Capítulo 26 - Sangue nas mãos
JOUCI “NÃO-NOMEADA”
Búfalos são um ótimo meio de transporte.
Devia ser alguma coisa no cheiro, não sabia dizer, mas as vespas não se aproximavam dos animais. Sair da colmeia foi relativamente simples com a ajuda de nossas montarias.
Geir seguia à frente, atento a tudo ao nosso redor. Eu e Tala estávamos emparelhadas com nossos búfalos, ainda imaginando se a decisão de seguir o homem todo enfaixado teria sido a correta.
O frio da noite me manteve bem, mesmo na zona desértica.
Conseguimos pilhar alguns suprimentos para nossa longa viagem. Estavam em uma sala perto da saída do túnel que dava para fora da colmeia.
Para nossa viagem, meu medo era o calor. Como não tínhamos a ajuda de Thermon, me manter bem num clima desértico seria uma problema.
Nosso guia se limitava a dar poucas informações. No geral se mantinha calado.
— Vamos seguir em turnos invertidos. Avançamos durante a noite e dormiremos entre os períodos em que o sol está mais alto no céu. Assim não forçamos muito nossos búfalos. Vocês se opõem?
Tala me olhou de esguelha, aguardando algum protesto de minha parte. Acenei com a cabeça.
— Por nós tudo bem, Geir — disse a elfa.
— Ótimo. Daqui quatro ciclos montaremos acampamento. O Sol estará derretendo até as pedras depois disso — então ele olhou para cima, como quem aguarda um carrasco.
Aproveitei a brecha para interrogá-lo:
— Já que você tornou a falar, poderia nos dizer o motivo de estar traindo seu antigo chefe? — Tentei não colocar veneno no tom de voz que empreguei, mas foi difícil. Traição, de qualquer tipo, era um tema que não me agradava conversar.
Ainda a nossa frente, sem nos olhar, Geir deu um longo suspiro, e falou:
— Prefiro não envolver duas jovens moças ainda mais nesse monte de merda. É melhor que não saibam.
— Jovens? Onde? — Tala tentou brincar. Ignorei.
— Precisamos de mais motivos para confiar em você, Geir. E se estiver nos levando para uma armadilha? — Falei por impulso. Que armadilha seria melhor do que a cela da qual ele nos libertou?
Dessa vez ele olhou em minha direção. Não sabia se olhava em meus olhos, ou para meu búfalo. As ataduras escuras em seu rosto dificultavam saber onde ele focava sua visão.
— Não preciso provar nada a vocês. Caso queiram dar meia volta, fiquem à vontade. Entendam a libertação de ambas como um golpe nas costas de Vanir. Como um capricho de minha parte. Me sigam se quiserem — Geir virou para frente de sua montaria novamente e voltou a ficar calado.
Tala e eu trocamos olhares. Em minha face estava estampado o arrependimento por ter dito aquilo. O rosto da elfa dizia “Tenha mais cuidado com o que fala. Ainda não conhecemos ele direto”.
Seguimos viagem em silêncio. A brisa morna do amanhecer começou a afetar minha pele, e começou a dificultar minha respiração.
Talamaris me olhou, preocupada.
— Geir, talvez devêssemos-
Antes que Tala intercedesse por mim, pedindo que acampássemos mais cedo, Geir parou seu búfalo, desceu, e começou a tirar bagagens de cima de seu animal.
— Vamos acampar aqui. Podemos usar este tronco caído para apoiar as hastes da tenda.
“Mas ele não tinha dito que acamparíamos depois de quatro ciclos? Não se passaram nem dois…”, pensei.
Em menos de meio ciclo nossa enorme tenda estava armada. Ela tinha uma divisão conveniente no meio, separando Geir em um lado, e eu e Tala em outro. Olhando de fora não conseguia entender como uma tenda simples como aquela poderia evitar o calor do deserto, então perguntei:
— Ficaremos bem aí dentro?
— Sem problemas. Consigo usar minha mana para deixar um ambiente pequeno como esse agradável para um elfo-de-gelo. Infelizmente sua amiga precisará de agasalho dentro da tenda.
— Dormir no friozinho é gostoso, sem problemas para mim — disse Talamaris.
— E os búfalos, ficarão bem?
Respondendo a minha pergunta, o primeiro dos três animais começou a cavar o chão com as patas. Vagarosamente ele criou uma vala grande o suficiente para cobrir todo o seu corpo, menos a cabeça e chifres. Pela agilidade com que a areia saiu do chão, parecia que os animais tinham algum tipo de afinidade com mana elemental. Instantes depois a cabeça do animal foi coberta por uma camada de terra, como uma mini redoma. Os outros animais fizeram o mesmo.
— Eles estão acostumados a dormir de dia, e fazem isso para se proteger. Quando acordarem, precisamos alimentá-los e poderemos seguir viagem — Geir não falou mais nada, apenas entrou na tenda.
— Vamos descansar um pouco — falou Tala, abrindo nosso lado da tenda para entrar.
Gelado e confortável. Geir mantinha as paredes da tenda com uma fina camada de gelo, que não derreteram durante os momentos mais quentes do dia. Talamaris se embrulhou em um cobertor, e roncava baixinho ao meu lado. Fiquei tão bem dentro da tenda que me fez lembrar de casa.
Casa… Não sei exatamente onde é minha casa. Chandici, mãe de Thermon, me chamou para morar com eles, mas não dei uma resposta concreta ainda. Talvez eu aceite. O clima do lar deles é hospitaleiro e aconchegante. As raposas gostam de mim, assim como gosto delas. Mas não posso voltar para lá ainda. Precisamos salvar Thermon antes.
O restante do dia passou num piscar de olhos.
Desmontar a tenda foi mais rápido que montá-la. Búfalos alimentados e bagagens arrumadas. Partimos sem demora.
Dois dias se passaram. Parávamos apenas para dormir, comer, caçar ou cuidar de nossas montarias. Logo a vegetação aumentou, tornando a paisagem cada vez mais verde. Fiquei um pouco confusa com isso.
— Tala, não deveríamos estar indo em direção ao meio do deserto? Por que a vegetação é tão presente aqui?
— Lembra que falei que as vespas transformaram a área em volta delas num “deserto artificial”? Então, estamos saindo da área em que foram destruídas. Teremos bons quilômetros com vegetação para desbravar.
Com mais vegetação, tínhamos acesso a mais caça ou frutas para Tala se alimentar, então esses dias foram os menos maçantes.
Cada dia que passava era uma monotonia maior que a outra. Geir falava cada vez menos. Eu e Talamaris ainda não conseguimos lê-lo. Não tínhamos meios de saber quem ou o que ele era. E assim mais cinco dias se passaram.
Poucos ciclos depois que voltamos a nossa jornada, instantes antes de escurecer completamente, ouvimos atrás de nós uma espécie de rugido rouco. Depois outro. Ao nosso lado esquerdo um rugido mais agudo, e mais próximo.
Bestas selvagens.
Nossos búfalos perceberam a presença dos predadores e começaram a apressar o trote.
Tudo aconteceu muito rápido.
Quatro felinos enormes saltaram por de trás de arbustos, mirando as pernas dos búfalos. As pobres criaturas já estavam incapacitadas antes que pudéssemos protegê-las.
Geir fez lâminas de gelos saírem por debaixo de suas ataduras assim que rolou para longe de seu búfalos, que estava sendo abatido. Eram como facas enormes de gelo, saindo de seu antebraço e ficando presas em suas mãos. Sem demonstrar medo, ele avançou contra um dos gatos gigantes que nos atacam.
Talamaris pegou sua lança estocou o pescoço do felino que ainda mantinha as mandíbulas presas a traseira de sua montaria.
Eu fui a que tive menos sorte. Dois dos gatos atacaram a minha montaria. Eles se digladiavam para decidir quem ficaria com o prêmio: um búfalo suculento.
Aprendi com Thermon a sempre ter um pouco de água comigo, então me distanciei o máximo que pude depois de pular de cima do meu búfalo, tirei água de uma cantil grande que carregava comigo, e arremessei dois espículos de gelo em direção a cabeça de cada um dos gatos que ainda mantinham as presas firmes na sua presa.
Como se acertasse uma parede de mármore, meu ataque de gelo não surtiu efeito nas bestas. Nem a lança de Talamaris. Nem as lâminas de gelo de Geir.
As bestas, quase do tamanho dos búfalos, nos ignoravam, como se não valêssemos o esforço.
Geir virou para mim e Tala, colocando o indicador direito onde deveria estar sua boca, pedindo silêncio. Ele fez sinal para que o seguíssemos.
E foi assim, ouvindo os grunhidos de desespero de nossos três animais sendo mortos, que decidimos fugir. Se ficássemos ali, seríamos os próximos. Saber disso não tornou a decisão mais fácil.
Com os búfalos perdemos provisões, nossa tenda e a conveniência de sermos transportados.
Alguns ciclos seguindo Geir depois, ele parou. Estávamos muito ofegantes depois de fugir dos felinos que se banqueteavam às nossas custas. Ele falou:
— Demos azar. Esses tigres não são nativos daqui. Alguma coisa deve ter feito eles migrarem para esta região atrás de comida.
— E agora, como vamos seguir viagem? Sem tenda não temos como suportar quando chegarmos ao deserto de fato — Talamaris não estava tão cansada quanto eu.
— Vamos seguir viagem mesmo assim. Iremos passar em alguns esconderijos de Vanir no meio do caminho. Em algum deles poderemos conseguir cavalos e outra tenda. O problema é que o esconderijo mais próximo deve estar a, pelo menos, dois dias a pé..
— Continuemos então! — Me animei com a possibilidade de conseguirmos mais provisões.
A flora do local já poderia ser considerada floresta. Muitas árvores ao nosso redor mantinham um clima úmido e muito quente. Como estava de noite, não me preocupei com o calor, mas, quando amanheceu, amaldiçoei os tigres. A tenda faria muita falta agora.
Percebendo que não tínhamos tempo a perder, pedi algo aos meus companheiros:
— Que tal não pararmos até encontrar esse próximo esconderijo?
Geir e Tala se entreolharam.
— Como espera aguentar o calor do dia? — Perguntou Tala.
— Eu posso ajudar ela com isso — Geir se aproximou das minhas costas, esticou o braço na altura da minha nuca, e fez com que um pouco d’água ficasse na minha pele. — Mantenha o gelo e ficará bem!
A fina camada de água se depositou no meu couro cabeludo, costas e tórax. Então congelou.
— Assim posso andar de dia, desde que não esteja exposta diretamente ao sol. Muito obrigada, Geir. Ótima ideia!
— Vamos seguindo então? Paramos apenas quando conseguirmos mais mantimentos! — Talamaris proferiu.
Seguir viagem não foi fácil. Manter a água sempre em estado sólido era difícil, pois a camada de gelo era fina demais. Isso requer muita concentração. Querendo ou não isso serviu para que eu treinasse mais minhas habilidades com mana.
Pode ter sido a técnica que Geir me ensinou, ou minha determinação em salvar Thermon, mas não parei. Mesmo depois de um dia inteiro. No ritmo que mantivemos, chegamos no esconderijo em tempo recorde.
Era uma pequena gruta, sem guardas por perto, coberta por centenas de árvores e cipós. Não nos aproximamos muito, para evitar sermos vistos. Geir falou:
— Ainda não devem saber que traí Vanir. Vou na frente e líquido quem estiver lá dentro. Volto logo — como se estivesse indo fazer algo corriqueiro, ele seguiu por entre a mata e entrou na gruta.
Segurei o braço de nosso guia e falei:
— É mesmo necessário que eles precisem morrer?
— Neste esconderijo estão apenas terroristas e assassinos de Vanir. Não tenha pena deles, garota. eles jamais teriam pena de você!
Geir seguiu abaixado, de arbusto em arbusto, até alcançar a entrada da gruta.
Não demorou para ouvirmos explosões, gritos e o que pareceu um deslizamento de terra. Logo depois Geir voltou.
— Podem entrar.
Contei dez corpos dentro da gruta. Eles estavam mortos de diversas formas. Alguns com cortes grandes no peito e pescoço, outros pareceram que se atacaram. Nenhum teve a mínima chance. A cena era grotesca.
Tentei desviar o olhar, mas lembrei do que Tala havia me dito, sobre manter o olhar, e me acostumar com isso… Eu não queria “precisar” me acostumar com uma cena como aquela, mas era necessário. Preciso ficar mais forte se quiser salvar Thermon.
Entre as provisões que juntamos, não havia uma tenda ou pano que pudéssemos usar para este fim. Nos contentamos com alimento e água. Decidimos descansar ali para partirmos com energia restaurada no dia seguinte.
Para tornar o lugar menos decrépito, eu e Tala resolvemos retirar os corpos da Gruta. Geir, que estava muito cansado, decidiu deitar mais ao fundo, longe dos corpos.
Foi quando uma patrulha dos capangas, que ficavam neste posto voltou. Como eles não estavam por perto quando chegamos, sobreviveram ao feroz ataque de Geir, mas, dessa vez, nós fomos pegos de surpresa.
Os três capangas nos viram antes, enquanto eu e Tala tirávamos os corpos da pequena Gruta, para enterrá-los em uma cova ao lado da entrada.
Um deles gritou, ao ver os corpos de seus amigos empilhados:
— Quem são vocês? O QUE FIZERAM COM ELES?
Os outros dois capangas entenderam a cena logo depois. Um deles começou a vomitar, se apoiando na árvore mais próxima. O guarda que gritou empunhava uma lança de cabo marrom, que usou para me atacar, já que eu estava mais próxima.
O terceiro capanga, que parecia mais experiente, disse com calma:
— Bedo, pare! Se elas derrotaram todos eles, não teremos chances. Precisamos avisar o chefe. Urgente!
Eu não sabia o que fazer. Se eles fugissem de nós, e conseguissem avisar Vanir, nossas chances de salvar Thermon diminuiriam drasticamente. Percebendo isso, enquanto Bedo, o guarda mais próximo, se detinha, decidi atacar.
Peguei uma espada que estava ao lado do monte de corpos, e parti em fúria contra o jovem. Como ele mal havia se recuperado da arrancada contra mim, estava um pouco desequilibrado. Usei essa brecha e enfiei a espada no meio de sua garganta. Um barulho muito nojento e gutural saiu do menino, assim que o golpe fatal o acertou. Sem qualquer outra reação, ele caiu, inerte.
— Rain, não se aproxime. Vamos logo! — O capanga experiente ordenou.
O soldado que estava vomitando foi puxado pelo mais velho, e se embrenharam na mata. Fiz menção de segui-los, mas Talamaris segurou meu pulso.
— Eles conhecem melhor a área. Matariam você sem que percebesse. Vou avisar Geir!
Tala entrou na gruta e eu fiquei ali, ao lado do corpo que matei. A espada curta ainda pesando em minha mão. O sangue fresco, e quente, que espirrou em mim, se tornou mais real a cada instante.
Eu havia matado pela primeira vez.
“Paz é mandatório. Não somos selvagens para se matar por tão pouco. Guerras por território, em um mundo tão vasto, é o cúmulo da burrice. Guerras devido a preconceito é pior ainda!”
Tomoga Prudente
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