Índice de Capítulo

    VALEN

    Por causa do meu pequeno machucado, se tornou ainda mais urgente derrotar meu oponente.

    Usei a aura concentrada nos dedos da mão direita e cauterizei a área envenenada. Isso não me curaria, mas evitaria que mais veneno se espalhasse pelo meu corpo.

    A dor da pele em brasa me tirou do estupor devido aos efeitos do envenenamento. O cheiro de pele e pêlos queimados era nauseante, mas também ajudou a me despertar. Com isso ganhei alguns instantes antes de ser devidamente nocauteado pela toxina.

    — Seu golpe repentino me assustou. Acho que preciso ficar mais sério também — Vanir rasgou a manga da sua camisa direita, para ambos os braços ficarem à mostra.

    Meu oponente não era forte fisicamente, mas tinha uma estrutura muscular bem definida, mostrando que treinava com alguma frequência.

    O céu da manhã começou a escurecer. Várias correntes de vento foram em direção a Vanir, como se ele fosse o epicentro de um furacão se formando. Instantes depois meu inimigo flutuava poucos centímetros acima do chão, com os braços abertos.

    A expressão dele era de triunfo. Eu mal me mantinha em pé, tamanha a força dos ventos ao meu redor. Precisei me abaixar um pouco para não sair voando.

    — Já que as estrelas anteciparam nosso encontro, vou tratar de aproveitar essa oportunidade.

    “Uma pessoa que acredita em destino? Mais um motivo para ele ser meu inimigo!”, pensei.

    Não queria dar mais tempo para ele se preparar, mas eu não tinha a vantagem aqui. O chão estava forrado por raízes e galhos com espinhos envenenados, dificultando minha mobilidade, ao mesmo tempo que meu inimigo tinha a superioridade aérea. Eu ainda segurava a espada, que já não era tão útil, pois minha aura era mais cortante. Como eu não ia usar a arma daqui em diante, decidi testar os reflexos do meu oponente.

    Arremessei a espada de Ragus contra o peito de Vanir. O vento empurrou meu oponente para o lado, sem muito esforço. A espada zuniu pelo horizonte, desaparecendo algumas dezenas de metros atrás dele.

    O tempo estava contra mim, então avancei novamente. Dessa vez foquei minha aura nas pernas, evitando que qualquer espinho me machucasse de novo. Saltei rápido, mirando um golpe no pescoço de Vanir, que, novamente, desviou sem problemas. Como passei direto por ele, e ainda estava no alto, pude ver onde a espada de Ragus havia caído. “Ótimo!”, pensei.

    A gravidade fez eu voltar ao chão, menos de vinte metros de distância de onde Vanir flutuava. Ambos nos encaramos de novo.

    — Vai ficar só na defensiva? — Perguntei.

    — Estou te medindo, humano… Por mais que eu saiba tudo sobre você, ainda é uma surpresa te enfrentar sem a devida preparação.

    Fitávamos um ao outro. Como eu tinha um pequeno plano, precisava estar onde agora ficam as costas de Vanir. Decidi rodeá-lo devagar, como uma dança. Ele fez o mesmo.

    — É óbvio que não preciso te atacar, humano. Se quer vencer precisa fazer mais que me encarar.

    Infelizmente, para mim, ele estava certo.

    — Não costumo deixar meus inimigos vivos por muito tempo. Estou apenas procurando uma brecha…

    Enquanto terminava a frase cheguei onde queria, voltando para perto dos capangas caídos de Vanir. No mesmo instante fiz um sinal com a cabeça e Listro entendeu no ato. Ela arremessou a espada de Ragus em direção às costas de Vanir, quase tão forte quanto eu fizera.

    Este era o plano: Me usar de isca enquanto ela se aproximava por trás, com a espada. Entendi o plano de Listro no momento em que a vi segurando a arma ao longe.

    O lançamento foi certeiro. Vanir só não foi nocauteado pois sua armadura de vento rodopiante evitou um ponto vital. A espada lançada desviou cerca de quinze centímetros para a esquerda e para cima, fincando no ombro esquerdo de nosso inimigo.

    O espanto no rosto de Vanir era palpável. Sem se importar com a dor, ele virou para Listro, pronto para lançar algum tipo de magia de vento, mas não deixei ele finalizar.

    Avancei como uma lança em sua direção. Ele não percebeu minha aproximação até dois metros antes do impacto. 

    Minha mão direita atravessou suas costas, no ponto onde antes ficava seu coração. Com o meu peso e o dele somados, o vento que o fazia flutuar não aguentou, e descemos devagar. Arranquei a espada de Ragus de seu ombro e a joguei no chão.

    Toda a magia ao redor cessou. A força dos ventos diminuiu enquanto os espinhos e raízes no chão murcharam. Senti Vanir ficar mole. Arranquei meu braço direito de suas costas. Não havia sangue, pois o local ficou cauterizado.

    Desativei minha aura.

    Listro se aproximou, ofegante.

    — É possível alguém como ele existir? Nunca vi uma pessoa com tanta mana não ser um escolhido… — Ela parou ao meu lado, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha direita. Com a mão esquerda ela tirou algo dos bolsos. — Aqui, mastigue isso, vai ajudar com o envenenamento — Ela me entregou um punhado de folhas verde-claro que cheiravam muito mal. — É “catinga-de-boi”. Ajuda com a maioria dos venenos. Você vai vomitar um pouco, mas deve melhorar logo.

    Com bastante pressa para salvar a minha vida, enfiei todas as folhas na boca. Transformei a planta numa pasta amarga e fedorenta depois de as mastigar. A sensação foi a mesma que lamber peixe cru, não que eu tenha feito isso quando criança, perto dos oito verões de idade… Peixe cru é horrível!

    Alguns arrepios pelo nojo depois, comentei a fala de Listro:

    — Minha primeira hipótese é que ele tinha a ajuda de um artefato para ter tanto poder… Agora, me diga, onde está Tobin?

    Eu e ela olhamos para a direção oposta ao corpo de Vanir, enquanto Listro apontava onde havia deixado o garoto. Este foi o nosso erro.

    Listro, que estava me olhando no momento em que uma raiz tentou acertá-la no peito, conseguiu evitar a morte instantânea.

    Já eu não tive a mesma sorte.

    Outra raíz, suja de sangue e terra, havia saído de meu estômago, como se tivesse brotado de mim. Não senti dor, apenas uma onda de adrenalina, que fez meu coração bater com força no meu peito. Tentei olhar para trás, mas não consegui me mexer.

    — Tem sorte que preciso de você vivo, Alvo. Vou te curar apenas para que não possa fugir.

    Minha companheira foi arremessada por outra raiz, a qual não conseguiu se esquivar. O impacto das raízes fez um barulho horrível ao acertá-la. Ela caiu cerca de vinte metros de distância de mim. Felizmente parecia estar viva.

    A raiz que me perfurava começou a sair devagar enquanto meu ferimento se fechava. A cena seria incrível, se não fosse desesperadora. Quando toda a planta saiu de mim eu ainda estava fraco. Não consegui me manter em pé.

    — Vou cuidar de sua amiguinha e já volto — Vanir falava como se nada tivesse acontecido com ele.

    Entrei em desespero. Eu mal podia respirar. Queria gritar para ele não fazer nada com ela, mas nenhum som saiu de minha garganta.

    Vanir passou por mim e deu para ver que havia um buraco circular em sua roupa, bem na altura do coração, mas nenhum machucado.

    “O que está acontecendo? Nada disso faz sentido!”, pensei.

    Orei para todo o deus que eu pude lembrar, seja ele humano ou élfico. Pedi aos céus e à terra para que alguém nos salvasse.

    A sensação de impotência me atingiu como um raio, e comecei a chorar de desespero. Não me importava com o que acontecesse comigo, mas Listro não podia morrer!

    Tentei usar mana, mas nada aconteceu.

    Vanir já estava na metade da distância entre eu e Listro quando ela se levantou, com dificuldade. Minha amiga tirou duas adagas longas de dentro das vestes enquanto cambaleava. Ela não estava muito melhor do que eu.

    — Se não resistir você morre sem dor, garota! — Vanir era aterrorizante quando queria.

    Listro tossiu. Sangue jorrou sua boca. A raiz que a arremessou tinha acertado seu peito como um chicote. Não sei como ela estava em pé.

    Perto de Listro, Vanir fez outra raiz sair do chão. Dava para perceber que ele mirava o ataque em direção a cabeça da minha amiga.

    Eu não conseguia tirar os olhos da cena. As lágrimas turvaram minha visão, mas eu não podia deixar de assistir. Algo tinha que acontecer para nos ajudar. Isso não era justo!

    A raiz que Vanir conjurou foi em alta velocidade em direção a Listro, que, por pouco, conseguiu esquivar. Ela caiu de lado no chão, tornando-se um alvo ainda mais fácil para nosso carrasco.

    — É uma pena acabar com a vida de alguém tão bonita… Que seja, isso não importa mais.

    Com um movimento de sua mão direita, uma segunda raiz nasceu do chão e foi como uma lança em direção ao pescoço de Listro. Eu continuava impotente.

    Aceitando nosso destino, abaixei minha cabeça e ouvi o som do que achei ser a raiz perfurando minha amiga.

    Um momento de silêncio, e nosso oponente falou:

    — Como isso é possível? — Vanir parecia extremamente afetado pelo o que via.

    Levantei a cabeça e lá estava Vanir, na frente de outro Vanir.

    — Quem te chamou aqui? Volte para a floresta imediatamente!

    O Vanir de costas para mim quem falou. O “outro” Vanir estava quieto.

    Parecia que “um Vanir” estava protegendo Listro. Ela continuou no chão, apenas assistindo.

    “Essa sensação… Já vi isso antes. Espera… É o mímico!?”, concluí.

    Eu não entendia o que estava acontecendo, só sabia que estávamos a salvo.

    O verdadeiro Vanir tentou atacar por todas as direções, com diversos tipos de plantas e raízes diferentes. O mímico defendeu com a mesma quantidade de poder. Nada podia passar por ele.

    — Foi o garoto que te chamou aqui? Como pode ser leal a ele depois de tudo? — Vanir se afastou alguns metros. — Onde você está, principe? Pare de se esconder atrás dessa criatura!

    Vanir olhava em volta, tentando encontrar quem eu acreditava ser Tobin.

    Pela primeira vez vi uma expressão no rosto do mímico. Ele parecia estar com muita raiva. Nem mesmo durante nossa luta, em que eu o derrotei, a criatura esboçou qualquer tipo de reação.

    Novamente, fazendo algo que não havia feito contra mim, o mímico avançou em direção a Vanir, que quase não conseguiu se defender. Raízes e mais raízes foram de encontro a ele, que se defendia como podia.

    Depois de alguns instantes na defensiva, Vanir tentou apelar para o uso de sua magia elemental de vento, que foi suprimida no mesmo momento pelo mímico.

    Quando alguém, superior em níveis de mana, enfrenta outra pessoa usando magia elemental, pode acontecer um efeito que chamamos de “anulação”. Por exemplo: se você consegue controlar água e alguém com mais mana também, o poder do seu oponente sobrepuja o seu, fazendo com que seus ataques mágicos não sejam executados. Claro, isso não ocorre de maneira automática, e precisa de muita prática. É um acontecimento raro, mas muito interessante de se ver.

    Vanir já tinha usado muita mana se curando. Ao tentar usar técnicas elementais de vento, o mímico apenas “anulava” qualquer novo ataque. Isso manteve o embate apenas com magia do tipo vida, com ambos os lados usando plantas como arma e escudo.

    Vanir sentiu o peso do embate. Ele não conseguia enfrentar uma versão sua, mais descansada e com mais mana. Não demorou muito, e ele desistiu.

    — Espero que se preparem, pois, da próxima vez, não darei tempo de chamarem por ajuda!

    Casulos de raízes envolveram os capangas de Vanir que estavam no chão. Logo depois ele fez com que todos os casulos flutuassem com suas habilidades elementais. Como havia se distanciado de Listro, o mímico não o atacava ou anulava suas habilidades.

    Assim, carregando seus capangas desmaiados, Vanir flutuou para longe, em grande velocidade, seguindo para o sul.

    Demorou um tempo até eu conseguir me mexer. Listro havia conseguido se levantar e se sentou ao meu lado. Estava claramente com muita dificuldade para respirar. Ela precisava de tratamento, urgente.

    Mizinho continuava estático, ainda mimetizando a imagem de Vanir. Ele olhava fixamente para o horizonte, na direção em que o verdadeiro acabara de fugir.

    Como não senti hostilidade vinda do mímico, aceitei minha fraqueza, e deitei na grama morta. Toda a magia que mantinha as raízes e espinhos vivos já tinha se esvaído com a fuga de Vanir, então não estávamos mais em uma área perigosa. As poucas plantas ao redor estavam quebradiças e acinzentadas, e só pioravam.

    Nem eu nem Listro falamos nada por um tempo. Em parte por não termos força para tal, em parte por sabermos o que o outro estava pensando: “Sobrevivemos por muito pouco!”.

    Após o que pareceram vários ciclos, Mizinho começou a perder sua forma, como se uma gosma negra estivesse deformando seu corpo. Barulho de algo borbulhando saia da calamidade, até que ele se tornou uma sombra disforme, mas bem presente, ao nosso lado.

    — Vocês estão bem? — A voz de fraca de Tobin saiu de algum lugar atrás de mim.

    — *Tosse* Estamos aqui, garoto! — Falou Listro. Um pouco de sangue ainda escorria pelo canto da boca dela. Sua voz saiu um pouco rouca.

    — Graças aos deuses! — O menino cambaleou até nós, vindo da direção oposta à que deveria estar, já que Listro havia o levado para o outro lado do morro. — Não se assustem. Sem motivos, ele não faz mal a uma mosca. — Tobin falava da criatura ao nosso lado como se fosse um cachorro bem treinado.

    Juntei o máximo de energia que podia e falei:

    — Tobin, cure Listro. Acho que ela quebrou algumas costelas. Se sobrar energia me cure também. Ter sido empalado por uma raiz suja de terra não me fez muito bem.

    — Você acha? — Tobin tentou manter um tom alegre em sua fala, mas ele não parecia muito melhor do que nós.

    O menino estava mais magro que a última vez que o vi. Suas bochechas, que já eram magras pelo tempo sequestrado, estavam ainda mais côncavas, como se ele não comesse nada há dias.

    — Vou desmaiar um pouco… — Tomei um pouco de ar e continuei. — Depois você explica como nos salvou.

    E sucumbi a fraqueza, conforme anunciado.


    Como se eu tivesse apenas piscado, abri os olhos e já era noite. Desmaiar parece como se o tempo fosse “apagado”. Não existia a sensação de descanso, como quando dormimos.

    Mesmo ainda deitado, senti tudo rodando. Minha boca estava seca, então protestei:

    — Água, pelo amor do deus azul, alguém pode me dar um pouco de água?

    — Aqui, Valen… Digo, Alvo — Tobin colocou o bico de um cantil na minha boca e tomei o máximo de água que pude. Acabei me molhando um pouco no processo, já que ainda estava deitado.

    Me esforcei para levantar. Foi difícil, mas consegui ficar sentado, apoiando minhas costas contra a parede da caverna em que Tobin nos colocou.

    Listro estava deitada ao meu lado, tão desmaiada quanto era possível. A luz das chamas da fogueira faziam a pele do rosto de minha amiga ficarem com um tom laranja muito bonito. “Laranja combina com ela…”, pensei.

    — Por quanto tempo fiquei desmaiado?

    — Uns dez ciclos. Consegui tratar a maioria dos seus ferimentos e os da sua amiga. No seu caso fiz um tratamento paliativo. Se tiver algum órgão danificado, só o tempo vai conseguir curar. Ainda não sou um curandeiro tão bom.

    Sempre estive envolvido com os melhores magos do mundo. Isso fez com que, inconscientemente, eu gerasse uma expectativa muito grande em Tobin, querendo que ele me curasse completamente. A fala do menino me fez lembrar que ele é apenas um garoto.

    — Obrigado, Tobin. Está bem óbvio que se não fosse por você, eu e Listro não estaríamos vivos… — Percebi uma melhora no estado do rapaz. — Antes de eu desmaiar você parecia um morto-vivo de tão magro, o que tinha acontecido com você? Como nos salvou? Onde está o mímico? Quem é você realmente? O que Vanir quer com…

    — Devagar, Alvo. Evite ficar tão animado. Você pode não ter percebido, mas é o que está mais ferido. A sua amiga, de nome engraçado. já está bem, se comparada a você.

    — Está bem, então vamos por partes. Quem é você de verdade?

    — Meu nome é Tobirin, sou filho de Altimanus Fluorescente. Na sua cultura eu seria considerado um príncipe, ou algo próximo a isso.

    Fiquei em choque. Eu matei o pai de Tobin.

    — Então… Você sabe como seu pai morreu? — Senti um nervosismo crescendo dentro de mim. Prefiro enfrentar Vanir novamente a ter essa conversa, mas ela é necessária.

    — Só sei o que você me contou, Alvo.

    Fiz uma breve pausa, fitando as chamas. Um estalo da fogueira me tirou de meu transe e abri o jogo:

    — Fui eu. Eu o matei.

    Silêncio.

    Eu preferia que ele gritasse, tentasse me bater ou chorasse, mas ele não emitiu som algum. Quase dava para ouvir as engrenagens dentro de sua cabeça girando, enquanto colocava as ideias no lugar.

    O garoto que estava agachado ao meu lado se sentou no chão, apoiando as costas na mesma parede que eu. Na escuridão da caverna não dava para ver com clareza qual expressão o rosto do menino tinha, o que me deixava ainda mais apreensivo.

    Para quebrar a quietude, continuei:

    — Obviamente um escolhido matar um rei de outra raça não é algo que acontece sem motivos. Eu fui até a floresta para desco-

    — O motivo foram os elfos que te atacaram, certo?

    — Em parte, sim…

    — Então meu pai teve o que mereceu. Na história que inventei, sobre eu ser um fugitivo das ordens do meu falecido pai, não é totalmente mentira. O motivo que me fez sair da floresta foi juntamente a carnificina que meu pai organizou… Quando descobri que meu salvador, você Alvo, também é o assassino de quase dois mil elfos eu não sabia o que fazer. Sei que você estava lutando por sua vida, contra o exército élfico, mas não quer dizer que eu aceite o ocorrido e te aplauda.

    Foi minha vez de ficar em silêncio. Eu não conseguia sustentar o olhar dele. Comecei a sentir culpa por ter matado tantos elfos. A verdade é que sempre imaginei o episódio como “autodefesa”, dessa forma eu conseguia justificar para mim mesmo que o que havia feito não era errado.

    Não importa o motivo, aos olhos de Tobin sou um assassino.

    — Não vou pedir desculpas pelos elfos que matei, garoto. Os Cinco estão prestes a entrar em guerra há muitas gerações. Posso sim ter exagerado um pouco contra eles, mas-

    — “Exagerado um pouco”? Me falaram que não houveram prisioneiros. Foi uma matança desenfreada.

    — Você não estava lá, Tobin! Nenhum deles fez menção em parar de avançar!

    — Meu nome é Tobirin! E não importa o ângulo que olhamos a coisa. Você tem uma dívida muito grande a ser paga com a Floresta. Nem mil vidas suas seriam o suficiente para aplacar o ódio dela.

    O clima estava tenso, mas o garoto não mantinha um tom de raiva em suas falas. Na verdade ele conversava comigo como se discutisse o movimento de peças num tabuleiro. Provavelmente ele foi muito bem instruído durante sua formação.

    — Estou tentando mudar, garoto. Até alguns dias atrás eu aceitaria qualquer ordem dada pelo meu rei, sem questionar. Estou aqui justamente para tentar expandir meus horizontes. Sempre fui um peão da monarquia. Matei muito mais do que você possa imaginar… Se existe algum tipo de inferno após a morte, eu tenho uma vaga garantida lá.

    — Escute, Alvo, não cabe a mim te julgar. Estou apenas te mostrando o ponto de vista de um elfo. Nunca vou te perdoar por ter acabado com tantas vidas, mas, ao mesmo tempo, devo a minha própria a você. Não só uma, mas duas vezes fui salvo pelo “grande Alvo”. Isso não acaba com seus pecados, mas é um começo…

    Entendendo que este tópico estava finalizando, me apressei para continuar minhas perguntas:

    — Outra dúvida: Como conseguiu trazer o mímico para cá? Eu pensava que ele era “uma entidade da floresta” ou algo do tipo.

    — Ele tem nome, é Mizinho. Podemos dizer que ele é como um guardião da floresta, mas que cobra um preço alto. Ele é muito leal à família real élfica, mas não é tão simples…

    — Seu pai usou o “Mizinho” contra mim. Ter que enfrentar uma cópia idêntica a mim foi muito desafiador. Ainda bem que encontrei uma brecha e o derrotei.

    — Você derrotou o Mizinho? Como é possível? Ele não deveri-

    — Tive sorte e o peguei desprevenido — tentei parecer orgulhoso de mim mesmo.

    Tobin me ignorou e limpou a garganta com duas pequenas tosses forçadas.

    — Como eu estava tentando dizer, meu falecido pai não deveria conseguir controlar o Mizinho sem um custo muito alto ser pago. Uma vida precisa ser oferecida, de bom grado, em um ritual para que alguém, que não seja eu, possa dar ordens ao Mizinho. Já presenciei esse ritual no passado, e é asqueroso — O menino fez uma cara de nojo. —  O cheiro da uma pessoa sendo queimada viva é podre… Quando o Mizinho é invocado com esse ritual, ele muda completamente. Se torna apenas uma casca vazia, agindo de acordo com a necessidade de quem o chamou.

    — Então foi isso… Quando o Mizinho nos defendeu de Vanir ele fez expressões de raiva. Contra mim sua face não esboçou reação. Parecia até uma estátua de mármore com o meu rosto.

    — Por isso sei que mais alguém morreu, e o ritual foi realizado.

    Ponderei sobre a informação. Coloquei a mão direita no queixo, pensativo:

    — Tobin, digo, Tobirin, você falou que ninguém além de você consegue controlar o Mizinho sem o ritual, certo? Como isso funciona?

    — Não sei se é pertinente expor ainda mais informações secretas a um inimigo declarado dos elfos.

    — Não se preocupe quanto a isso. O lado bom de toda essa matança foi que iniciamos relações de paz com os elfos. Não sei quem se tornará o novo rei da sua raça, mas garanti que fosse criado um canal de comunicação entre humanos e elfos, para manter a paz. Apenas a pessoa que se sacrificou para invocar o Mizinho, e seu pai, foram mortos naquela batalha, então isso deverá pesar quando as negociações começarem.

    — Você sabe que não é tão simples…

    — Mas é um começo! Seu pai fez coisas odiosas, mas, pelo menos, daremos início a essas negociações de paz.

    — Certo, Alvo. Darei tempo ao tempo antes de criticar.

    — Somos aliados por agora, garoto. Me dê informações sobre suas habilidades de controlar o mímico e teremos mais chances daqui para frente.

    O garoto parecia perplexo.

    — Você quer continuar a se aventurar comigo, mesmo sabendo de tudo isso?

    — “O inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Vamos colocar nossas diferenças de lado por enquanto. E você precisa de aliados, já que está sozinho, certo?

    — Nisso você tem razão — Sob a luz das chamas o menino parecia bem mais velho do que realmente era. Ele murchou quando comentei sobre sua falta de aliados. — Você ainda não me deu motivos para que eu não confiasse em você, Alvo, então vou confiar. Imagine nossa troca de informações como um início de diplomacia entre elfos e humanos, já que sou um integrante da família real. Em troca você me fala sobre suas habilidades.

    Ele parecia que estava bolando um contrato mental. Antes que adicionasse mais “Cláusulas” ao contrato, aceitei.

    — Pois bem, eu começo. Como sabe sou um escolhido pela mana. Minhas habilidades principais envolvem o controle de mana dos tipos força e energia, sendo a segunda a que mais se sobressai. Mesmo entre escolhidos não conheci quem tivesse reservas de mana tão grandes quanto as minhas. Aguentar batalhas longas é um ponto forte meu. Posso criar uma aura quase tangível de luz, que queima muito mais forte que qualquer chama. Ela protege e ataca, perfeita para meu estilo de luta.

    Tobirin ficou de boca aberta:

    — Isso explica um bocado… Bem, acho que é minha vez. Como mago não me destaco muito. Apenas controlo a mana do tipo vida, e nem sou tão bom nisso. Já meu “cargo”, como parte da família real, me rendeu uma certa habilidade — começou a gesticular enquanto falava. — A cada geração alguém dentro da minha família recebe o “presente da floresta”. O presente nada mais é que o controle sobre o mímico. Mesmo tendo ganhado essa habilidade nunca vi o Mizinho como uma arma ou escudo. Ele não fala, mas parece entender perguntas simples e reage ao meu humor.

    — Mas isso tem um custo, certo?

    — É, você percebeu… Um pouco antes de você e Listro desmaiarem, eu estava muito fraco e mais magro. O motivo é onde estamos. Quanto mais longe da floresta, mais energia vital preciso gastar para trazer o Mizinho na minha presença. Enquanto você e sua amiga estavam desmaiados eu deixei que ele voltasse para a floresta e usei o tempo restante procurando alimento. Comi, pelo menos, quatro quilos de frutas hoje — ele parecia orgulhoso de seu feito.

    — Então “Mizinho” não pode ficar ao seu lado, te protegendo?

    — Como estamos fora da floresta, precisaria continuamente gastar energia para mantê-lo ao meu lado. Estimo que eu morreria se ele continuasse por mais de um ciclo aqui.

    Pensei mais sobre o mímico e me veio mais uma questão:

    — Por quê você não invocou Mizinho para te salvar dos sequestradores?

    — Até você me soltar, estava preso com grilhões com cristais de mana. Sem mana não consigo chamá-lo.

    Tudo fazia sentido, então acreditei no menino.

    — Tem mais alguma pergunta sobre mim ou minhas habilidades?

    — Talvez no futuro eu pergunte mais sobre você, já que todos conhecem o grande “Alvo, o Brilhante”, eu só queria saber se você tinha algum outro tipo de “poder super maneiro de escolhido”.

    Dei algumas risadas, mas senti uma pontada de dor no meio das costas e embaixo do baço, então parei.

    — Último tópico da noite antes que eu desmaie novamente: Vanir. O que pode me dizer sobre ele?

    O garoto encostou a cabeça na parede da caverna e olhou para cima, como se procurasse respostas.

    — Não sei os detalhes, mas ele precisa de mim vivo. Essa pessoa usa o nome de um antigo rei élfico. O “Vanir” do passado foi uma vergonha para minha raça, mas era um elfo, como eu. Já a pessoa que você e Mizinho enfrentaram era, aparentemente, um humano. Não sei dizer se nosso inimigo tem alguma relação com o mesmo Vanir das lendas.

    — O que me surpreende nisso tudo é como alguém que, teoricamente, não é um escolhido, conseguir me enfrentar por tanto tempo… “Enfrentar” não, me sobrepujar! Precisamos nos preparar para a próxima vez que o encontrarmos. Provavelmente ele virá atrás de você de novo, Tobirin.

    — Ok… Nunca gostei do meu nome, pode voltar a me chamar de “Tobin”.

    — Então continue me chamando de Valen, seu fiel guarda-costas.

    Um forte cansaço me atingiu e percebi que era melhor voltar a descansar.

    — Amanhã continuamos, Valen. Foque em se recuperar.


    “No fim de tudo, Tobin foi o melhor aliado que eu poderia ter encontrado em minha jornada.”

    Alvo Primeiro

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