o mesmo. O nome “Vanir” nos trás muita vergonha, então talvez seja apenas um engraçadinho, tentando chamar a atenção de pessoas com pensamentos mais radicais… — Talamaris parecia irritada pelo seu tom de voz.
— Sobre os ataques terroristas, queríamos ajudar mais, mas não temos outras informações além disso. O problema é que os terroristas foram muito bons em sua tarefa de destruir nossas plantações e armazéns. Perdemos pelo menos um ano da nossa safra. Depois disso ainda fomos atacados pelas vespas… — Penur suspirou mais uma vez antes de terminar. — Espero que as coisas se ajeitem com o tempo.
— Lires vai ajudar Solgos, Penur. Não fique tão cabisbaixo.
— Agradeço por tudo, Tala!
— Vespas, logo após um ataque terrorista, não parece tudo muito coordenado para você, Penur? — Talamaris ainda olhava pela janela, como se esperasse que algo ruim acontecesse de novo.
— Espere… Os terroristas que escaparam foram para oeste, logo depois fomos atacados pela calamidade. Será apenas coincidência? — O prefeito começou a revirar papéis em cima de sua mesa. — Aqui tem um mapa da região. Vejam!
Eu e Jouci nos levantamos, Tala se aproximou. O mapa amarelado era velho, porém muito preciso. Tinham vários desenhos simples de rios, florestas e morros. Havia um ponto negro, em um dos cantos do papel.
— Aqui, essa parte escura é onde fica a colmeia das vespas-da-noite. Quem fez esse mapa marcou em preto esta área em volta, que limita até onde é seguro se aproximar da calamidade. Solgos fica aqui — Penur passou o dedo indicador pelo papel, fazendo uma linha reta entre a colmeia e sua cidade. — É diretamente a oeste, não tem erro!
— Para oeste fica a colmeia das vespas e também foi para onde eles fugiram? Precisamos verificar. O que acha, Thermon? — Talamaris perguntou.
— Você acredita que o inimigo consegue controlar as Vespas? — Falei enquanto franzia o cenho. A elfa não tirava os olhos do papel.
— Não passa de um palpite, mas sim. Talvez Vanir, ou alguém ligado a ele, consiga controlar a calamidade.
— Muito bem. Se você quer ir até lá para verificar, vamos com você!
Na manhã seguinte, após nos despedirmos de Solgos, partimos em direção a colmeia das Vespas, esperando encontrar mais pistas dos ataques terroristas. Nossos cavalos seguiam emparelhados, num trote calmo e constante.
O caminho não era bem definido, pois não haviam estradas ou demarcações. Até onde a vista alcançava era apenas pasto ralo e seco.
Para nos protegermos um pouco mais do sol, Tala orientou que eu e Jouci usássemos capuzes e roupas de pano fino e manga longa, que protegessem nossos braços. Parecíamos monges ermitões vestindo isso.
— Tala, agradecemos sua companhia, mas não é melhor que volte para sua cidade?
— Eles vão ficar bem. E eu quero ver a colmeia a bastante tempo, nunca tive uma oportunidade como essa. E outra, você pode ser um escolhido, mas precisará de toda ajuda contra esses insetos.
— Já que insiste, não serei contra.
— Será muito bom termos outra companhia para a viagem. Às vezes fica um silêncio desconfortável entre Thermon e eu. Nem parece que viajamos juntos já meses… — Jouci usou seu tom zombeteiro, me fazendo ficar um pouco irritado.
— Não é minha culpa se nem sempre tenho assunto. Na maior parte do tempo estou perdido em pensamentos. Me desculpe.
— Não precisa ficar tão sério, bobão! Só estou brincando com você.
Percebendo meu pequeno desconforto com as palavras de Jouci, Tala nos observou com mais atenção.
— Vocês combinam.
— O QUÊ? — Eu e Jouci gritamos juntos. Eu com espanto, ela com um pouco de vergonha.
Igual a quem ateia fogo em folhas secas, sem se importar se a floresta em volta vai arder, Talamaris apressou sua montaria, deixando eu e Jouci para trás.
Entendendo a deixa que Tala me deu, puxei assunto com Jouci:
— É a primeira vez que ficamos realmente a sós desde Lires. Tem algo que queira falar comigo, sobre nossa noite dormindo juntos?
— …
A falta de resposta de Jouci era ensurdecedora. Quase sufocante.
— Vou entender seu silêncio como um “não”.
— Eu até tenho “coisas” para dizer, mas não quero estragar de novo o clima entre nós… Demorou para pararmos de ficar envergonhados um com o outro, e não quero perder isso. Era muito cansativo!
— Concordo que cansa agir como crianças envergonhadas, mas é que isso tudo é muito novo para mim. Nunca pensei que eu pudesse gostar de outra pessoa que não fosse Jou. Talvez só agora eu tenha começado a superar esse amor platônico… Ou talvez eu nunca vá superar… Sobre esse assunto não tenho certeza nenhuma no momento. Sei que isso é estranho para você, alguém como eu falar sobre sentimentos que tinha por sua falecida mãe, mas você é a última pessoa em Mundo para quem eu mentiria.
O trote calmo do cavalo era a única coisa que evitava o total silêncio. Jouci não demorou muito a me responder.
— Parte de mim quer te dar espaço para pensar… Já a outra parte quer te dar vários socos no estômago, mas não farei isso. Estou mesmo amadurecendo. Perder meu pai me fez olhar as coisas ao meu redor de maneira diferente — ela respirou fundo e engoliu em seco — Por isso me abri com você. Não quero me arrepender de não ter falado algo para alguém. Vivemos em tempos difíceis, e podemos perder quem amamos quando menos esperamos. Prefiro me expor mais e garantir que tudo seja dito, do que segurar todo o peso em minhas costas… Ainda gosto de você bobalhão. Ainda quero ter você ao meu lado para sempre. Leve o tempo que precisar! Vivemos bastante tempo, não é mesmo? Posso esperar…
“Você é boa demais para mim, Jouci!”, pensei em dizer, mas fiquei em silêncio. Alguns meses atrás ela era apenas uma garota birrenta para mim, mas hoje vejo como ela amadureceu.
Para evitar prolongar o silêncio constrangedor, pela minha falta de resposta, falei:
— Se acha que vale a pena esperar por esse bobalhão, eu fico feliz… Obrigado, Jouci!
— Disponha! — Mesmo de costas para ela eu quase podia ver o sorriso de Jouci.
Continuamos seguindo viagem até anoitecer.
Paramos em uma parte plana para acampar. Preparamos o jantar ao lado da fogueira, enquanto nossos cavalos pastavam a pouca grama que tinha ao redor.
A colaboração de todos facilitou o processo. Em menos de um ciclo já tínhamos comido, feito nossas necessidades, nos limpado, e preparamos os sacos de dormir. Criei blocos de gelo que deixei próximos a mim e de Jouci, facilitando que pudéssemos dormir neste continente árido. Tala deitou do lado da fogueira, quase abraçando sua espada.
A noite era anormalmente fria e eu não entendia esse conceito. De dia estávamos à beira da insolação, de noite quase ficava agradável para elfos-de-gelo dormirem ao relento.
— Mais um dia e meio e devemos conseguir enxergar a calamidade. Li um relato sobre as vespas que dizia que a colmeia tem quilômetros de extensão. Espero não termos que entrar lá para descobrir algo.
— Mal posso esperar! — O sarcasmo pesava em minha voz.
Nosso último dia de viagem se passou. Conversamos pouco, evitando gastar energia.
Para não desmaiar pelo calor, mantive pequenos pedaços de gelos flutuando ao redor de meu grupo. Nunca agradeci aos deuses por minhas habilidades tanto quanto nesta viagem. Não me admira que elfos-de-gelo não se aventuram pelo continente Sáfaro.
A última noite da viagem foi como a primeira. Começou tão rápido quanto terminou.
Pouco depois do amanhecer já era perceptível a mudança na paisagem.
No início de nossa jornada era possível ver árvores no horizonte e pequenos arbustos verdes. Agora tudo o que era visível estava em tons marrom-alaranjado, como o início de um deserto. O que em um passado distante eram árvores, agora são apenas troncos secos e sem vida.
Por um momento acreditei que o motivo para o ambiente estar assim era o próprio clima do continente. Ledo engano. Talamaris explicou:
— Aqui não é um deserto natural. O deserto deste continente começa a mais de cem quilômetros ao norte daqui. Essa paisagem morta é culpa da calamidade. Não deram este título para as vespas à toa.
— Como é possível uma espécie de vespa mudar tanto o clima? — Jouci indagou.
— Por que não poderia? Os humanos, por exemplo, quando derrubaram centenas de pequenas florestas em Aurora, para criar pastos e lavouras, acabaram mudando muito o clima do continente. Vespas são só um tipo diferente de praga.
O clima desértico afetava Jouci e eu como peixes na frigideira. Minhas habilidades estavam se tornando cada vez menos úteis para preservar nossa saúde. Mesmo com meu controle de umidade do ambiente, grande parte da água evaporou, perdida no ar.
— Falta muito, Tala? — Jouci falou, muito tonta com o calor.
— Conforme este mapa, devemos conseguir ver a colmeia depois daquele morro — ela olhou para trás, nos encarando — Vocês estão bem?
Não respondemos. Nem sei se conseguiríamos.
Nossa guia era afetada pelo calor, mas não como elfos-de-gelo. Dela apenas víamos pouco suor escorrer de seu rosto. Até nossos cavalos pareciam em bom estado. Já eu e Jouci estávamos moribundos.
Pouco tempo depois, alcançamos o topo do morro. No horizonte era visível uma nuvem espessa, escura e organizada, cobrindo centenas de hectares.
A colmeia era magnífica e assustadora ao mesmo tempo. Estávamos a dezenas de quilômetros de distância dela, mas dava para sentir a vibração das asas dos insetos.
Todos os meus instintos gritavam: “Não se aproxime!”.
— Talvez essa não tenha sido uma boa ideia. Como vamos encontrar algo perto, ou dentro, da colmeia? Parece uma floresta de insetos gigantes! — Jouci estava perplexa.
— Se continuarmos nos cavalos logo seremos enxameados pelas vespas. Nada vivo escapa aos olhos delas, e, pelo o que sei, cavalo é o tipo de animal que elas mais gostam de comer. Vamos deixar nossas montarias aqui, onde ainda existe um pasto ralo. Thermon, junte o máximo de água que puder para fazer um pequeno açude para os cavalos se refrescarem. Teremos que seguir a pé.
— Meu medo era que dissesse isso! — Jouci completou.
Depois que segui as instruções de Talamaris, fomos em direção a colméia. Ordenei que alguns litros de água, que acabara de reunir do ambiente, nos rodeassem, como uma redoma quase invisível de gotículas de água. Assim eu não seria inútil em uma possível batalha futura.
— A temperatura baixou bastante, bobão. Poderia ter feito isso antes! — Jouci estava muito falante para quem estava quase desmaiando de calor.
— Eu precisava guardar energia. É parecido com o que fiz quando fomos para Aurora na primeira vez. Eu não posso depender das minhas habilidades para tudo. Posso ser forte, mas tudo tem um limite.
Andamos pelo o que pareceu metade de um dia. Ainda estávamos longe das vespas. Quando algo anormal ocorreu.
Tala parou onde estava, segurou Jouci e eu pelos braços, e falou:
— Temos companhia!
Demorei muito para perceber. Tempo demais. Cerca de cinco búfalos-de-escama, montados por pessoas de várias espécies, se aproximavam, aparentemente vindos de onde a colmeia ficava. Todos os seus cavaleiros seguravam lanças longas.
— Quem ousa se aproximar da colmeia? Deem meia volta ou seremos obrigados a liquidar vocês aqui mesmo! — A voz grossa do anão montado no búfalo mais baixo fez com que eu sentisse um frio na espinha.
— Desculpe, nos perdemos de nossa comitiva. Estávamos indo para Solgos! — Tala mentiu descaradamente, esperando despistar os guardas.
— Entendo — falou um humano magrelo, sentado em búfalo espacialmente gordo. — Agora deem o fora daqui. Solgos fica para o outro lado!
— Obrigado, bom senhor. Nós partiremos agora!
Quando nós três nos viramos, prontos para tentar despistar os guardas, um deles gritou:
— ESPEREM! Que fedor de mana é esse? — A nova voz fez com que parássemos no lugar. Ele olhava em volta com desconfiança. — Aqui está mais frio também… Quem de vocês está fazendo isso?
O guarda humano se aproximou de nós, com a lança apontando para o meu peito. Tentei sussurrar para Tala:
— Posso desmaiar eles? É fácil fazer isso dessa distância!
— Acho melhor não! — Ela respondeu.
— CALEM A BOCA! Vocês dois, tirem seus capuzes!
Não esperei que ele se aproximasse mais. Com um movimento de minhas mãos a água ao redor se reuniu. Estava prestes a prender todos eles em casulos de gelo quando algo me acertou na altura da nuca, logo depois senti uma leve picada no mesmo lugar do impacto.
Caí de joelhos no chão. Depois senti como se algo pequeno na frente do meu pescoço explodisse.
— Eu sabia que um de vocês poderia ser forte, mas não que era tão versado a ponto de controlar água no deserto… Estou impressionado!
Uma voz masculina, e um pouco rouca, falava as minhas costas.
Toda a água que eu estava aglutinando ao meu redor simplesmente caiu no chão, junto comigo. Jouci e Talamaris se preparavam para me defender, mas elas também foram pegas de surpresa por outros capangas.
Três homens, elfos pelo o que pude perceber, nos acertaram por trás, com espécies de varas que carregavam grilhões nas pontas. Os grilhões foram presos em nossos pescoços com muita força.
Não havíamos percebido que estávamos cercados, pois o zumbido constante das vespas ao longe atrapalham até mesmo ouvirmos nossos pensamentos. As pessoas que nos acertaram saíram de trás de pedras ao redor. Deviam estar acampados ali por dias para isso ser possível ou sabiam que viríamos. Em todo o caso, não tinha muito o que ser feito agora.
Eu perdia minhas forças aos poucos, sem entender o que estava acontecendo. Talamaris e Jouci desmaiaram no instante em que foram golpeadas. Os guardas que nos surpreenderam puxaram meu capuz e o de Jouci, logo percebendo o que éramos.
— Elfos-de-gelo? Estão um pouco longe de casa, não? — Falou o anão, ainda montado em seu búfalo.
— Espera um pouco… Um elfo-de-gelo, controlando água ambiente no deserto? Este não poderia ser Thermon? — Falou um dos elfos, que prendeu os grilhões em nós.
— O chefe vai adorar esse presente! — Uma nova voz, desta vez feminina, falou entre os cavaleiros de búfalos.
— Durma um pouco. Vanir vai adorar recebê-los!
Fui desmaiado com um golpe de porrete em minha cabeça.
Acordei quase me afogando.
Alguém jogou um balde de água em meu rosto, de baixo para cima.
Demorou alguns segundos para eu entender onde estava. Era muito escuro, e estranhamente silencioso. As tochas ao redor projetavam sombras bruxuleantes nas paredes da caverna.
Percebi que estava longe do chão. Suspenso de alguma forma.
Braços, mãos e pernas imobilizados. Minha posição era estranha, como se estivesse deitado de bruços, mas com os braços bem abertos. Espécies de gaiolas envolviam meus membros, impossibilitando qualquer movimento.
Tentei mover meus dedos, mas sem sucesso. Até respirar era difícil.
Fechei meus olhos, tentando manter a calma. Usei toda minha força de vontade para controlar qualquer uma das gotas de água que escorriam pelo meu rosto. Novamente, sem sucesso.
— Poupe seus esforços, Thermon. Nem mesmo Alvo escaparia desta prisão…
— A voz do homem era calma e lenta, dando a entender que ele estava no comando.
Tentei falar, mas algo estava obstruindo minha boca, como uma mordaça de pano.
— Ah, mil perdões. Vou tirar isso de você — o homem cortou o pano em minha boca com uma espada que não pude ver muito bem. Consegui respirar melhor.
— Onde estão… Minhas… Companheiras? — Falei ofegante.
— Se preocupando com outras pessoas, mesmo estando nessa situação? Muito nobre de sua parte… Elas estão bem. Ainda não decidi o que farei com elas. Provavelmente se tornarão escravas.
Até este momento não vi nada do homem além de suas pernas. O aparato que me prendia impossibilitava que eu olhasse para o alto. Como eu estava a menos de um metro do chão, minha linha de visão era muito limitada.
Conseguia virar meu pescoço poucos centímetros para os lados. A claustrofobia começou a me afetar.
— Você é Vanir? — Consegui falar depois de muito esforço.
— Tento me livrar desse nome a muito tempo…
— O que quer comigo? — Eu fitava o chão, em minha posição desconfortável.
— Acho que agora é a hora do discurso do vilão, não é mesmo?
Me mantive quieto.
— Você tem tempo para me ouvir…? Que piada sem graça, é claro que você tem tempo — Vanir pegou um banco e sentou ao meu lado. Eu ainda não conseguia ver seu rosto. — Você deve querer saber como foi pego de surpresa, certo? Os grilhões que usaram para te imobilizar são uma invenção minha. Na verdade, só o conceito é invenção minha. Quem construiu foi um anão, amigo meu… Sabe os cristais de mana? Aqueles que conseguem sugar mana ao toque? Bem, o que poucas pessoas sabem é que os cristais mais brutos são muito reativos a mana. Dependendo do tamanho da pedra, e de quem as toca, pode acontecer uma pequena reação. Caso um cristal de mana bruto entre em contato direto com o pescoço, ou tórax, de uma pessoa, a pedra suga toda a mana que puder antes de explodir. A explosão não é forte a ponto de machucar ninguém, mas as pedras fazem um ótimo trabalho em incapacitar quem tocar nelas. Os grilhões que prenderam você e suas amigas são especiais. Além de sugar a mana, usando os cristais, uma pequena agulha injeta um anestésico potente no pescoço. Suas amigas desmaiaram na hora. Já você, por ser um escolhido, ainda se manteve consciente… Devo parabenizá-lo pela resistência.
— O que ganha prendendo pessoas? Por acaso é um mercador de escravos?
— Já fui, mas esta prática não está alinhada com os meus objetivos atuais, então mudei minha área de atuação. Hoje eu controlo alguns núcleos rebeldes pelo mundo.
— Rebeldes..? Se rebelam contra quem?
— Simplificando? De todos! Mas não entenda errado, não somos rebeldes sem causa. Quem se alia a mim tem um propósito. Na maioria das vezes é por vingança. Em outros casos é por desespero… No geral todos que trabalham comigo buscam poder, e eu posso ajudá-los!
Faltava muito em sua explicação para eu poder começar a entender. Eu precisava saber mais:
— Está óbvio que foi sua organização que cometeu os ataques terroristas contra os estoques de alimentos… — Precisei tomar fôlego para continuar falando. — Você tentou culpar os elfos-de-gelo pelo o que fez… Qual o motivo disso tudo?
— Eu sabia que mais cedo ou mais tarde nossos ataques fariam com que você saísse do polo sul, mas nunca imaginei que viria direto para mim… Sim, Thermon, foi tudo uma pequena armadilha para te atrair para o exterior, e depois te caçar! Você não imagina o quanto me ajudou vindo até aqui!
— Não é possível! Até as vespas têm a ver com isso?
— Esses insetos malditos? Claro que não! Eu só estava testando nosso controle sobre elas ao enviá-las contra Solgos. Ao que parece esse foi mais um movimento de sorte, já que facilitou nosso encontro…
— O que fará comigo? — Perguntei, enquanto perdia as esperanças.
— Eu preciso te manter preso aqui. Seria mais prático apenas cortar seus braços e curar o ferimento, mas não quero correr o risco disso te ajudar a escapar de forma alguma… Eu sei o quanto você necessita de seus braços e mãos para usar suas habilidades. Enquanto estiver imobilizado não poderá fazer nada — Vanir levantou do banco, se preparando para sair. — Aproveite a estadia.
— Pelo menos me diga, por que contou tudo isso?
— Por que eu teria medo de esconder algo, se você nunca vai sair daqui?
Vanir se aproximou de mim novamente, soltou alguma trava metálica perto do meu pescoço, e levantou meu rosto para encarar o dele. O homem tinha um olhar feroz enquanto segurava meu rosto com ambas as mãos.
Quando pude vê-lo percebi que parecia um humano de meia-idade. Seus cabelos estavam presos em um rabo-de-cavalo mediano. Dava para identificar que eram na cor marrom escuro com mechas prateadas. O homem devia estar na casa dos cinquenta verões.
Vanir continuou:
— Já tenho você, agora só faltam quatro escolhidos!
— O-o quê?
Meu captor estava se preparando para sair quando me deu uma última informação:
— Ah, quase me esqueci. Estou muito agradecido por isso aqui também. Eu achava que era apenas um mito ela estar fora da floresta.
Ver o que Vanir segurava me deixou mais aterrorizado do que qualquer coisa dita nesta conversa. Era uma espada ornamentada e esverdeada.
Ele empunhava a espada de Talamaris.
“As planícies ao redor de onde hoje está a colmeia das vespas já foi linda e frondosa. A falta de supervisão facilitou que a área fosse tomada pela calamidade. Quinhentos anos atrás era possível ouvir até pássaros por ali”
Cadon, antigo morador de Solgos
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