Capítulo 29 - Azul
VALEN
Perguntei a Ujikar quantas pessoas estavam participando da mesma competição que eu, Pírio e Mendir. Ele explicou:
— Neste ano tivemos trinta e duas inscrições. A primeira rodada acabou na sua luta, Valen. Na segunda rodada, que Pío já perdeu, teremos dezesseis competidores ao todo.
Fiz contas mentais e percebi que teria que participar de cinco rounds para ganhar a armadura. Faltavam apenas quatro.
Durante a noite nos reunimos na estalagem, cansados pelo dia agitado.
Listro preferiu guardar o dinheiro ganho e apostar apenas nas minhas vitórias. Pírio decidiu seguir os passos dela, já que ela não parava de ganhar aposta atrás de aposta. Tobin, por outro lado, estava animado como nunca vi. Comentava sobre cada rodada que assistiu, interpretando os golpes como um teatro.
— …então ele fez assim com a mão, e uma rajada de vento atirou o outro na parede da arena, e todos na plateia urraram de alegria… Aquela luta foi muito legal!
— Fico contente que está animado, Tobin. Teremos vários dias de competição pela frente, então poderá aproveitar bastante — Listro passou a mão na cabeça dele. Não deu para ver direito, mas parece que Tobin ficou um pouco vermelho pelo contato repentino.
— Minha luta será uma das primeiras de amanhã. Vou enfrentar alguém de Fronte-Eterno. Sabem algo sobre o pessoal desse lugar?
Tobin recobrou a compostura e falou:
— Sobre este feudo não sei nada, mas sei sobre quem você vai enfrentar. Do feudo Fronte-Eterno apenas uma pessoa venceu na primeira rodada. Foi uma garota tão musculosa quanto você, Alvo. Ela controla mana de combustão. O inimigo dela saiu todo tostado, mas vivo.
— E como sabe disso tudo? — Pírio perguntou.
— Não ouviu quando falei das lutas? Eu prestei atenção em todas que pude. Na equipe de Fronte-Eterno sobrou apenas ela para disputar “Combate desarmado sem mana”.
— Perfeito, temos um informante na equipe — Listro deu um largo sorriso para Tobin, que enrubesceu na hora.
Não tinha percebido esse tipo de reação do garoto antes. É bem provável que eu estivesse ocupado demais com outras coisas para me importar. Paixonites de crianças são fofas. Ainda mais um amor impossível como este.
— Terei um dia cheio amanhã. Vou me deitar. Nos encontramos aqui, no quinto raio? — Perguntei.
— Raio? — Tobin não entendia muito bem as medidas tempo que os humanos usavam.
— Esqueci que você é um elfo. Seria o quinto ciclo depois que o sol raiou.
— Ah, tudo bem.
Me despedi de meus amigos e fui me deitar.
Esta noite foi estranha. Geralmente não sou uma pessoa que sonha muito. Nem percebo a noite passar. Dessa vez foi diferente.
Em algum ponto da noite um sonho começou. Tudo estava azul, como se eu flutuasse num oceano sem fim. Não existia chão, céu ou ar. Tudo era azul. Eu era o azul.
Tentei me mexer, mas não saí do lugar. Tentei olhar meu corpo, mas não tinha nada abaixo de mim. Nem existia um “abaixo” que eu pudesse usar como referência. Mesmo a cor predominante que eu via não era uma visão, e sim uma sensação. Eu sabia que tudo era azul. Como eu sabia? Isso eu não sabia.
O sonho continuou por muito tempo até eu ver, ou sentir, uma flutuação nesse mar de cor azul. Essa flutuação acontecia muito longe de mim. Parecia que algo pulsava, como um coração. Tentei focar minha atenção no local e instantaneamente eu estava lá. Uma informação próxima a um cheiro chegou ao meu cérebro. Senti como se o cheiro de ferro enferrujado e terra entrassem por minhas narinas. Narinas que não tinha.
Foquei ainda mais minha atenção na ondulação e ouvi uma voz. Era a voz de um homem, como se estivesse fazendo uma prece. A prece me animava. Não era possível entender o que ele falava, mas isso não importou, eu queria que ele continuasse. Que ele nunca parasse. Queria que mais pessoas orassem para mim daquela maneira.
Logo depois o homem terminou suas orações. A ondulação sumiu. Novamente tudo era azul, e nada além disso existia.
Fiquei triste ao perceber que eu desejava mais daquela sensação. Era pura e me acalmava. Parecia como respirar pela primeira vez depois de se afogar. Eu não queria continuar me afogando naquele azul!
“Orem por mim”, supliquei. “Orem por mim, para eu continuar a existir!”.
Com essa estranha sensação apertando meu peito, acordei. Eu suava e ofegava. Alguém bateu em minha porta, e chamou meu nome.
— Valen, você vai se atrasar para sua luta. Está para começar! — A voz de Listro me trouxe para a realidade.
Entrei na arena ofegante. Mesmo alguém mais resistente como eu, cansa se correr com tanto desespero quanto corri. O Narrador estava prestes a anunciar minha derrota por desistência, mas consegui chegar a tempo.
— EM CIMA DA HORA, O COMPETIDOR VALEN, CHEGA NA ARENA! — Comentou o locutor.
Algumas pessoas riram do comentário.
A máscara em meu rosto estava suada mesmo antes da luta começar. Isso seria um incômodo.
— DO MEU LADO ESQUERDO, LUTANDO PELO FEUDO DE LAGUNA OESTE, VALEN!
Pouca resposta do público. Algumas poucas palmas eram ouvidas em pontos aleatórios das arquibancadas. Ter chegado em cima da hora não ajudou na minha popularidade.
— DO MEU LADO DIREITO, LUTANDO PELO FEUDO DE FRONTE-ETERNO, MINCA TERCEIRO!
Agora a resposta do público foi muito forte. Uma mulher lutadora animava muito o público.
Minca era loira, o que é bem raro entre os humanos. A cor de seus longos cabelos, sozinho, já fazia ela ser considerada diferente. Unindo isso aos seus proeminentes músculos a tornavam uma atração que todos gostavam de ver.
Ela levantou os braços e o público aplaudiu. “Minca, eu te amo!”, uma voz de garota gritou na plateia. Ela baixou os braços e deu um sorriso vitorioso.
Minha oponente tinha olhos afiados, como se olhassem através da minha máscara. Subiu um calafrio na minha espinha.
Correr não me fez bem. Não comi nada pelo atraso, e também não estava completamente recuperado depois de lutar contra Vanir.
Se tem uma luta em que eu não estava confiante, era esta.
Eu ainda estava ofegante. Demorar tanto para me recuperar nunca é um bom sinal.
Nem tive tempo de pensar no sonho maluco que eu tive. Acordei sentindo que ainda fazia parte do mundo azul. Fiquei muito aliviado por ter voltado à vida real. Facilmente chamaria o sonho que tive de pesadelo.
Minca e eu nos encontramos no centro da arena.
— COMPETIDORES, NÃO EXISTE LIMITE DE TEMPO. O PRIMEIRO A INCAPACITAR O ADVERSÁRIO VENCE. LEMBRANDO QUE HOMICÍDIOS OU DESMEMBRAMENTOS INTENCIONAIS SÃO PROIBIDOS, E SERÃO PUNIDOS COM A MESMA INTENSIDADE DE UM CRIME CAUSADO FORA DESTA ARENA. PODEM SE CUMPRIMENTAR.
Apertamos nossas mãos. Ela tinha quase a minha altura, e suas mãos eram muito mais calejadas que as minhas. Deu para perceber que os músculos não eram apenas enfeites.
Nos afastamos e o narrador anunciou:
— COMECEM!
Mais uma vez o gongo anunciou o início da luta.
Ficou quente imediatamente. Minha oponente decidiu começar com tudo. Uma aura de chamas cobriu o corpo de Minca, e ela avançou contra mim. Se eu tentasse defender qualquer golpe dela com os braços nus, poderia acabar com cicatrizes horríveis. Eu precisava desviar.
Uma sequência de chutes e socos começou. Cada um deles tinha como alvo minha cabeça. Eu desviei como pude. Na terceira sequência de golpes, quando ela girou para me acertar com o calcanhar do pé direito, eu cambaleei e caí para trás. Nem a fome nem a luta com Vanir explicavam o porquê eu caí tão de repente.
Minha oponente não teve pena. Deu um sorriso de canto de boca, e chutou meu estômago, bem no momento em que meu traseiro tocou o chão. Mal tive tempo de reagir.
Para evitar o nocaute pelo dano do fogo em minha pele, ativei minha aura de energia apenas no ponto em que o ataque de Minca conectou. Minha aura ficou ativa por uma fração de tempo, apenas para rivalizar com as chamas dela.
Recebi o impacto do chute por completo. Fui jogados alguns metros para trás e rolei um pouco antes de parar. Senti uma vontade muito forte de vomitar o que não comi. Minha visão ficou turva e senti que ia desmaiar.
Não dando espaço nem para eu respirar, Minca veio em minha direção.
Muita coisa passou pela minha cabeça antes de reagir. Não fazia sentido eu estar tão mal com tão pouco. O golpe dela, por mais forte que tenha sido, não deveria me causar tanto dano. Eu precisava de um espaço para pensar.
Assim que ela tentou me chutar novamente, me joguei em uma cambalhota para o lado direito, e corri para a direção oposta da arena. Muitas pessoas desaprovaram minha atitude e começaram a me vaiar. Não liguei, prefiro estar vivo a manter minha honra intacta.
— Você é ágil para fugir, hein. Não quer dançar comigo? Eu juro que não mordo!
Coloquei a mão no estômago e comecei a tossir. Algo não estava certo. Isso eu tinha certeza. Respondi depois de retomar o fôlego.
— Adoraria dançar, mas sou muito duro. Não levo jeito para isso.
Ela deu uma gargalhada forçada e tornou a correr em minha direção.
Respirei fundo e fechei os olhos. Um instante antes do punho dela afundar em meu rosto, esquivei para o lado. Meus olhos ainda fechados.
Minha máscara não facilitava para minha oponente ver meu olhos durante a batalha, então Minca não sabia que eu desviava sem vê-la. Isso poderia ter irritado muito ela.
Minha habilidade de sentir mana era perfeita para este momento. Como Minca mantinha uma aura de fogo ativa, eu conseguia sentir os movimentos dela mesmo sem olhar. Me privar do dom da visão permitiu eu focar na esquiva, até meu pequeno plano ter êxito.
Não demorou até surtir efeito. Manter uma aura como a dela ativa por muito tempo cobraria muito de suas reservas de mana. Devo aplaudi-la por estar neste estado por tanto tempo.
Seus golpes ficaram mais lentos e a intensidade das chamas diminuiu. Minca começou a arfar de cansaço e falou:
— É só isso que sabe fazer, fujão?
— Se for o que preciso fazer para vencer, sim.
Então sua aura apagou, como se alguém assoprasse uma vela. Abri os olhos nesse momento. Minca começou a se afastar de mim, tentando abrir uma distância segura, talvez para começar a me atacar com bolas de fogo. Não queria esperar para ver.
Então vomitei.
Jorrando pelas laterais da minha máscara, se espalhou um líquido azul, como o do sonho. Tinha cheiro de ferrugem e terra. O narrador comentou:
— ALGUÉM BEBEU DEMAIS ONTEM A NOITE — a plateia caiu na gargalhada.
Minca olhou para mim com nojo. O lado bom é que ela não me atacou enquanto eu colocava o líquido para fora. Talvez por achar que seria desonroso acertar uma pessoa enferma. Talvez por estar espantada de mais com a nojeira. Nunca saberei.
Tentei recuperar minha compostura, limpei o que deu sem tirar a máscara, usando a manga da minha camiseta.
Já estava farto daquela luta. Eu precisava terminar logo para descansar corretamente e absorver tudo o que aconteceu.
Levantei minha guarda, fixei meus olhos em minha oponente e falei:
— Prepare-se!
Ignorei enjoos, tonturas ou qualquer que fosse a enfermidade que estivesse me afetando. Avancei com tudo o que pude contra Minca. Ela não teve tempo de reagir. Acertei um soco na base de seu plexo solar. Ela desmaiou no mesmo instante.
Talvez eu tenha fraturado algum osso de seu tórax com o ataque, o que não seria um problema, já que existiam diversos curandeiros preparados para esse tipo de situação no torneio.
Atônitos, plateia e locutor não sabiam como reagir. Ouvi a voz de Listro logo atrás de mim na plateia, dizendo:
— ISSO, TÔ RICA!
Aplausos descontentes e outros animados começaram a irromper da plateia. O locutor anunciou:
— POR NOCAUTE, VALEN VENCE A LUTA!
— Se gosta de beber eu não o julgo, mas tome mais cuidado quando estiver prestes a lutar. Espero que não aconteça novamente! — Ujikar estava um pouco irritado por eu ter vomitado durante a luta.
— Não se preocupe. Isso não acontecerá novamente — não desmenti o treinador. Bebedeira depois de uma vitória explicou bem minha condição.
O homem deu uma bufada e continuou:
— Sua próxima luta é amanhã à tarde. Tome algum remédio antes da luta. E nada de se atrasar de novo, ok?
— Combinado.
Ele saiu do vestiário e fiquei na companhia de Pírio e mais dois outros competidores da nossa equipe. Meu amigo me olhou com apreensão. Ele cochichou no meu ouvido:
— Você está pálido, Alvo. O que aconteceu?
— Não sei. Algo a ver com um sonho que tive ontem, mas deixe pra lá. Só preciso comer algo para melhorar.
— Tem certeza? Nunca vi você ser pressionado daquele jeito. Nem mesmo quando está fingindo.
— Eu finjo muito bem…
Pírio não pareceu acreditar em mim. Mudei de assunto assim que pude:
— Onde estão Listro e Tobin?
— Ah, eles foram pegar o nosso prêmio. Ela mais do que dobrou nossas reservas. A casa de apostas está irritadíssima com nossa amiga.
— Também pudera. Quem seria louco de apostar mais de quinhentas moedas de ouro em um desconhecido? Vamos logo atrás deles, preciso mesmo comer algo.
Encontrar Listro foi fácil. Tinha um pequeno tumulto em volta dela, perto da casa de apostas. Todos queriam conhecer a “sortuda do Olana”. Foi assim que começaram a chamá-la.
Arrastei ela e Tobin da multidão. Listro abraçava um saco de ouro muito mais pesado que ela mesma.
— Vamos logo, vocês dois. Nada de ficar dando autógrafos!
— Mas eles me amam! Virei uma celebridade aqui! — ela protestava, mas se deixou ser arrastada por mim.
Depois que comi me senti melhor. Listro e Tobin fizeram as mesmas perguntas que Pírio, mas desconversei da mesma forma. Eu não queria contar sobre meu sonho para eles. Parecia errado. Íntimo demais.
Não quis voltar para assistir o restante das competições deste dia, então incumbi Tobin de anotar o máximo de informações que pudesse sobre os competidores que vencessem.
— Ficarei na estalagem. Quando as lutas acabarem, voltem e me contem como foi.
Eu queria ficar sozinho e absorver tudo o que aconteceu.
Passada uma tarde solitária e contemplativa, percebi que não descobri nada que já não soubesse. O sonho não fazia o menor sentido!
Quando a luz do dia diminuiu através da minha janela, três batidas na porta me tiraram de meu transe. Fui até a porta e a destranquei. Eram Tobin, Listro e Pírio.
— E aí, como foi?
— Cada luta mais interessante que a outra. Faltou você com a gente. Foi muito divertido! — O pequeno elfo estava radiante.
— Que bom que está animado. Aproveite que sua memória está fresca e me resuma como foi — Sentei em minha cama, aguardando os relatos.
Os três se acomodaram em poltronas pelo quarto. Tobin começou a explicação:
— Da competição “Combate desarmado com mana” tiveram quatro lutas durante a tarde e quatro de manhã. Perdemos uma das lutas da manhã para te acompanhar, mas ao que parece não foi tão importante. Tiveram mais seis lutas durante o dia. Cada vencedor lutava de um jeito diferente. Vai gostar de saber que sobrou só um anão na competição. Se a suposição de vocês estiver certa, ele é o escolhido.
— Como ele lutava? Qual o tipo de mana dele? — Eu mal continha minha excitação.
— Ele controla minerais, mas não mostrou muito durante a competição. Antes do oponente pensar, o prendeu em um caixão de pedra e o imobilizou sem muito esforço. A luta foi a mais sem graça do dia — Tobin deu de ombros.
— Isso pode ser problemático, Alvo. Ele é um natural, como você.
Um natural, ou “mago natural”, é aquele que nasce com o tipo de mana que sua raça mais tem aptidão. Para os humanos é a mana do tipo energia. Para os Lizards a de combustão. Para os elfos mana de vida. Para os Pelt-Beasts é a mana de força. Para os Anões é a mana elemental mineral. Magos naturais tendem a ser mais poderosos que a média dos magos de outros tipos de mana.
— Não terei uma luta fácil com ele. Ou eu termino o combate assim que ele começar, ou a arena pode não aguentar uma troca de golpes…
Meus amigos se entreolharam.
— Às vezes eu esqueço o quão forte um escolhido é. Será que esse é o motivo de você ser tão temido pelas outras raças, Alvo? Por ser um mago natural do tipo energia? — Listro perguntou.
— Creio que sim… Mas isso é assunto para depois. Tobin, continue a contar sobre os outros vencedores.
— Outro que vale destaque é aquele cara da sua equipe, o Mendir.
— Pois é, Alvo. Mendir estava especialmente animado hoje. Ele não quis terminar sua luta rápido como foi comigo. Brincou com o coitado do Anão que enfrentou, como se fosse um gato brincando com um rato.
— Ele mistura artes marciais avançadas com o controle de minérios. É espantoso. Bem, isso você já sabe — Tobin complementou.
— Mais algum vencedor que vale a menção?
— Não. Todos magos normais, que você venceria com as mãos atadas às costas.
Listro e Pírio concordaram com o garoto, assentindo.
— Ótimo… — Fiz uma breve pausa e falei. — Agora preciso contar para vocês sobre um sonho que tive. Eu ia manter isso só para mim, mas preciso de ajuda para entender o que aconteceu. Podem me ouvir?
“Quer saber o que acho do Alvo? Deixe-me pensar… Bruto, desleixado, prepotente e idiota. Tudo o que se espera de um militar de carreira, não é mesmo?”
Henco Pleno
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