Capítulo 24 - Quebrando as regras
VALEN
Listro conhecia Pírio. Eles nunca conversaram muito, pois o rapaz sempre tentou cortejá-la. Desde então ela evitou contato com ele.
Mesmo sabendo da aversão que minha amiga tinha ao meu, até então, falecido subordinado, pedi que ela me ajudasse:
— Li, estou vendo um fantasma?
— Espero que não, pois também o vejo… Não sei se fico feliz em saber que ele está vivo ou se fico irritada, por ele ainda estar vivo… Ele está com barba?
— ALVO?
Três ou quatro pessoas ao redor olharam para Pírio, tentando entender o motivo dele ter gritado.
— Shhhhhhhh. Cale a boca! Meu nome é Valen! — O silenciei enquanto me aproximava.
Em uma cena, nada suspeita, segurei ele por baixo do meu braço esquerdo, e com a mão direita tapei sua boca. Como carreguei ele feito um barril de vinho, as pessoas começaram a nos olhar com mais atenção. Não ajudou muito ele esperneando como uma criança.
— Não se preocupem, este rapaz é um amigo nosso! É tudo uma brincadeira. Senhor, poderia levar nossos pratos no quarto? Pago um extra pelo inconveniente — Sem esperar pela aprovação do funcionário, subi carregando Pírio, que ainda se debatia. Infelizmente para ele, meu aperto era mais forte.
Listro e Tobin me seguiram. A cena toda foi muito estranha para quem viu de fora. Mais estranha ainda para mim, por estar carregando meu “não-tão-morto” amigo.
Entrei no quarto espaçoso, e bem caro por sinal, e arremessei Pírio na poltrona ao lado direito da entrada.
— Não precisa de tudo isso!
Listro e Tobin me alcançaram, fechando a porta atrás de nós.
— SEU DESGRAÇADO! Como pode estar vivo depois de tudo? Eu chorei por você! Te via como um irmão… Como pôde? — Eu estava extremamente decepcionado.
— Calma, General, eu posso explicar!
— Não sou mais general, me chame de Valen aqui! E comece a se explicar de uma vez!
— Se me deixasse falar… — Fiz a menção de atacá-lo, devido a raiva, mas Listro e Tobin me pararam.
— Abra logo essa maldita boca!
Ele respirou fundo e afundou as costas na poltrona antes de falar.
— Quando atacaram nosso batalhão eu estava bem próximo, mas não lá dentro. A explosão foi tão forte que arremessou eu, e a carruagem que tínhamos alugado, dezenas de metros para trás… Por sorte não morri no impacto, mas desmaiei na hora. Quando acordei já havia passado uma semana… Como eu estava muito machucado, e tinham outras dezenas de pessoas sendo atendidas nas tendas médicas, ninguém tinha me identificado ainda.
Todos prestamos atenção nele. Mal respiramos. Pírio percebeu que tínhamos companhia além de Listro e eu.
— Quem é esse garoto? — Ele parou sua história para saber sobre Tobin.
— Isso não é importante agora, continue! — Dessa vez Listro quem falou.
— Ei! — Protestou o menino.
— Shhh — pedi silêncio.
— Tá… A primeira coisa que fiz depois de sair da área médica foi ir na cratera onde antes era nosso batalhão. Tomei um susto com o que vi. Um memorial com o nome de diversas baixas. O meu estava bem perto do topo. Congelei na hora.
— Por que não desfez esse mal entendido assim que viu isso? — Eu me obriguei a não xingá-lo entre frases.
— E perder a oportunidade de fugir? Eu faria tudo de novo…
Eu e Listro nos entreolhamos.
— Fugir de quê? — Perguntei.
— Infelizmente um juramento que fiz impede que eu fale o motivo, mas fugir salvou minha vida.
— Que conveniente! Não pode falar por causa de um juramento…
— Se não acredita, façamos um, aqui e agora! — Ele, ainda sentado, estendeu seu braço direito, — Eu juro que não posso falar nada sobre o motivo de minha fuga, devido a um juramento anterior.
Hesitei. Se ele estava tão sério quanto a fazer um juramento, apenas para provar que não mentia, não tinha motivos para desacreditar se sua versão da história.
— Existe algo que possa dizer sobre sua fuga? Qualquer informação que o juramento não lhe limite falar…
— Não sei se sou tão esperto a ponto de encontrar brechas no juramento que fiz. Talvez eu possa dizer quando o fiz. Foi em-
Com a menção de nos dar alguma informação mais detalhada sobre seu juramento, Pírio dobrou seu corpo para o lado direito e começou a vomitar.
— Que nojento! — Como o jorro acertou os pés da cama de Listro, ela não estava nenhum pouco contente.
Três batidas na porta.
— Trouxe os pratos que pediu — uma voz abafada fora do quarto anunciou.
Eu abri a porta e o funcionário viu a cena em que Pírio lavava o chão do quarto com sua bile. Ele não ficou animado com a ideia de ter que limpar isso.
— Traga um pano e um balde com água, por favor. Eu farei ele limpar tudo! — Prometi.
O rapaz deixou a comida em uma pequena mesa, e saiu para buscar os itens solicitados.
— Você me força a vomitar e ainda quer que eu limpe?
— E você gostaria que um general limpasse seu vômito?
— Mas o senhor não deixou de ser um general?
— Para você sempre serei seu general!
Tobin se aproximou de Listro e cochichou:
— O que há com esses dois?
— Homens… Não seja idiota assim quando crescer, Tobin! — O garoto parecia ainda mais confuso.
Listro e eu não estranhamos a repentina sujeira que Pírio fez, pois esse é um efeito comum causado por juramentos. O lado bom é que isso nos deu informações sobre o tipo de juramento feito por ele. Por exemplo, a humana que atacou Porto-norte, e morreu ao fazer um juramento comigo, provavelmente tinha feito um “juramento restritivo”.
Em tese, todo juramento é restritivo, pois se não fizer o que prometeu, algo ruim acontece com você. A diferença de juramentos restritivos é que eles impõem regras específicas a alguém, sem que algo precise ser dado em “troca” por uma das partes. É um juramento que apenas uma das partes precisa se preocupar, pois apenas este lado do acordo poderá sofrer alguma consequência.
Juramentos restritivos são os mais problemáticos, pois você deliberadamente está aceitando um acordo ruim. Na maioria das vezes esse tipo de juramento só é feito sob ameaça, como: “Se não aceitar o juramento, arranco sua mão!”. Esse é um dos lados problemáticos da bênção do deus azul.
Como Pírio não nos contou nada de seu juramento, mas estava prestes a dar alguma informação relevante, uma maldição menor o afetou, causando o vômito instantâneo.
— Se entendi direito você encontrou uma brecha para evitar quem quer que tenha te obrigado a fazer o juramento — Listro levantou o dedo, silenciando o rapaz antes que ele morresse por falar demais, ou, pior, vomitasse novamente. — Não fale nada. Deixe os adultos pensarem!
— Eu faço parte dos adultos nesse caso? Posso ajudar a pensar — perguntou Tobin.
— Comparado a ele, você é praticamente um adulto formado, garoto! — Listro nutriu bastante afeto pelo pequeno príncipe, enquanto isso seu ódio por Pírio parecia aumentar na mesma proporção.
O funcionário trouxe os itens que solicitei e um pouco de sabão em barra. Entreguei tudo na mão de Pírio, que logo começou a limpar a sua janta, que estava espalhada pelo chão.
Dois baldes de água depois, o quarto estava novamente limpo. O cheiro não tinha melhorado muito, então pedimos algo perfumado para o ambiente. Um incenso com cheiro doce foi trazido pelo funcionário.
— Já está melhor, Pírio? — Perguntei depois que ele se limpou.
— Sim, mas agora estou com fome-
Abracei o desgraçado. Um peso muito grande saiu do meu peito com isso. Todos foram pegos de surpresa. Pelo barulho que Listro fez, ela parecia incomodada com minha demonstração de afeto, mas não me importei. Consegui meu irmão de volta!
— Que bom que está bem, seu idiota!
Quando soltei meu amigo, ele estava um pouco corado. Limpou a garganta com duas tosses forçadas, coçou a parte de trás da cabeça, e tentou retomar o assunto:
— Preciso jantar. De novo… Vamos comer lá embaixo?
— Vamos todos. Esses pratos que nos trouxeram estão impregnados com o fedor do vômito do Pírio. Melhor não chegar nem perto — Listro, afiada como navalha.
O resto da noite foi bem normal. Evitei bombardear nosso novo integrante com mais perguntas pelo restante da noite, ele parecia bem acabado para alguém que só vomitou.
— Preciso dormir logo, pessoal. Terei um dia muito agitado amanhã. Me encontrem no sétimo raio do dia, na frente da arena, que terei uma surpresa para vocês — Pírio falou enquanto se levantava.
— Tem certeza que não vai fugir? — Listro ataca novamente.
— Só tenho amigos aqui. Não tenho motivos para fugir!
Listro foi pega de surpresa. Sei que ela tem antipatia pelo rapaz, mas pareceu estar contente com a fala dele. No fundo ela estava feliz por ele não ter morrido.
Pírio se despediu e subiu para o quarto que tinha alugado. Logo depois fizemos o mesmo.
Meu pequeno grupo dividiu dois quartos. Listro e Tobin ficaram no quarto com duas camas e fiquei em outro, sozinho.
Dormir foi fácil, devido ao cansaço do dia.
Pírio ter reaparecido causou uma onda estranha de sentimentos dentro de mim. O que mais senti foi alívio.
Me culpei pela morte dele. A dele e das outras centenas de pessoas. A guerra entre Os Cinco já havia ido longe demais…
Na manhã seguinte, depois de comermos rápido, fomos até ao lugar combinado com Pírio. A cidade, mesmo cedo, estava muito movimentada.
Já no ponto de encontro, nosso anfitrião aguardava.
— Bom dia, senhores. Senhora. Vamos em um tour pela arena!
— Espere, você tem permissão para entrar na arena, mesmo fechada? — Tobin perguntou.
— Sim, “garoto-que-ainda-não-conheço”. Os lutadores têm livre acesso às dependências da arena.
— Lutadores? — Falamos eu, Tobin e Listro.
— Não sei se viram, mas venci a primeira luta do torneio deste ano! — Ele fez uma expressão de orgulho de si mesmo.
— Se me recordo bem, o nome do lutador era Pío. Pírio, Pío… Que falta de originalidade! — Falei.
— Era isso ou “lutador-mascarado-sem-camisa”. Preferi apenas remover uma sílaba do meu nome. Gostou do meu estilo de luta, Valen? Tentei usar tudo que aprendi lutando com você.
— Apanhando de mim, quer dizer.
— Isso é só um detalhe… Agora venham. Convidados podem ficar nos camarotes sem pagar.
Os olhos de Listro brilharam. A minha amiga sempre deu muito valor ao dinheiro, não por ganância, mas sim pela vida dura que ela teve quando mais nova. Cada centavo que ela arrecada usa para deixar a vida dela, e de sua mãe, Rubía, mais confortáveis.
— Por que sua comitiva luta de máscara? — Tobin parecia intrigado.
— Estou morto, não é mesmo? Andar por aí, sendo só mais um na multidão, é relativamente seguro. O problema aparece quando centenas de pessoas estão prestando atenção em você. Para evitar que me reconhecessem durante as lutas optei por uma equipe mascarada — Pírio abriu uma porta grande, ao lado da arena. Nós o acompanhamos para dentro de um emaranhado de corredores escuros. — E você, garoto, o que faz com esses dois?
— Eu… Bem… Valen? — O Tobin procurou em mim alguma pista do que fazer. Ele provavelmente não sabia se devia dizer a verdade ao novo integrante de nosso grupo.
— Mesmo que sua história esteja estranha, Pírio, acho que não há problemas em confiar em você. Pode contar tudo, Tobin.
O garoto tentou ser direto, enquanto falava em tom baixo, para que ninguém o ouvisse pelos corredores da arena. Contou sobre quem era, como chegara ali. Como o salvei. Como fomos pegos de surpresa. E, não menos importante, como Vanir nos atacou.
Pírio foi um bom ouvinte. Pediu poucas vezes por mais informações. Essa era uma característica boa nele. Quando o assunto exigia seriedade, ele conseguia ser mais maduro que um ancião.
Paramos na frente de uma porta quando Tobin resumiu o dia de ontem, antes de encontrarmos Pírio no bar da estalagem:
— … daí entramos rindo na hospedaria. O resto já sabe: Carregado como saco de milho. Vomito no meu quarto. Nós aqui…
— Estou na presença de alguém realmente importante. Desculpe a falta de respeito, vossa majestade — Pírio fez menção a se ajoelhar, mas o segurei.
— Não precisa de tanto. Um príncipe sem coroa não passa de uma pessoa comum. Não tem que ser tão formal com ele.
Pírio me arrastou uns cinco passos para longe de Listro e Tobin, e cochichou em meu ouvido:
— Cara, eu sempre quis conhecer umas elfas “boazudas”. O garoto sendo príncipe poderia me arrumar dezenas delas!
Dei um cascudo tão forte nele que poderia ter rachado seu crânio. Ele imediatamente começou a se curar com suas habilidades.
— Ok, ok. Entendi o recado. Sem piadas idiotas como essa. Que dor…
— O que quer mostrar para nós? — Listro perguntou, pois já estava impaciente.
— Está mais para um pedido. Em torno de um ciclo meus companheiros de equipe vão chegar. Antes de encontrar vocês ontem, nosso investidor/técnico nos deu uma tarefa: encontrar alguém para substituir um de nossos lutadores, que ficou incapacitado. Ele nem chegou a lutar ainda. Tem algo a ver com ter bebido demais. Enfim, ele foi expulso do time e temos uma vaga em aberto.
— Mas os times não são fixos, de acordo com as inscrições? — Perguntei.
— São fixos, a menos que seu time inteiro use máscaras, e ninguém tenha visto seu rosto…
— Brilhante! — Falou Tobin.
— Tinha que ser o nojento do Pírio, para participar de uma estratégia vil como essa… — Listro desaprovou.
— Para quê trapacear tanto assim?
— Principalmente? Ouro! Meu objetivo aqui é simples. Conseguir muita grana e viver tranquilo em alguma fazenda, bem longe de toda essa loucura entre Os Cinco…
Não pude culpá-lo por querer fugir. Eu mesmo estava fugindo no momento. Tanto ódio acumulado entre Os Cinco drenava minha sanidade desde que me lembro. Essa busca por poder existe a tanto tempo, que não sabemos como é viver sem lutar. Tudo gira em torno de o quão forte se é. O objetivo de vida de Pírio poderia acabar se tornando o meu também… Infelizmente, muita coisa estava pesando em meus ombros. Ser o escolhido, tendo tantos dependendo de mim, me impediu de ser egoísta até algumas semanas atrás. Sei de outros escolhidos que se afastaram de batalhas indefinidamente no passado, mas não consigo ser assim.
— Tá, e por que está nos dizendo isso? — Falei.
— Bem, sua estrutura física é muito parecida com a do grandalhão que foi expulso… O que me diz? Que tal entrar na competição, que pode nos dar, não só ouro, mas também uma armadura de cristal?
— Aceite, pelo amor do deus verde. Aceite, Valen! Não, aceite, Alvo! — Tobin ficou em êxtase.
— Ok, ter a armadura seria algo muito legal. Se minha opinião contar, eu diria para aceitar — Listro mudou de postura no mesmo instante em que a armadura foi mencionada.
— Mesmo que eu aceite, participe, e ganhe, o patrocinador do seu time não iria me forçar a ceder a armadura para ele?
— Ele fez um juramento com todo o grupo, dizendo que o vencedor pode escolher entre cinco mil moedas de ouro ou a armadura. Você poderá escolher.
— Ci… Ci-ci… Cinco mil??? — Listro entrou em choque.
— Cuidado, Listro, você está babando! — Avisei minha amiga.
— Ahem, me desculpem. Perdi a linha — ela se endireitou, enquanto limpava os cantos da boca com a manga da camisete longa que usava. Logo começamos a rir, todos juntos.
— Isso seria mais que trapacear! Entrar na competição no meio já seria errado. Além de tudo, um escolhido participaria… Não tem vergonha da cara, Pírio? — Tentei ser a voz da razão daquele grupo.
— Vale tudo para sair do meio dessa matança desenfreada em que vivemos. E outra, você acha mesmo que os anões ofereceriam uma armadura de cristal, de bom grado, se não tivessem uma carta na manga?
— Está me dizendo… Um, aqui? — Comecei a ficar animado.
— É só uma suposição, mas creio que sim — disse Pírio.
— Do que estão falando? — Tobin ficou perdido na conversa.
Listro pôs em palavras o motivo de nossa agitação:
— Eles acreditam que a equipe dos anões trouxe seu escolhido para a competição.
“Perdi a conta de quantas vezes quebrei meu nariz enfrentando Alvo. Felizmente sempre consegui me curar antes de ficar com alguma cicatriz. Meu belo rosto é a melhor de minhas qualidades!”
Pírio Sote
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