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    VANIR

    Precisava do máximo de informações se quisesse me vingar, então decidi começar pelo reino humano, visto que era o mais próximo da floresta Galho-Perpétuo.

    Humanos são esquisitos. É raro ajudarem o próximo. O ego está acima do coletivo. Muitos passam fome enquanto o restante pouco faz para que a situação seja resolvida. Meu ódio pelos humanos só aumentou com o passar do tempo.

    Para conseguir estar entre eles, precisava me disfarçar. As orelhas eram um problema. Como minhas habilidades com magia de vida são as mais poderosas de Mundo, não tive problemas para cortar minhas orelhas e curá-las em um formato quase idêntico ao humano. Nem um resquício de cicatriz se manteve. A dor foi agonizante, mas acabou sendo um pequeno preço a se pagar para dar continuidade em meus planos.

    Infelizmente isso não resolvia todo o problema. Meu rosto ainda tinha traços muito “élficos”. Eram delicados demais para minha idade. Sem contar que qualquer elfo vivo na época me reconheceria no instante em que pusesse os olhos em mim. Eu precisava de uma aparência nova.

    Decidi manter um rosto maduro, porém bastante humano. Isso facilitaria com que eu me locomovesse pelo restante de Aurora. Humanos e Anões mantêm relações quase amigáveis, então isso seria uma vantagem que eu poderia explorar.

    Mudar aparência não é simples. Nem mesmo para mim. Se doeu apenas cortar as pontas de minhas orelhas, imagina se eu fizesse algo com meu rosto. Deixei a ideia de lado por enquanto.


    Após ser banido da floresta, andei por alguns dias até encontrar uma gruta, ao lado de um desfiladeiro, dezenas de quilômetros ao norte da floresta. Sentei no canto da pequena gruta e tentei avaliar o meu estado. Eu tinha alguns colares e braceletes de ouro, que os criados me obrigavam a usar como “sinal de realeza”. No futuro eu poderia tentar usar os adornos como moeda de troca com humanos. Meu manto, esverdeado, estava enlameado e todo rasgado. Eu não teria como usá-la por muito tempo.

    Com minhas habilidades era simples conseguir comida. Eu só precisava de uma semente e terra. Uma árvore enorme, e cheia de frutos, nascia com um simples movimento de minhas mãos.

    Antes de tentar me aproximar dos humanos, eu precisava resolver a questão da minha aparência. Eu queria não precisar fazer isso, pois a dor poderia ser muito para eu lidar, mas eu estava determinado. O que faltava era uma forma de ver meu rosto enquanto o processo acontecia. Um espelho era necessário.

    Descansei por alguns dias antes de continuar avançando para o norte. Uma semana de peregrinação me levou a um vilarejo humano. Fiquei atrás de um morro, aguardando anoitecer para me aproximar.

    Não foi difícil me infiltrar, pois os guardas no portão da cidade estavam bêbados, por conta de alguma festa idiota devido a farta colheita daquele ano.

    Já nas ruas movimentadas, percebi que existiam outras pessoas como eu, com roupas desleixadas e aparências decrépitas. Entre eles existiam pessoas ou muito idosas, com algum tipo de problema de saúde, ou com alguma doença mental evidente, devido às suas ações nada ortodoxas.

    “Então ‘isso’ são mendigos? Como os humanos deixaram chegar a este ponto?”, pensei.

    — Está perdido, amigo? Quer um gole de rum? — Falou um dos mendigos.

    — Rum? Ah, não, obrigado — tentei ignorá-lo, mas ele continuou perto de mim.

    — Nunca te vi por essas bandas… Qual o seu nome?

    Olhei irritado da direção do homem sujo. Ele fedia todo tipo de odor diferente. Os dentes estavam quebrados e tortos. Suas cabelos, desgrenhados, estavam presos com um pano sujo da cor marrom, que eu tinha, plena certeza, que não era sua cor original.

    Com meu olhar de raiva, o homem se afastou um passo para trás e levantou a mão que não segurava o copo com rum. Ele continuou falando:

    — Calma aí, irmãozinho. Estamos no mesmo barco aqui. Não precisa dessa hostilidade toda.

    — Agradeço a consideração, mas não preciso de nada.

    Deixei o homem no meio de outras pessoas bebendo.

    Me misturando entre os pedintes, esperei um rapaz se desgarrar da multidão e ir até um beco sozinho. Sem que ninguém percebesse, o segui.

    No beco, o homem se aliviava contra uma parede de tijolos. Sem que ele me visse, joguei uma semente de salgueiro no chão. Imediatamente fiz com que uma raiz crescesse e se enrolasse na cabeça do rapaz. Ele começou a se debater, mas não fazia barulho, pois sua boca estava selada pelas raízes.

    — Você será o primeiro de muitos. Agradeça por partir sem sentir dor. Com os próximos não serei tão piedoso.

    Com um simples movimento de minhas mãos, as raízes giraram, e a cabeça do homem deu meia-volta para trás. Simples como estalar os dedos, ele morreu. Com aquela pessoa se esvaiu qualquer vestígio de bondade que eu já tive dentro de mim.

    Usei as raízes para perfurar uma trincheira no chão, criando uma cova para o humano. Antes de colocá-lo no buraco, tirei suas roupas. Enterrei minhas vestes esfarrapadas enrolando o corpo do rapaz. Me vesti com as roupas recém adquiridas. Nos bolsos, tinham alguns pedaços de metal que identifiquei como sendo “dinheiro”.

    “Terei que aprender a usar isso se for me infiltrar entre os humanos”.

    Agora eu podia andar entre essa corja de seres sem ser parados por mendigos aleatórios.

    Mesmo entre os elfos, espelhos não são fáceis de encontrar. O processo de criação é muito complexo. Eu duvidava que existisse algum nesta mísera cidade. Vaguei por ela durante a noite, tentando olhar por entre janelas ou em bares, quando encontrei um espelho perfeito, atrás de um balcão da recepção de uma estalagem, que entrei para vasculhar.

    — Boa noite, senhor. Posso ajudá-lo em algo? Precisa de um quarto? — A moça era graciosa e bonita como uma elfa. Para mim era um ultraje achá-la bonita.

    — Eu… Eu só estou atrás de um banheiro…

    — Ah, pode usar o nosso. Fica no fundo deste corredor — ela apontou para a entrada de um corredor, em seu lado esquerdo.

    — Obrigado.

    Tentei pensar em um plano para roubar o item, mas, por enquanto, eu decidi entrar no teatro que eu mesmo criei. Aproveitei a oportunidade e usei o banheiro humano. O fedor ardia meus olhos. Me aliviei o mais rápido que pude, para sair logo dali.

    Voltando pelo corredor que entrei, passei pelo balcão da estalagem. Parei antes de sair do estabelecimento. Por reflexo falei com a humana.

    — Qual seu nome, garota?

    — M-Meu nome? — Ela pareceu estranhar a pergunta repentina. — É Rosiê, mas todos me chamam de Ziê. Qual é o seu?

    — Não é importante… Ainda. Fui com sua cara, Ziê. Se fugir agora, não será morta por uma besta de mana muito poderosa, que está se aproximando dessa cidade. Você tem menos de um ciclo.

    Ela fez uma expressão entre o horror e a negação. Antes dela ter a chance de me perguntar algo, saí pela porta, e, novamente, me misturei entre as pessoas na festividade.

    Percebi Ziê saindo da estalagem e me procurando no meio das pessoas. Mantive distância para não ser visto. Um tempo depois ela desistiu, e começou a correr de volta para a estalagem. Pouco tempo depois ela saiu correndo, com uma criança de menos de dez verões segurando sua mão. Ela aceitou minha sugestão.

    Dei um pequeno riso de escárnio. A garota fugiu sem tentar alertar ninguém, só com uma criança que se importava.

    — Típico de humanos…

    Dei início ao meu plano imediatamente. Joguei um punhado de sementes que levava comigo ao redor da estalagem. Parei na frente da hospedaria e usei minhas habilidades, fazendo com que grandes raízes saíssem pelo chão de onde antes Ziê trabalhava, criando um casulo de madeira protegendo o espelho que eu iria usar.

    Todas as pessoas ao redor se aglomeraram para ver o que estava acontecendo, pois o barulho da madeira rachando foi muito alto. Ainda não tinham percebido que eu era o responsável.

    Quando entendi que a maioria da cidade estava presente, iniciei a carnificina.

    Fiz com que cada centímetro da cidade se tornasse um mar de espinhos e raízes pontudas, crescendo vários metros acima do chão. A maioria das pessoas morreu instantaneamente. Os gritos de espanto logo foram engolfados pelo mar de plantas assassinas que nasceram debaixo de seus pés.

    Alguns meses depois, soube que não descobriram como a cidade foi destruída, então chamaram o acontecido de “A fúria da besta dos espinhos”, pois os humanos acreditavam que o culpado pela destruição da cidade havia sido alguma besta de mana poderosa, do nível de uma calamidade. Sem perceber, Ziê me ajudou, iniciando estes boatos.

    O cheiro de sangue e tripas expostas era pior que o banheiro que acabei de destruir. Ao fundo eu ouvia alguns poucos gemidos de pessoas ainda vivas, mas que logo se calavam. Um arrepio de arrependimento subiu pelas minhas costas. Era tarde demais para me arrepender por qualquer coisa…


    Com o espelho em mãos, encontrei uma caverna nas redondezas, longe de qualquer resquício de civilização, e me preparei para mudar de aparência. O processo seria problemático, pois eu provavelmente teria que fazê-lo mais de uma vez, já que não teria como ter certeza de qual seria o resultado.

    Apoiei a superfície reflexiva em uma pedra, pronto para começar o procedimento. Havia pegado uma faca afiada de um dos corpos da cidade que devastei, e comecei o processo de remover meu rosto.

    Quanto mais eu tentava, mais difícil ficava.

    No momento em que a faca encostava em meu rosto, eu começava a tremer, quase desistindo de continuar. Eu precisava ficar me lembrando como cheguei até ali, e o que eu queria fazer, assim me mantinha motivado. Infelizmente, apenas isso não foi o suficiente para eu continuar naquele dia.

    Decidi tentar no dia seguinte. Não consegui de novo.

    Tentei no dia posterior. Sem sucesso.

    Passados cinco dias, eu já não sabia como faria aquilo.

    Na sexta noite, tive um sonho. No sonho eu apenas relembrei do que aconteceu comigo na floresta, e como fui humilhado pelo deus verde. Um ódio que inflamou minha determinação fez eu levantar no meio da noite.

    Acendi uma fogueira e ajoelhei ao lado do espelho.

    Com a sensação de ódio fresca em minha mente, esfolar meu próprio rosto foi rápido e fácil. Olhei para o espelho com a cara cheia de sangue e vários pontos com ossos expostos. A adrenalina eliminou a dor. O ódio foi o combustível que moveu minhas mãos naquela madrugada.

    E podia simplesmente curar meu rosto naquele instante, mas decidi ficar olhando no espelho por um tempo, para marcar em minha mente aquela imagem horrível. Eu queria me lembrar para sempre daquilo, como se queimasse em minha retina.

    Depois, tentei curar meu rosto de um jeito que a pele e a carne ao redor fossem moldados de forma diferentes da original. Eu estava fazendo um rosto novo. Mas eu não queria só um rosto novo. Queria uma identidade nova. Eu precisava ser outra pessoa daqui em diante.

    O primeiro rosto que tentei moldar ficou totalmente desfigurado e sem sentido. Apenas na quarta tentativa, depois de mais três sessões de auto-esfolação, consegui entender o processo de cura, que gerou um rosto satisfatório.

    Foi nessa noite que Vanir, rei dos elfos, morreu. Eu iria mudar de nome, mas não faria diferença. Quando eu finalizasse meu plano gostaria que lembrassem do meu nome. Que temessem ele. O nome foi tudo o que mantive do meu passado.


    “Foi a decisão certa não me envolver no restante das provas de sucessão. Só a deusa amarela saberia o que poderia acontecer se meu filho, Cádimo, se tornasse rei depois de mim…”

    Rufo Sote

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