Capítulo 25 - Banido da Floresta
VANIR
Era “manhã em minha vida” quando meu pai faleceu. Os serviçais tentavam esconder a verdade, não deixando que eu entrasse na sala do trono, como eu fazia de costume. Foi neste lugar que o vi pela última vez. Deitado, imóvel. Frio.
O meu pai faleceu.
A pessoa mais doce que existiu, já não existia. Demorou muito tempo para eu entender que não o veria mais. Que não seria acordado por ele puxando minhas cobertas, com uma bandeja cheia de doces, nenhum pouco apropriados para uma criança em crescimento. Fui mimado por ele até sua morte.
Ele era sapeca, risonho e acolhedor.
Minha mãe, idosa e imponente, tentava demonstrar força perante o peso da perda. Perante o peso da coroa, que agora lhe forçava a cabeça. Perante o peso da idade, que lhe forçava as costas.
Ela fez o que pôde para manter o reino estável. O que pôde, e o que não pôde. O reino prosperou, e voltei a sentir felicidade.
Dez anos depois, em meu vigésimo verão, recebi a notícia da morte de minha mãe.
A floresta Galho-perpétuo tem um tamanho continental, mas parecia minúscula agora. Pequena para tanta dor.
O peso da perda e da coroa estavam ambos sobre mim agora.
Com a coroa veio o poder. Mas eu já tinha poder. Força avassaladora. Ainda na manhã de minha vida, eu tinha mais mana que qualquer adulto. Me chamavam de “escolhido da floresta”, e me sentia assim. Era respeitado. Amado. Idolatrado.
Festas e mais festas foram celebradas em meu nome.
“Vanir, Vanir, Vanir!”, me ovacionaram.
O tempo passou, e a segurança tomou conta de meu povo. Ficamos mais relaxados, menos ariscos. Mais burros.
Muito burros.
Deixamos que entrassem em nossa floresta, usassem nossas terras e comessem da nossa comida. Perdemos centenas de quilômetros quadrados de floresta para desmatamento desenfreado. Sem o Mímico para me ajudar a expulsar os invasores, teríamos perdido metade da floresta.
Assassinos.
Humanos, anões, Lizards e Pelt-beasts, todos iguais! Monstros idênticos, em peles diferentes. Se aproveitaram da nossa hospitalidade e bondade. Confundiram nossas qualidades com burrice. Mas éramos burros. Fracos… Tantos morreram. Tantos escravizados. Tantos…
Esse é o problema quando se confia demais… “Sem problemas, não confiarei em mais ninguém!”, decidi.
Ordenei que as fronteiras fossem fechadas. Que cada elfo se distanciasse de outras espécies, como se elas fossem sujas. E elas eram. Ainda são. Hoje, mais do que nunca.
Mas me senti sufocado. Como podem ter todo o mundo fora da floresta só para eles? Ficamos tanto tempo presos à floresta, que não sabíamos mais como eram as planícies, os mares ou as montanhas.
Egoístas.
Ao alcançar trezentos e trinta e três verões, estava amargurado pelo ódio que cultivei contra as outras espécies, então decidi mudar as coisas. Decidi agir. Mas não foi fácil. Estávamos mais fracos que antes. Mais burros. Acostumados ao enclausuramento na floresta, poucos sentiam a mesma necessidade que eu. Poucos queriam a real liberdade. Poucos queriam a guerra que eu queria.
Sim, uma guerra. Contra todos. Quem não tivesse orelha pontuda, seria nosso inimigo. Tinha que ser assim.
São seres de inteligência inferior. Brutos ignorantes. Precisavam de alguém para apertar as rédeas. Precisavam pagar pelos erros do passado.
Reuni o máximo de habitantes da floresta que pude. Até o mímico, meu animalzinho de estimação, estava ao meu lado. Fiz isso para lembrar ao meu povo que o Vanir, forte e onipotente do passado, ainda vivia. Assim comecei o discurso:
— Extraordinariamente hoje, no aniversário de trezentos e treze anos da morte da minha mãe, venho até vocês com um pedido. Pensei em várias formas de contar isso, mas não existe maneira fácil! Caso não façamos nada agora, não teremos como continuar existindo como espécie… Um inimigo, muito maior que qualquer outro que tenhamos enfrentado no passado, se aproxima. Os Cinco se uniram para tomar a floresta!
Era mentira. Do tipo mais descarado. Eu sabia que os fracos e burros elfos que eu comandava não sairiam das florestas para lutar sem motivo. Eu precisava inflamar a população.
Meus soldados mais próximos se entreolharam, com surpresa. Nunca tinham ouvido nada sobre isso. E como poderiam? Eu inventei cada palavra. O blefe era tudo o que eu tinha.
— Peço que se juntem a mim. Que lutem ao meu lado para proteger a floresta. Se uma guerra que eles querem, uma guerra eles terão! Marcharemos de capital em capital. De vila em vila, antes que eles façam o mesmo conosco!
Cada rosto na multidão estava pálido. Cochichos irromperam entre eles. Foi quando uma pessoa gritou da multidão. Maldito elfo burro. Gostaria de torturá-lo, curá-lo e torturá-lo novamente por isso:
— Tem provas do que está dizendo?
Mais cochichos na platéia. Várias pessoas assentiram com a fala do anônimo.
— P-provas? Claro que tenho provas! Um espião que enviei para fora da floresta me relatou isso! — A nova mentira afetou menos a população. Muitos rostos franziram as testas, esperando mais informações.
— Nos mostre! — Outro elfo aleatório gritou, dessa vez bem longe de mim.
— Pois bem. Analor, venha aqui!
Para garantir que a farsa tivesse mais força, combinei a história com um soldado, que pensava como eu. Ele também queria o enfrentamento. O rapaz franzino subiu as escadas do palanque em que eu discursava, e tentou falar por cima dos ainda mais altos cochichos da multidão:
— Eu ouvi com minhas próprias orelhas e vi com meu próprios olhos! Eles se organizam a meses para nos atacar. Só precisam de mais suprimentos e nos invadirão!
Mais testas franzidas. Pouca gente estava aceitando a mentira.
— Por qual motivo eles querem nos atacar? A floresta tem pouco a oferecer a eles! — Um de meus generais levantou a voz sobre a multidão, ele estava alguns metros à minha esquerda. Ele foi um aliado que tive por mais de cem anos. No momento fazia uma expressão que nunca vi antes em seu rosto. Era algo parecido com nojo. Nojo de mim?
— Vocês não entendem? Nada mudou desde a época que fechei as fronteiras. Eles ainda nos odeiam. Ainda querem nos escravizar. Somos gado aos olhos d’Os Cinco!
Este argumento teve peso. A maior parte dos adultos nessa assembleia presenciou o terror que foram Os Cinco nos explorando no passado. A amargura da dor e da perda não some para os elfos, mesmo depois de séculos.
Percebi que consegui novamente a atenção de todos. Agora só faltava mais um empurrão, mais um argumento, e teria o apoio do povo. Assim marcharíamos sobre nossos inimigos. Eu seria a ponta da lança que apunhalava seus corações.
Quando me preparei para retomar o discurso que havia decorado, um grito ecoou atrás de mim:
— É TUDO MENTIRA! É TUDO MENTIRA! — O rapaz que fez o estardalhaço estava suando muito. Suas vestes eram puídas e fétidas. Momentos antes eu havia me certificado que ele ainda estava preso. Ele deve ter enganado algum dos guardas para libertá-lo.
“Como escapou?”, senti vontade em falar, mas isso poderia estragar tudo.
— Soldados, prendam esse fugitivo! Ele se volta contra sua própria raça, e não merece misericórdia! — Eu devia ter matado ele. Este jovem rapaz ser meu primo fez com que meu coração sentisse receio em silenciá-lo para sempre. Tarde demais, já me arrependi.
— É TUDO ARMAÇÃO! — Ele gritou, enquanto os guardas o enxameavam. — ELE APENAS QUER GUERRA! NÃO OUÇAM ESSE LUNÁTICO!
Quando o último dos cinco guardas o segurou, alguns gritos da platéia repetiam:
— DEIXEM QUE ELE FALE SUA VERSÃO!
— DEIXEM ELE FALAR!
— SOLTEM O GAROTO! DEIXEM ELE FALAR!
Não tinha elfo algum em silêncio. Todos queriam ouvir a versão de Calin, meu primo mais novo.
— CHEGA! — Gritei mais alto que todos juntos. — QUEREM OUVIR UM PÁRIA? ELE QUER O TRONO PARA SI, POR ISSO ESTÁ TENTANDO GERAR ESTE ATRITO ENTRE EU E MEU POVO!
— JURO PELO DEUS VERDE! VANIR ESTÁ TENTANDO LUDIBRIAR SUAS MENTES! SE ACEITAREM O QUE ELE FALA, MILHARES DE ELFOS PERECERÃO SEM MOTIVOS! — Uma breve pausa, e Calin continuou. — NÃO HÁ BENEFÍCIOS EM UMA GUERRA! OS CINCO NÃO SE IMPORTAM CONOSCO A MUITO TEMPO. É TUDO MENTIRA!
Eu não consegui dizer nada por um tempo. Todos também estavam calados.
Pisquei forte, para dispersar as palavras de Calin da minha cabeça. Eu precisava tomar as rédeas da situação logo.
— Também juro pelo Deus Verde! Em nenhum momento menti para vocês!
De todos os erros que cometi, esse foi o maior. Um imperdoável.
O ar pesou à minha volta. Uma luz esverdeada tomou conta das copas das árvores, como se o sol acima delas tivesse mudado de cor.
— Você subestima o poder e a influência dos deuses, Vanir — uma voz etérea, grave e poderosa, ribombou pelas árvores e pelo ar. Sem precisar se apresentar, todos sabiam quem era. — Jurar uma jura tão perversa poderia acabar com meu povo. Isso não permito! Você está banido da floresta! Amaldiçoo cada instante em que você continuar vivendo. Não conte com a sorte, pois nenhum deus estará ao seu lado daqui em diante!
E sem qualquer outro aviso, fui arremessado para o alto por uma força que não fazia parte deste mundo. Como uma flecha, fui atirado para longe. Não consegui mexer nenhum músculo até passar das fronteiras da floresta. Usei cada gota de mana que pude comandar para evitar ser esmagado no impacto. Um redemoinho que criei dispersou parte da força que me arremessou contra o chão. Ainda assim o impacto foi forte demais. Divino demais.
Muito zonzo com a viagem inesperada, tentei me levantar, mas respirar era difícil. Viajei centenas de quilômetros em um instante, não morri por pouco.
Fiquei no chão pelo o que pareceram dias, até ter forças para me levantar.
A floresta estava ali, na minha frente. Cambaleei de volta, tentando retornar para meu lar.
A voz do deus Verde ecoava em minha cabeça, cada vez mais alta, enquanto me aproximava da primeira árvore, às margens da floresta. Ele dizia a mesma coisa: “Você está banido da floresta! Você está banido da floresta! Você está banido da floresta!”.
Menos de um metro para alcançar a maldita árvore, fui repelido, como se uma parede invisível não deixasse eu me aproximar.
O desespero tomou conta de mim. Eu não era nada sem a floresta. Um rei sem reino. Tentei atravessar o escudo invisível por dois meses, em vários pontos diferentes, mas nunca consegui tocar em árvore alguma.
O ódio que sentia d’Os Cinco, pelo o que eles fizeram com meu povo no passado, foi diminuindo, enquanto o ódio contra meu próprio povo crescia, até que esses “dois ódios” se equilibraram. Passei a odiar todos na mesma intensidade.
— Pode demorar dez mil anos ou dez mil vidas, mas vou acabar com todos! Juro por mim mesmo. Juro pelo deus que me tornarei!
“A primeira vez que percebi que gostava dele, éramos muito jovens. Jovens demais para ele se lembrar. Neste dia alguns cachorros me atacaram enquanto ele, e mais alguns garotos, afugentaram a matilha. Ele me abraçou, enquanto eu chorava pelo susto. Me senti feliz, como não me sentia há meses. A morte do meu pai era muito recente…”
Listro Distar
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.