Capítulo 33 - Pedra e Luz
VALEN
Tivemos um dia de folga antes da próxima luta. Gastei meu tempo livre descansando, pois não estava completamente recuperado dos enjoos que senti na batalha contra Minca. Meu órgãos pareciam feitos de geleia, e minha cabeça pesava mais que uma vaca. Vai por mim, eu sei quanto pesa uma vaca.
O dia de descanso me revigorou. Senti meu corpo bem mais leve depois da segunda noite bem dormida. Quem não parecia bem era Tobin. Neste dia o menino parecia uma vela de tão pálido. Ele, Pírio e Listro me aguardavam no refeitório da estalagem.
— Que cara é essa, Tobin. Viu um fantasma?
— Ele teve um pesadelo como o seu. Dê um tempo a ele — Listro defendeu o elfo.
— Igual o meu? Me conte tudo!
O garoto respirou fundo, fechou os olhos, e começou a falar:
— A descrição que deu para nós do seu sonho “azul” até me assustou com a semelhança. A diferença é que no meu sonho era prateado. Como se eu estivesse em um mundo metálico. Também senti pessoas orando para mim. A diferença é que foram centenas, e não as poucas, como no seu sonho, Valen…
— Isso é algum tipo de histeria coletiva? — Pírio falou, tentando fazer piada com a situação.
— Não tem graça, Pírio. Podemos estar lidando com algo muito acima de nós… — Listro o repreendeu.
— Você quer dizer…?
— Sim, Alvo. Aparentemente os deuses estão falando conosco.
Um silêncio perturbador tomou conta do recinto. Haviam outras pessoas comendo em mesas longe de nós. Até mesmo eles ficaram quietos ao ouvir o que Listro disse. Olhei em volta e forcei uma tosse alta, tirando todos deste estupor coletivo. Continuamos conversando aos cochichos:
— Não seria apenas uma coincidência? Vai que Tobin teve esse sonho porque Alvo nos contou o dele… Pode ser coisa da cabeça do menino — Pírio ficou um pouco espantado com a possibilidade levantada por Listro.
— E por qual motivo Tobin estaria tão abatido? Veja, na área de inteligência tivemos instruções sobre diversos tópicos. Não nos ensinam apenas combate, como fazem com vocês, brutamontes das forças de proteção. Durante essas instruções nos contaram tudo o que é sabido sobre os deuses, e como eles podem intervir em nossa sociedade. Na maior parte das vezes é algo simples, como sonhos dirigidos aos reis ou outras pessoas importantes das espécies. Em ocasiões raras, os deuses falam conosco diretamente — ela nos deu tempo para absorver a informação antes de continuar. — De qualquer forma, acredito que estamos lidando com esse tipo de situação. Deuses se comunicando através de sonhos.
Me escorei na cadeira de madeira e olhei para o teto, tentando processar o que Listro nos disse. Sem nenhum tipo de nova informação, ou epifania, decidi deixar para depois essa conversa.
— Sendo deuses ou não, vamos focar no agora. Hoje terei minha terceira luta. Tobin. Acha que consegue ir conosco até a arena?
— Sim. Se eu não ficar me mexendo demais, ficarei bem.
— Ótimo. Listro, Pírio, se querem ganhar dinheiro com apostas, gastem cada centavo hoje. Tenho a impressão de que não terão outra chance no futuro.
— Por quê diz isso? — Pírio questionou.
— Tenho a impressão de que enfrentarei nosso “amigo” escolhido hoje.
A partir deste dia os combatentes restantes da competição descobririam quem seriam seus adversários pouco antes das lutas, aumentando assim a tensão e a imprevisibilidade dos resultados. Tudo o que a banca de apostas pudesse fazer para garantir lucros maiores, ela faria.
Entrei na arena na hora combinada e lá estavam outros sete competidores. Apenas um deles era uma mulher. Vislumbrei o anão que poderia ser o escolhido parado, de costas para mim.
Assim que nos alinhamos no centro da arena, o locutor gritou por cima do falatório da arquibancada:
— A PARTIR DE HOJE, TEREMOS APENAS DUAS LUTAS POR COMPETIÇÃO A CADA DIA. RESTAM OITO LUTADORES EM “COMBATE DESARMADO COM MANA”. VAMOS DAR UMA SALVA DE PALMAS PARA CADA UM DELES — o locutor fez uma pausa dramática, e começou a citar os nomes dos competidores. — BIVOU, DE PEDRA-PARTIDA. CALEO, DE SOUTO-CENTRAL. CECENA, TAMBÉM DE SOUTO-CENTRAL. HUTO, DE CENO-AZUL. MENDIR, DE LAGUNA-OESTE. PASFUR, DE OLILHA. VALEN, DE LAGUNA-OESTE. E POR ÚLTIMO, MAS NÃO MENOS IMPORTANTE, VEN’E, DA NAÇÃO ANÃ, AMETIS.
Após cada nome citado, a plateia explodiu em palmas e gritos de alegria e suporte. Até mesmo para o anão. Eu fiquei um pouco orgulhoso de como as pessoas estavam tolerantes com outra espécie fazendo parte deste torneio. Talvez fosse o primeiro passo para um entendimento entre as nações… Quem estou querendo enganar? Anões são quase amigos dos humanos. Não é por que conseguimos ter um torneio sem problemas, que a paz iria reinar. Devo manter minhas expectativas em um nível mais realista.
O locutor continuou:
— FAREMOS UM SORTEIO PARA DEFINIR CADA LUTA. DENTRO DESTA URNA COLOCAREI OS NOMES DOS COMPETIDORES E PEDIREI PARA ESPECTADORES ALEATÓRIOS VIREM AQUI E RETIRAR ESSES NOMES.
Então ele pegou um jarro, mostrou que estava vazio para o público e colocou lá dentro oito pedaços de madeira, com os nossos nomes entalhados. Ele apontou para um garotinho sentado na arquibancada ao lado dele.
— MENINO, VENHA CÁ. FAÇA AS HONRAS!
Algumas pessoas aplaudiram, animadas com o sorteio.
Os pais do garoto o levaram até o pequeno palanque do locutor. A criança estava evidentemente nervosa com a situação, fazendo muitos na plateia rirem. Eu senti pena por ele. Quase forçado pela mãe, o garotinho tirou um nome do jarro. O locutor leu:
— VEN’E, DA EQUIPE DOS ANÕES. Obrigado, garotinho — ele cochichou. — AGORA, PARA O PRÓXIMO NOME, QUE TAL UM ANÃO FAZER AS HONRAS? VOCÊ, SENHORITA, PODERIA VIR AQUI? — O narrador apontou para alguém do lado contrário que tinha chamado o garotinho.
Uma anã, mais baixinha que a média, que estava passando perto do palanque, percebeu que estava sendo requisitada, e foi até o locutor. Ele se abaixou para que ela alcançasse o jarro. Percebi algumas pessoas segurando o riso na plateia. Se tiramos sarro por algo tão fútil como isso, só mostra que não estamos realmente prontos para a paz entre as espécies.
A anã retirou um nome de dentro do jarro.
— VALEN, DA EQUIPE DE LAGUNA-OESTE. Obrigado, querida — a anã se retirou. Ela parecia muito feliz por ter participado. — OS DEMAIS COMPETIDORES PODEM SE RETIRAR.
Então esse era o momento. Bem antes do que imaginei, eu descobriria se enfrentaria um escolhido ou não. Eu precisava me preparar para qualquer que fosse o caso.
Ainda com a minha máscara azul de raposa, tentei olhar para a platéia, procurando meus amigos. Os encontrei em um camarote, perto de onde o locutor dava as instruções. Listro encontrou meus olhos. Uma sombra de preocupação passou por seu rosto. Como quem tenta animar o outro, ela afastou a carranca e me deu um sorriso largo.
Li seus belos lábios quando ela falou apenas para mim: “Acaba com ele!”.
Dei um aceno curto para ela e virei para meu oponente. Os outros competidores ainda estavam saindo quando Mendir passou perto de mim e falou cochichando por debaixo de sua máscara:
— É bom não perder. Você seria ridicularizado por décadas.
Com essa pequena brincadeira sem graça, Mendir sumiu pelos corredores, deixando apenas eu e meu adversário na arena. O locutor continuou:
— APRESENTAÇÕES NÃO SERÃO NECESSÁRIAS. COMPETIDOR VEN’E, ESTÁ PRONTO?
O anão acenou positivamente com a cabeça. Ele não era muito velho, vestia roupas com camadas e mais camadas de couro escuro. Tinha uma bandana de pano vermelho escuro enrolada em sua cabeça, escondendo os cabelos. Já a barba marrom, que terminava na altura de sua cintura, era volumosa e bem penteada.
— COMPETIDOR VALEN, ESTÁ PRONTO?
Levantei minha guarda e também acenei.
— TERCEIRA RODADA DA COMPETIÇÃO DE COMBATE DESARMADO COM MANA COMEÇA… AGORA!
E o gongo soou.
No mesmo instante que a luta começou, senti uma onda de mana vir em minha direção. Mais precisamente essa mana vinha do chão. Me joguei para o lado esquerdo, assim que um casulo de terra nasceu onde eu estava de pé um instante antes.
Era óbvio que eu precisaria lutar com seriedade desta vez, mas decidi testar meu oponente mais um pouco. Avancei diretamente contra Ven’e, que deu um sorriso debochado quando o chão abaixo de mim foi levantado como uma plataforma. Fiquei em cima desta rocha flutuante, lutando para me equilibrar.
Ouvi um estalo da rocha que flutuava a dois metros acima do chão. Aquilo não parecia um bom sinal. Saltei alguns metros para cima, bem no momento em que a plataforma de pedra se fechou onde antes eu estava.
Se eu não tivesse esquivado, os humanos teriam que procurar outro escolhido.
Depois que voltei ao chão, centenas de pequenos pedaços de pedra flutuavam ao meu redor, como se esperassem uma ordem para me atingir como flechas. Me afastei o máximo que pude para trás. Não fui rápido o suficiente, uma chuva de pedras, não muito maiores que uma bola de gude, voaram em minha direção.
Reforcei cada centímetro do meu corpo com mana, e protegi meus órgãos mais importantes com os braços. Por sorte as pedras da arena não eram tão densas. A maioria só me causou escoriações e arranhões.
Estava óbvio que apenas com minhas habilidades físicas eu não teria chances contra o escolhido anão.
Depois desse ataque bem sucedido, o anão falou pela primeira vez comigo:
— Então terei que lutar com mais seriedade dessa vez? Já estava ficando entediado… Pensei, “Será que é tudo isso que a nação humana tem a oferecer?” — debochou.
Não respondi de imediato. Poderia ser uma distração para que outro ataque me surpreendesse. Quando percebi que ele não iria me atacar, respondi:
— Tem mesmo a pachorra de dizer isso? Um escolhido entrar numa competição mundana como essa é um pouco baixo… Até mesmo para um anão!
Uma veia saltou ao lado de seu rosto, devido a irritação. Ele pareceu mais bravo do que surpreso com o que eu disse.
— Então você percebeu? Não faz mal… Viemos apenas para brincar com os humanos de qualquer forma. Revisamos as regras do Torneio Olana, e nenhuma delas impedia a participação de um escolhido. Já que quem oferece o maior prêmio somos nós, anões, creio que os juízes não terão problemas com a minha participação no torneio.
Ven’e olhou em direção ao locutor, que, assim como toda a platéia, ouviu nossa conversa. Duas pessoas se aproximaram do narrador e começaram a cochichar em seu ouvido. Provavelmente eram os juízes. Instantes depois o narrador falou:
— SENHORAS E SENHORES, TEMOS UMA REVIRAVOLTA NA COMPETIÇÃO. O COMPETIDOR VEN’E É O ESCOLHIDO DOS ANÕES. COMO O MESMO INFORMOU, NÃO EXISTE REGRA CONTRA SUA PARTICIPAÇÃO. DESSA FORMA, DAREMOS AO COMPETIDOR VALEN A POSSIBILIDADE DE DESISTIR SE QUISER.
Respondi de imediato:
— Não se preocupem, ele não é o único escolhido aqui!
Tirei minha máscara e algumas pessoas na arquibancada reagiram.
— Mas este não é Alvo? Eu já o vi em Porto-Norte uma vez. É ele mesmo! — Falou um homem aleatório.
— Sim, eu o reconheço também. Já o vi passando a cavalo perto de Arcos! — Disse outra voz na arquibancada.
Ven’e se assustou com a informação. Ele olhou diretamente para o locutor e disse:
— Isso é um ultraje. Ele falsificou sua identidade para entrar na competição. Quem pode garantir que ele lutou nas rodadas anteriores? Ele deve ser desqualificado!
Várias pessoas protestaram contra o anão. Uma mulher falou:
— Você só está com medo de enfrentar nosso escolhido. Vai fugir mesmo?
Percebi que poderia ficar em maus lençóis não por ser um escolhido, mas por mentir meu nome. Então inventei uma mentira para esta ocasião:
— Vim a mando da futura Rei de nossa raça, Henco Pleno. Nossa área de inteligência imaginou que algo de incomum poderia acontecer nas competições deste ano, e fui designado a participar. Obviamente sou conhecido, então me ordenaram lutar anonimamente — fiz uma pausa, para que minhas palavras fizessem efeito. — Você, Ven’e, é a prova que estávamos certos. Agora, eu quem te darei a oportunidade. Irá desistir de me enfrentar?
Todos acreditaram em minha pequena mentira. Por qual motivos um escolhido, conhecido por ser leal ao rei, mentiria sobre uma ordem recebida?
O anão ficou contra a parede e olhou para a arquibancada em que seus compatriotas ficavam. Um deles, bem ancião, pareceu concordar com algo, pois acenou positivamente para Ven’e.
— Tudo bem, Alvo. Vamos lutar então!
A multidão explodiu de animação. Eles teriam a oportunidade de presenciar a luta de dois escolhidos.
Percebi que esta luta poderia pôr em risco as pessoas ao redor. Usando minha luta contra Thermon como exemplo, na primeira troca de golpes esta arena poderia vir abaixo. Então falei:
— Ven’e, precisamos garantir que os espectadores não se machuquem com a nossa luta. O que pode fazer para evitar isso?
— Hmmm… Que tal afastar as arquibancadas e deixá-las alguns metros mais altas?
— Seria perfeito!
Ele fechou os olhos e uniu as mãos. Com um movimento de separar as mãos devagar, toda a arena se dividiu em dez fatias de tamanhos iguais e foram afastadas pelas habilidades de Ven’e. Cada uma das fatias da arquibancada foi distanciada de nós cerca de cinquenta metros. Logo depois ele elevou cada uma delas cerca de cinco metros acima do chão.
Senti com minhas habilidades que ele tinha gasto em torno de um terço de sua mana reconfigurando a nossa arena. Assim ficamos mais emparelhados fisicamente, visto que eu me machuquei um pouco com os primeiros ataques do anão.
— Somos fortes demais. Poderíamos acabar nos matando. Que tal decidirmos isso com um golpe? O primeiro a acertar um golpe contundente no outro, vence. O que acha? — A ideia partiu do próprio Ven’e. Fiquei feliz em saber que ele não era apenas um maníaco, e se importava com a vida alheia.
— Sem mortes então. Tudo bem. Vou arremessar esta pedra para o alto. Quando ela tocar o chão começamos?
Ele assentiu.
Respirei fundo e joguei a pedra com muita força para o alto. Iria demorar bastante tempo para ela cair.
Quando a pequena pedra alcançou seu pico de altura, ativei minha aura opressiva de energia. O ar ao redor vibrou com a força de minha mana. O anão tinha uma expressão de preocupação. Se não imaginei coisas, uma gota de suor desceu por seu rosto assim que minha aura ativou.
Contei até três, e a pedra se esmigalhou no chão.
Como um raio, avancei contra Ven’e. A experiência do anão se sobressaiu. Com um movimento rápido de mãos ele criou uma barreira de pedra colossal entre nós, ao mesmo tempo que usava a barreira para me atacar. O bloco de pedra, com dezenas de metros de largura e espessura foi arremessado contra meu peito no momento preciso, bem quando eu estava no contrapé de meu avanço, não sendo possível que eu desviasse.
Sem outra opção, ataquei o pedregulho gigantesco, no mesmo instante que ativei minha forma “segunda forma da aura protetora”. Para quem visse de longe, foi o choque entre um meteoro e uma estrela. Pedra derretida voou por toda a parte, junto de muita poeira e fedor de areia fumegante.
Continuei avançando contra o anão, que pressentiu o pior. Ele usou a base de pedra em que estava como uma plataforma flutuante, e evitou meu primeiro ataque no momento certo. Passei direto por onde antes ele estava.
Com minha aura ainda brilhando muito, olhei para cima. O anão usava toneladas de pedras pequenas como uma escudo giratório ao redor de si. As pedras orbitam sua plataforma num enxame consistente e bem organizado. Uma centena de magos normais não conseguiriam ultrapassar esta defesa. Ainda bem que eu valia mais que uma centena de magos.
Peguei um pedregulho do tamanho da minha cabeça que estava no chão. O esquentei um pouco com a minha aura, para deixá-lo em um estado entre o derretido e o sólido.
— Sugiro que desvie.
Falei bem alto para Ven’e ouvir. Minha voz nessa forma sai como um eco vibrante. Eu sei que botava medo em quem estivesse vendo. Intimidação é algo bem útil numa luta.
Entendendo meu plano, Ven’e tentou se afastar com sua plataforma flutuante de pedra, mas percebi que as manobras como essa era muito lenta. Lenta para mim. Arremessei a pedra contra a plataforma do escolhido dos anões. O enxame de pedras rotacionando não fizeram mais do que desviar alguns centímetros da trajetória da pedra fumegante que arremessei.
Toda a plataforma e seu controlador caíram no meio da arena. Ven’e tentou aparar sua queda com algumas outras pedras médias, mas não dei margem para que ele se recuperasse. A meio metro antes de cair no chão, quando ele estava tomando controle de seu corpo, eu apareci ao seu lado. Um soco não finalizado parou a centímetros do queixo do anão.
— Desiste?
— Você não acertou golpe algum em mim. Desistência não é uma das regras que nós estabelecemos.
Com um sorriso presunçoso no rosto, continuei meu soco lentamente, mas com minha aura desativada. Para honrar a si mesmo, já que eu poderia ter finalizado a luta antes, o anão se deixou ser acertado.
Eu venci a luta.
Os espectadores não deveriam ter conseguido ver muita coisa desse embate. Como eles estavam muito longe, falei ao meu adversário:
— Ven’e. Retorne a arena ao que era antes, por favor.
— Tudo bem, seu brutamontes.
Ele se levantou do chão, limpou suas vestes com alguns tapinhas, e fechou os olhos. Com um movimento parecido com abraçar o ar, e todas as “fatias” da arena voltaram ao seu estado anterior. O chão estava cheio de crateras e pedras saindo fumaça.
— Consegue consertar o chão também? — Perguntei.
— Sim, mas vamos dar serviço para o pessoal da organização do evento. Eu tô cansado. Eles que arrumem a bagunça… — Ele esticou as costas, que fizeram um barulho muito alto quando estralaram.
— Locutor, vai anunciar minha vitória ou vou precisar matar Ven’e para isso?
Eu olhava na direção oposta em que o anão estava. Mesmo assim, consegui perceber a raiva que ele exalava contra mim. Eu sabia que não era ódio real. Ele só estava irritado com a piadinha que fiz.
— SENHORAS E SENHORES, O VENCEDOR É ALVO, O ESCOLHIDO DOS HUMANOS!
Gritos e mais gritos ensurdecedores se sucederam.
Levantei o braço do anão, e apontei para ele, como quem dizia: “Ele também foi incrível, aplaudam ele também!”.
Entredentes, enquanto forçava um sorriso, Ven’e falou apenas para eu ouvir:
— Está mesmo querendo me humilhar tanto assim?
Cochichei também:
— Muito pelo contrário. Quero mostrar a todos que não somos inimigos. Você sabe, nós escolhidos devemos isso a nossas raças. Nem sempre lutar é a resposta.
— Muito maduro de sua parte, Alvo. Vou continuar com o teatrinho então.
O anão começou a acenar para a arquibancada e as pessoas continuaram a gritar e bater palmas. As poucas pessoas que não festejavam deviam ter perdido apostas. Não as culpo, perder uma aposta é muito doloroso para o ego e para o bolso.
Eu e Ven’e saímos da arena ainda sob aplausos. Assim que ficamos longe do campo de visão de todos, soltei o braço do anão. Meu rosto estava radiante na arena, já no corredor fechei o semblante, e me voltei para ele:
— Que tipo de idiotice foi essa? Vocês anões não tinham a mínima intenção de dar a armadura, certo? Vocês pelo menos trouxeram uma, ou era tudo para que o festival fosse mais animado que o normal?
— Calma aí, esquentadinho. Podemos ser ardilosos, mas nunca mentiríamos. O vencedor do torneio ainda ganhará a armadura… E aquele papinho de você participar por ordens do futuro rei? Era tudo mentira, né?
— Claro. Acha mesmo que o escolhido seria enviado para uma missão tão idiota? Henco nem deve onde eu estou.
— Henco? Quem é… Não importa, agora que nos mostramos ao público, a organização do torneio deve incluir alguma cláusula impedindo escolhidos de participarem em futuros festivais. Foi bom enquanto durou.
Olhei para ele com o cenho franzido. Ele parecia triste com isso.
— Por que isso te chateia?
— Digamos que os anões não dão muita liberdade ao seu escolhido. Essa foi a coisa mais emocionante que fiz em décadas. Nem durante o pequeno enfrentamento contra os pelt-beasts, de uns anos atrás, deixaram eu participar… Digamos que os anões são muito ciumentos com as suas “jóias”.
— Eu estaria feliz de não ter que lutar contra tudo o tempo todo. Tem tanto sangue nas minhas mãos que às vezes tenho vontade de vomitar.
Era estranho me abrir com alguém que eu acabei de conhecer. Ter outra pessoa numa posição parecida com a minha, com problemas parecidos com os meus, me fazia ter vontade de contar mais sobre mim. Como se a empatia pudesse aliviar o fardo das costas um do outro.
Foi a primeira vez que consegui ter uma conversa no mesmo nível com outro escolhido. Então eu estava aproveitando a oportunidade.
Percebendo que alguém estava se aproximando pelos corredores, Ven’e pigarreou e estendeu sua mão direita para mim. Então falou:
— Foi um prazer conhecê-lo, Alvo. Espero poder vê-lo novamente. Não para lutar, não quero apanhar de novo…
— O prazer foi meu, Ven’e. Assim que eu terminar alguns assuntos inacabados, prometo ir até sua terra. Gostaria de conhecer mais sobre os anões — apertei a mão do anão.
— Oras, por que não avisou antes? Será convidado de honra em minha caverna!
As pessoas que ouvimos se aproximar eram da “equipe técnica” dos anões. Todos os cinco pareciam extremamente bravos com Ven’e. O mais ancião deles começou a falar de longe, enquanto nos alcançava:
— Como se atreve a perder, Ven’e? Sua única tarefa é vencer em nome dos anões. Olha a vergonha que nos deu!
— Calminha aí, velhote — falei. — Não precisa ser tão duro com ele.
— Ninguém pediu sua opinião, Humano — a palavra “humano” saiu da boca dele como um xingamento.
— Não perca seu tempo, Alvo — Ven’e cochichou para mim. — Vamos indo, ancião Borgu. Qualquer coisa que queira me dizer, fale apenas para mim, no vestiário. Até a próxima, escolhido dos humanos.
Percebendo que Ven’e estava em uma posição delicada, decidi deixar ele lidar com isso sozinho.
— Até, Ven’e. Treine bastante. Talvez assim seja um pouco mais difícil para mim na próxima…
Ele enrubesceu por de trás da barba, e virou de costas para mim. Antes de se retirar ele deu uma risada nasal, e balançou a cabeça, como quem não acredita no que aconteceu.
— Esses humanos exibidos… — O escolhido dos anões resmungou enquanto se retirava com seus companheiros de equipe.
“Atravessar o oceano Entre-continentes para voltar para minha terra foi um dos maiores desafios de toda minha viagem. A calmaria das águas é quebrada quase sempre pelo mesmo motivo: Orcas-de-pedra. A Calamidade destas águas é, sem dúvidas, um conjunto de bestas assustadoras. Por pouco não mastigam os lados da nossa embarcação”
Passagem do livro ‘Descobertas de Mundo’, por Godur Ametis
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