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    JOUCI “NÃO-NOMEADA”

    Próximo ao anoitecer, montados em nossos búfalos, começamos a conversar:

    — Cara, o torneio Olana deste ano deve ser muito divertido. Pena que estamos em outro continente — An’u comentou conosco. — Será a primeira vez que anões participarão do torneio.

    — Não teríamos como assistir de qualquer forma. Soldados como nós não tem tantas regalias assim — Maso desencorajou o amigo.

    — Depois que “podarmos” a rosa, vocês poderão ver quantos torneios quiserem — Geir falou com seus comandados.

    — Rosa? É algum tipo de metáfora estranha que vocês usam? — Perguntei.

    — É quase literal, na verdade. O nome da organização que estamos enfrentando é Rosa-dos-ventos — Geir explicou.

    — Mas a Rosa-dos-ventos não é um grupo de mercenários?

    — É também… A rosa faz todo o tipo de coisas, e está em todo lugar. Cada arauto cuidava de uma “raiz” das operações internas da organização. Minha especialização eram assassinatos. Eu comando uma raiz de operações focado em matar alvos específicos. Primeiro cuida da disciplina e recrutamento. Faísca cuidava dos mercenários. Já os outros quatro eu não sei o que fazem, pois Vanir manteve isso escondido… Talvez ele nunca tenha confiado completamente em mim.

    — Então estamos lidando com algo muito maior do que apenas um grupo organizado de mercenários… — Talamaris pareceu perder alguns anos de vida enquanto entendia o que estávamos enfrentando. Seu rosto ficou um pouco pálido.

    — A rosa tem espinhos por toda parte, com integrantes infiltrados em centenas de cidades pelo mundo. O lado bom é que toda a operação é focada em Vanir. Sem ele, a Rosa se tornará frágil, sendo facilmente desmantelada — Elear comentou, com certo orgulho na voz.

    Geir deu um longo suspiro e falou:

    — Desculpem meu subordinado. Ele ainda não está acostumado a falar sobre a Rosa sem se vangloriar. Elear é a última adição ao nosso pequeno grupo rebelde.

    Elear pareceu estar envergonhado. Não pude culpá-lo, provavelmente ele trabalha para Vanir desde o momento em que nasceu. É melhor dar tempo para ele se acostumar ao novo “mundo” que ele agora faz parte.

    — Quantos integrantes existem em seu grupo rebelde, Geir? — Talamaris perguntou.

    — Não são muitos. Instigar fanáticos contra seu líder é difícil. Ainda mais quando a maioria de seus soldados cresceram dentro da Rosa… Se eu fosse colocar em números, temos menos de cem rebeldes.

    — Menos de cem? Em cinco anos, não conseguiu nem cem pessoas? — A minha irritação era justificável. Como enfrentaríamos uma organização de nível global, com menos de cem pessoas?

    — Nunca disse que meu plano era perfeito. Na verdade eu adiantei ele por causa de Thermon. O lado bom é que Vanir precisa dele vivo, só não sei para quê…

    — Pensei um pouco sobre essa situação, e estranhei a necessidade de Thermon nisso tudo. O que um “figurão do submundo”, que comanda uma organização tão influente, quer com ele?

    — Garanto que não é para algo bom. Sabemos que Vanir precisa dele vivo, mas não significa que não possa machucá-lo.

    Não fiquei feliz com essa informação. Geir continuou:

    — O mais próximo que cheguei de saber sobre os planos de Vanir, foi há mais ou menos dez anos. Ele comentou algo, enquanto eu passava por um corredor ao lado de uma sala em que ele estava: “Cada escolhido importa. Preciso de todos. Vou fazer Altimanus me ajudar.”. Depois Vanir enviou Primeiro a floresta dos elfos, e nunca mais ouvi nada sobre seu “grande plano”.

    — Dez anos? Altimanus e dez anos atrás… O que isso me lembra?

    Tentei forçar ao máximo minha memória. Eu tinha a impressão que alguém comentou sobre Altimanus ter feito algo dez anos atrás, só não lembrava o quê. Um estalo ecoou em minha cabeça, conectando os fragmentos de informações que estavam espalhados.

    — Há dez anos, Altimanus começou a reunir prisioneiros para lutar contra Alvo. Com isso os elfos conseguiram algumas informações sobre o escolhido humano. Thermon me contou isso depois que voltamos para o polo sul. Mil e quinhentos elfos morreram para descobrir um ponto fraco de Alvo.

    — Está me dizendo que meu antigo rei estava mancomunado com um líder de mercenários? Isso diz muita coisa sobre sua índole. Não que isso importe agora — Talamaris não parecia surpresa.

    — Outra coisa que corrobora com essa nova informação que Jouci nos deu, é que o Senhor Vanir ficou muito irritado quando descobriu que Altimanus morreu — Elear estava atento a nossa conversa. — Como se tivesse perdido um bem valioso, ou algo parecido com um animal de estimação útil…

    — Elear, você chamou “ele” de senhor, de novo… — Maso repreendeu o humano.

    — Foi sem querer. Isso tudo é muito novo para mim.

    — Sem problemas. Contanto que você não volte a ser leal a ele… — An’u falou.

    O rapaz ficou em silêncio.

    Voltei ao assunto depois de avançarmos mais um pouco:

    — Um plano de dez anos para tentar algo contra um escolhido. Alvo é mesmo um monstro…

    — Se eu fosse Vanir, esperaria Alvo morrer de velhice para tentar algo contra os humanos. Elfos vivem tanto, que a curta vida de um humano nem faz diferença — Maso falou.

    — A princípio Vanir não quer nada com humanos. Ele precisa de escolhidos exclusivamente — Geir explicou.

    — Algo me diz que com mais algumas informações conseguiremos desvendar esse mistério de Vanir. Por ora, acho melhor evitarmos gastar energia. A viagem apenas começou — falei ao grupo.

    De cima da minha montaria, o frio da noite do deserto me fazia bem. A secura ainda era um problema, que resolvemos com pequenas grutas pelo caminho, provavelmente geradas com magia por viajantes no passado. As grutas eram espaçadas em distâncias de uma noite de viagem, estrategicamente posicionadas em áreas pedregosas, evitando assim a calamidade do deserto.

    Meu grupo mantinha poucas conversas durante o caminho. Fomos instruídos por Geir a prestar bastante atenção nos arredores. Qualquer vibração no terreno, deveríamos nos dispersar, evitando assim sermos mortos juntos caso a calamidade nos atacasse.

    De certa forma, tudo ocorreu bem na viagem. O que me atormentava eram os sonhos. Depois que nosso grupo foi formado, sempre sonhei com a mesma coisa.

    No meu sonho, encontrei-me em uma densa floresta cercada por uma exuberante vegetação. Cada folha emitia um brilho suave, como se a vida jorrasse delas. Enquanto caminhava entre a flora, sentia-me atraída a acariciar os brotos delicados, como se estivesse afagando crianças. Respeitando a vida delas, como se fosse minha própria.

    O sonho continuava por horas, enquanto eu vagava por essa floresta quase mágica.

    Perto do fim, uma luz vermelha quase cega meus olhos, como uma explosão brilhante. Uma mistura de fogo e luz queima a mim e as plantas ao meu redor. Sempre acordei com susto, devido à explosão no sonho. Neste dia, não foi diferente. Sonhei exatamente a mesma coisa, pela quarta vez.


    Sem calamidades ou outros percalços no caminho, nossa viagem se aproximava do fim. Cada dia que passou aumentou minha ansiedade e apreensão pela urgência em salvar meu amado. Há mais de um mês não via Thermon.

    Elear nos contou que estávamos a menos de uma noite de distância de nosso objetivo. Então decidimos continuar sem pausas, mesmo se o sol raiasse. Nossos búfalos, coitados, poderiam acabar não aguentando tanto esforço. No pior dos casos teríamos que deixá-los para trás. Esperava não termos que chegar a este ponto.

    Perdida em pensamentos sobre meu passado, senti minha montaria um pouco mais agitada que o normal. As pedras, nas quais estávamos usando para encobrir nossa presença da calamidade, pareceram não ser suficientes neste momento da viagem. O chão tremeu bastante, e o grupo todo, ainda em silêncio, se olhou com certo desespero no rosto.

    Geir, que viajava todo enfaixado novamente, fez um sinal com a mão, para que parassemos nossos búfalos. Ele também pediu silêncio com um gesto. Colocou o indicador na altura dos lábios invisíveis pelos panos. O tremor diminuiu depois de uns instantes.

    — Não se mexam. Retraiam sua mana o máximo que puderem para dentro de seus corpos — sua voz saia como um sussurro, que era muito difícil de ouvir por baixo dos panos em seu rosto.

    Cerca de duzentos metros de distância à nossa frente, uma explosão de terra e pedra nasceu do chão. A terra continuou subindo, como um vulcão de areia e detritos. Passado o espanto, conseguimos vislumbrar a causa daquilo. Um ser com o formato de uma minhoca gigantesca saltou de dentro de onde a terra explodiu e voltou para as areias do deserto.

    A terra tremeu novamente, com a criatura assustadora cavando abaixo de nós.

    Esperamos, esperamos e esperamos.

    O tremor foi diminuindo, até que não se ouvia ou sentia nada.

    Como se estivesse segurando a respiração, Geir voltou a respirar com arfadas longas e constantes. Ele falou:

    — Essa foi muito perto… An’u, achei que soubesse o caminho mais seguro.

    — Desculpe, chefe. Esse é o mais seguro! Provavelmente ali, onde a calamidade atacou, tem um novo ninho de lagartos. Quer dizer, tinha um ninho…

    — Agora que a maior fonte de mana das redondezas foi destruída, seremos alvos fáceis. Talvez avançar agora não seja o melhor a se fazer — Maso choramingou.

    — Devemos fazer outro desvio? Teríamos que retornar quase meio dia de viagem para isso — Elear olhou para trás, triste pela ideia de refazermos grande parte de nosso trajeto.

    Com a urgência apertando meu peito, dei uma ideia:

    — E se continuarmos a pé, enquanto mantemos nossa mana retraída? Talvez conseguiremos passar por esta área sem sermos notados.

    — Sei que está desesperada para o fim dessa viagem, mas se morrer antes de chegarmos, não poderá ver Thermon de novo, Jouci! Tem alguma outra alternativa, Geir? — Talamaris me trouxe para a realidade.

    — Concordo com Jouci — Geir nos pegou de surpresa. — Se seguirmos em linha reta pelo deserto, nossa viagem não demoraria nem meio dia. Não ter que depender da formação rochosa encurtaria muito o caminho. Sem contar que de noite a calamidade é pouco ativa, pois odeia o frio. O que me dizem. Vamos a pé? — Geir olhou através de mim. Talvez tivesse se compadecido para dizer isso, colocando todo o grupo em risco.

    Se fosse simples atravessar o deserto apenas retraindo a mana corporal, todos o fariam. A verdade é que ficamos muito vulneráveis sem mana nos fortalecendo. Sem mana, morrer no deserto não era mais uma questão de “se morreríamos”, mas sim de “quando morreríamos”.

    O grupo se entreolhou, pensou em protestar, mas quem concordou foi Geir, então não tiveram muito escolha. Seguiríamos a pé.

    Maso tentou protestar sobre continuar a viagem montados:

    — Não podemos continuar com os búfalos?

    — Por mais fracos em utilização de mana que os animais sejam, ainda são bestas de mana. Nas areias do deserto, seríamos descobertos pelas calamidades em segundos — advertiu An’u.

    Os búfalos, como se soubessem o caminho de volta, foram soltos e retornaram para o sul, provavelmente indo em direção a última gruta em que nos abrigamos. Conosco ficou apenas água e pouca comida. Enterramos o resto dos nossos pertences entre as areias fofas do deserto e uma pedra alta e pontuda da área.


    Era meia-noite quando formamos uma fila, e continuamos a viagem. Uma brisa fria soprava contra minha pele. Tirando eu e Geir, todo o grupo estava muito agasalhado. O rosto de Talamaris estava corado pelo frio quando olhei para trás.

    No alto, estrelas brilhavam como se estivessem próximas de nós. A Lua, isolada no céu, projetava uma luz pálida e forte nas areias do deserto.

    As infinitas dunas ao nosso redor estavam silenciosas como sempre. Se prestássemos muita atenção, dava para ouvir alguns sons de animais e insetos no deserto. Provavelmente eles eram mais ativos no período da noite.

    De certa forma eu sentia muita paz neste lugar. Às vezes, quando o caminho estava mais plano e consistente, eu andava de olhos fechados. A sensação de calma tornava a peregrinação quase prazerosa.

    Foi aí que percebi que gostava disso. Percebi que gostava de viajar pelo mundo. Talvez eu não conseguiria ser verdadeiramente feliz ficando presa apenas no polo-sul. Percebi a sorte que tenho, por poder viajar por minha raça.

    Passados dois ciclos retraindo nossa mana, percebemos o cansaço acumulando rapidamente. Com a mana fluindo normalmente em meu corpo seria necessário, pelo menos, cinco ciclos seguidos de viagem constante para que eu ficasse tão ofegante assim. Decidimos fazer uma pausa depois de três ciclos.

    Sentados no topo de uma duna especialmente alta, tomamos quase metade de nosso estoque de água para nos hidratarmos. Eu não sabia como nosso guia se orientava, então perguntei:

    — Geir, An’u, como vocês sabem para onde estamos indo? O que usam para se orientar?

    Geir apontou para cima, e falou:

    — Está vendo aquele conjunto de estrelas? Durante os últimos meses do ano, a estrela mais brilhante delas aponta para o sul. Já aquela outra constelação, se você comparar com a anterior, saberá se está seguindo para leste ou oeste.

    — Por mais que as dunas sempre mudem de posição, devido aos ventos, existem também algumas formações rochosas que sempre são visíveis, como aquela em que deixamos nossos pertences. Eu sabia que se seguíssemos a noroeste de lá chegaríamos ao esconderijo — An’u complementou.

    — Que interessante. Eu também uso as estrelas para me guiar no mar, mas prefiro usar bússolas, pois assim consigo viajar de dia também.

    Peguei o pequeno instrumento que ganhei de meu pai. Minha bússola ficava em um bolso externo da minha calça. Quando tentei usá-la, seu ponteiro girou em direções aleatórias. Quando minha expressão de confusão estava óbvia, Elear me explicou:

    — Bússolas não funcionam neste deserto. Ninguém sabe o motivo. Tirando os extremos sul e norte dos pólos, este é o único lugar de Mundo que isso ocorre.

    — Este mundo é cheio de coisas diferentes e interessantes. Se eu não estivesse tão desesperada para salvar Thermon, estaria apreciando a experiência da viagem neste deserto — guardei minha bússola.

    Pegos de surpresa com minha fala, meu grupo olhou em volta. Pareciam nunca terem tomado um tempo para apreciar a vista.

    — Lutei tantos anos por Vanir, mas nunca apreciei nada além do trabalho que executava — Geir tirou as ataduras de seu rosto e olhou ao redor.

    Eu não falava da boca para fora. O deserto era deslumbrante. Ao mesmo tempo que era assustador e vazio, nos transmite uma calma extrema. O equilíbrio da fauna com o ambiente era tão preciso, que nossos passos na areia maculavam a paisagem.

    Geir levantou para olhar melhor os arredores. Ele deu uma risada quando ficou de costas para nós e falou:

    — Obrigado, Jouci. Recuperei algo que eu tinha perdido a muito tempo.

    — E o que seria?

    — O prazer de aproveitar o momento.


    Perto do amanhecer, era possível ver uma formação rochosa solitária, a poucos quilômetros de distância. O local parecia como se uma montanha estivesse sendo engolida pelas areias infinitas do deserto. Lá ficava nosso destino.

    Talamaris estava ainda mais atenta aos arredores desde que vislumbramos o próximo esconderijo de Vanir. Ela empunhou sua lança na frente de seu corpo, por precaução.

    — A segurança aqui é bem rígida com quem se aproxima. Senhorita Talamaris, sugiro que abaixe sua arma, para evitar suspeitas — Maso alertou sua companheira de espécie.

    Eu e Geir estávamos enfaixados novamente. Mostrar meu rosto aqui poderia trazer suspeitas, já que não faz sentido um elfo-de-gelo estar tão longe do sul. Precisávamos evitar problemas antes de entrarmos na base.

    Aos pés da montanha de pedra alaranjada, Elear nos guiou por uma entrada. Era como a boca de uma caverna, com alguns guardas nos esperando.

    — Senha? — Falou um rapaz magricela, usando uma bandana marrom, muito suja, na testa.

    — Quer mesmo pedir senha para mim, moleque?

    Geir avançou à frente de nosso grupo e se pôs entre os guardas. Consegui contá-los, agora que paramos perto deles. Eram seis. Dois estavam de pé, segurando lanças ao lado do corpo. Os outros quatro estavam sentados, nos medindo de longe.

    O rapaz que pediu a senha estava sentado, mas se levantou imediatamente. Devido ao susto que levou por ser repreendido, prontamente liberou nossa passagem.

    — Ah, senhor Geir! Por favor, entrem. Deixem eles passarem de uma vez!

    Escoltados pelo magricela de bandana, entramos no esconderijo onde, possivelmente, mantinham Thermon.


    “Nascido de pedaços de corpos putrefatos de humanos, anões e elfos, um ser de aparência grotesca e disforme surgiu. O ritual medonho, executado por um xamã Lizard, criou o primeiro deus de sua espécie. O deus Carmesim. O propósito desta anomalia mágica era se tornar uma arma contra os inimigos de seu povo. Mas como poderiam, serem tão primitivos, controlar um deus?”

    Vanir

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