Índice de Capítulo

    ALVO PRIMEIRO

    — Não… — Me afastei — Isso é errado!

    Listro me olhava sem entender.

    — Como assim, “errado”? — Sua expressão mudou três vezes em um instante. Indo de raiva para incompreensão e terminando em nojo.

    — Não estou dizendo que não gosto de você, Listro, só estou com medo de estar fazendo isso por… Por… Medo…

    — Medo? O que quer dize- É por estarmos marcados pelos deuses? É por isso que falou que gosta de mim? — Ela se afastou um passo de distância.

    — Bem… Sim… E não… Estou confuso!

    Silêncio.

    A barulheira das pessoas fora do beco tornava o silêncio de Listro doloroso.

    Continuei:

    — Me desculpe… Obviamente eu te amo, mas…

    — Mas me ama como uma amiga, ou irmã? — Seu rosto, agora inexpressivo, me deu calafrios.

    — Me desculpe… Imploro que me descu-

    O tapa que Listro me deu machucou mais que ser empalado por raízes envenenadas.

    Antes da primeira lágrima cair de seus belos olhos, minha amiga deu meia volta, e correu por entre a multidão.

    Fiz menção de segui-la, mas ela estava muito machucada para falar comigo no momento.

    — IDIOTA! — Gritei comigo mesmo.

    Chutei uma caixa de madeira e o barulho fez com que todos ali perto olhassem para o beco escuro no qual eu ainda me encontrava. Felizmente ninguém conseguia me ver.

    Sentei no chão, apoiando minhas costas na parede de uma das casas que formavam o beco. Eu não sabia se me xingava, se esmurrava algo ou se chorava… Sim, chorar pareceu uma saída aceitável.

    Eu não compreendia o que estava sentindo… Era tudo muito novo para mim.

    Sempre gostei de Listro, mas como uma irmã. Talvez o medo de uma morte prematura tenha acendido algo em mim, ou fez com que meus sentimentos ficassem ainda mais bagunçados do que sempre foram.

    Seja qual fosse a resposta, só pensei em como as coisas entre mim e Listro seriam problemáticas daqui para frente.

    — Em minha defesa, apenas falei que gostava dela, não forcei ela a me beijar… — Falei em voz alta para mim mesmo.

    — Ainda bem que não sou você!

    A voz de Tobin me assustou, falando da entrada do beco.

    — Como me achou aqui?

    — Sei que vai parecer estranho, mas senti que estava aqui… Não sei explicar como.

    — Será que… Faz sentido, já que seu pai também tinha essa habilidade.

    — Hm?

    — Você sente algum formigamento estranho na pele, como se uma brisa estivesse sempre te tocando, mesmo em locais sem vento?

    — Sim… Comecei a sentir isso há alguns dias…

    — Você é capaz de sentir mana, garoto!

    Os olhos dele brilhavam.

    — É verdade, meu pai tinha esta habilidade. Via ele tão pouco que até me esqueci disso… — Ele se sentou ao meu lado. — Mas vamos deixar isso de lado por enquanto. O que aconteceu com você, Valen? Por quê está chorando?

    A pergunta me desarmou completamente. Eu nem percebi que meus olhos estavam cheios de lágrimas. Passei a mão no meu rosto e a umidade me espantou.

    — Não foi nada, garoto. Coisa de gente grande…

    — Gente grande fica acuada em becos escuros, chorando que nem criança?

    — Às vezes ficamos… — Funguei, limpei as lágrimas do rosto e me levantei — Venha, preciso de uma bebida.

    — Não me trate como criança, Alvo — ele acertou meu nome dessa vez. — Somos amigos, não? O que houve? — Ele continuou sentado no chão.

    — Sim, mas você é uma criança!

    — Estou pouco me importando. Me conte o que aconteceu!

    Olhei para o menino, tão pequeno e frágil, mas tão focado em me ajudar que deu pena. Não só dele, mas de mim também…

    Me sentei ao seu lado e falei:

    — Eu estraguei tudo com Listro.

    — O que você fez?

    — Tornei as coisas mais estranhas do que já eram…

    — Seja mais específico. Não sou adivinho.

    Levantei uma das sobrancelhas e olhei para ele. O garoto sustentou meu olhar e cedi.

    — Falei algo para ela que a machucou.

    — Novamente, mais específico…

    Suspirei e continuei.

    — Disse que gostava dela. Então ela me beijou, me afastei do beijo, ela me deu um tapa e fiquei aqui me sentindo um lixo. Essa é a versão resumida… — Por mais que Tobin fosse apenas uma criança, eu precisava me expor e falar com alguém sobre o assunto. Facilitou clarear a mente.

    — Uhhh, que situação tensa… Ainda bem, mesmo, que não sou você.

    — Espere um pouco… Por um acaso você estava ouvindo quando Listro e eu estávamos aqui? Você falou a mesma coisa quando chegou aqui, como se soubesse exatamente o que aconteceu…

    O garoto não conseguiu manter o teatro.

    — Talvez eu tenha visto vocês correndo pela multidão e os tenha seguido…

    — Então você não sente mana?

    — Ah, isso acho que sinto sim… Foi assim que encontrei a exata posição de vocês dois. Listro e você são ótimos em fugir, hein…

    — Que animador, além de tudo uma criança viu meu fracasso… Que final de dia perfeito!

    — Não se preocupe com isso, Valen. Ela não vai deixar de gostar de você por isso. Pelo menos eu acho que não.

    — Nossa, que animador… Achismos.

    Tobin deu uma gargalhada.

    Agora que parei para pensar, esta cena é muito parecida com o momento em que eu e Tobin conversamos na caverna, depois que fui salvo por ele e Mizinho. Conversávamos como iguais.

    — Mas isso não importa agora. Não tem motivo para continuar se martirizando assim. Como as pessoas dizem por aí mesmo? “A fila anda”?

    Com a fala do garoto, tive uma pequena epifania.

    — Você acha que não percebi suas reações quando Listro interage com você, Tobin? No fundo está feliz que ela está brava comigo, não é?

    — E-e-expressões? Não sei d-do que está falando — gaguejar entregou o menino.

    — Bem, talvez daqui uns dez anos você tenha alguma chance com ela, isso se vivermos até lá…

    Ele engoliu em seco. Provavelmente havia esquecido da conversa que tivemos com os anões mais cedo.

    — Eu sei que não tenho chance, mas é que ela é tão graciosa, e bonita… Ela não perde para nenhuma elfa.

    — Realmente…

    — Mesmo concordando comigo, ainda assim você recusou o beijo dela?

    — Não é tão simples assim…

    — Então me explique!

    O garoto começou a aumentar o volume de sua voz.

    — Como eu posso te explicar algo que nem mesmo eu entendo, Tobin? Nunca estive em uma relação fixa com ninguém.

    — Você está me irritando, Valen!

    — É, pois é…

    — Já sei. Que tal descobrir se você ama ela como “família” ou como um “algo a mais”?

    Tentei absorver a fala do menino, mas não entendi muito bem.

    — Hã?

    — Vamos fazer um simples exercício mental. O que sente quando a vê?

    — Que diacho de pergunta é essa?

    — Não estou brincando. Quando a vê, pensa que tudo é mais colorido por causa dela, ou apenas se sente seguro?

    Olhei para o rosto animado do menino. Refleti um pouco antes de continuar:

    — Sinto algo mais próximo à segurança e conforto. Como se a presença dela me trouxesse paz…

    — Não sente vontade que ela te abrace e que ela cuide de você?

    — Essas perguntas são muito específicas, garoto… E não, não sinto isso que você, claramente, sente por ela.

    — É, ao que parece, “a fila andou” para Listro.


    Já estava bem escuro quando eu e Tobin voltamos à estalagem. Quando entramos no recinto, Listro estava sentada no bar, fazendo algo que nunca a vi fazendo: bebendo!

    — Li, pensei que não bebia. Tem um pouco para mim?

    Ela se virou para mim quando me aproximei, me olhou de cima a baixo, e disse para uma garota sentada perto dela:

    — Olha só, quem deu as caras… Foi por este boboca que inventei de me apaixonar, sabia, Cecena? Mas, como já te contei, vou esquecer isso. Ele não tem culpa se eu sou uma idiota!

    A garota não me era estranha, mas quando ouvi seu nome, os pontos ligaram em minha mente. Cecena era a finalista do “Combate desarmado com mana”, assim como eu. Lutaríamos na próxima manhã.

    Cecena tinha um cabelo longo e bem escuro, preso num rabo de cavalo. Sua pele era cor de areia de praia, como a de Listro. Seu corpo era bem definido e musculoso, como uma combatente experiente.

    Ela, seguindo a fala de Listro, também me olhou com desdém e disse:

    — Não fique assim, amiga. Homens são idiotas mesmo, não é uma particularidade dele… Prazer em te conhecer, Alvo. Tudo pronto para me derrotar amanhã?

    — Olá, Cecena… É… Sobre isso, desejo boa sorte. Que vença o melhor!

    — Não seja condescendente, Alvo. Eu sei que você é um poço de arrogância. Não finja ser algo que não é — Listro, claramente embriagada, não me poupava.

    Não respondi.

    — Tobin, pode subir e ficar no quarto por enquanto?

    — Não, o garoto fica! — Listro interveio. — Ele é o único homem que, ainda, suporto!

    O garoto me olhou, pois, claramente, não queria fazer parte daquilo. Ver Listro neste estado era deprimente.

    — Tobin, por favor, suba. Cecena, se puder me dar licença, preciso falar com minha amiga. Nos dá um segundo?

    Listro fez menção em querer reclamar, mas Cecena a silenciou, levantando a mão na altura de seu rosto.

    — Fale com ele, amiga. Claramente existe algo não resolvido entre vocês. Eu levo isso — quando se levantou, Cecena pegou a garrafa da bebida que compartilhavam e se afastou.

    Agora, mais de perto, percebi como Cecena era alta. Apenas três dedos mais baixa que eu. Dava para sentir com minhas habilidades que ela não era uma maga fraca. Não chegou às finais do torneio por sorte.

    Sentei ao lado de Listro, que já não me encarava. Ela fitava as garrafas expostas na parede do bar, fingindo ler rótulos, ou checando a poeira das prateleiras.

    — É sério… Me desculpe. Não fui claro lá no beco. Não existe ninguém em Mundo que eu goste e respeite mais do que você. Como Tobin me ajudou a entender, você é tão importante para mim quanto minhas pernas e braços — fiz uma pausa e suspirei. — Preciso de você ao meu lado, mas não sinto o mesmo que sente por mim… Me desculpe por não deixar isso claro antes, então estou deixando isso claro agora.

    — No fundo sempre soube… — Ela não parecia estar bêbada agora. Possivelmente estava fingindo quando entrei. — Então, já que não ficaremos juntos no final de tudo, posso me abrir com você? Posso contar o que me fez gostar tanto do “grande Alvo”, que às vezes é sufocante?

    — Estou ouvindo.

    Ela se endireitou na cadeira, mas ainda não me olhava nos olhos.

    — Você foi o único que não me via como um pedaço de carne. Me tratou como igual, sempre! — Ela fez uma pausa e deu uma risada forçada. — Claro, não tratava como igual quando estava vestindo a máscara de General respeitável, mas isso não vem ao caso…

    Tentei forçar uma risada. Me mantive em silêncio, deixando que ela continuasse.

    — Talvez não me cortejasse justamente por me ver como parte da sua família… Isso não importa agora. O que importa é que não estou brava com você. A culpa é minha por misturar as coisas. Por isso, me desculpe, Alvo. Vou melhorar… Um dia — wla levantou e foi em direção a onde Cecena havia se sentado. — Hoje só quero encher a cara e esquecer até do meu nome.

    Antes que ela pudesse se afastar, ainda sentado, segurei o braço de Listro e disse.

    — Vamos ter essa conversa novamente no futuro, quando minha cabeça estiver no lugar… No momento só tenho preocupações, e…

    — Não faça isso comigo, Alvo, de novo não! — Listro estava ficando irritada.

    — Fazer o quê?

    — Não me dê esperanças!

    Ela soltou meu braço com um pouco de rispidez, e continuou seu caminho até Cecena.

    — Acho que vou fazer o mesmo… — Falei baixinho antes de chamar o atendente. — Me vê aquela garrafa ali, por favor!


    Batidas na porta e despertei. Em meus braços estava uma garota que não consegui identificar à primeira vista.

    Ainda estávamos vestidos.

    — Graças ao deus azul não fiz uma burrada…

    Mais batidas.

    — Alvo, acorde! Em menos de um ciclo você tem que lutar! — A voz de Pírio estava rouca. Possivelmente ele também teve uma noite agitada.

    — Tá bom, já acordei. Me espere lá embaixo!

    Esta barulheira fez a moça que dividia a cama comigo despertar. Ela parecia um pouco desorientada, e não assustada por estar ali.

    Não consegui ver o rosto dela por conta de seus cabelos escuros, bastante bagunçados, estarem tapando parte de sua face.

    Ela bocejou, se espreguiçou e sentou na cama.

    — Obrigado pela noite, Alvo.

    A garota levantou-se e prendeu o cabelo. Quando virou para mim, levei um susto.

    — CECENA!?


    Já na arena, o público gritava todo tipo de coisa, como: “Pra quê lutar? Já sabemos quem vai vencer”, ou “Não machuque muito ela, por favor!” e também “Alvo, seu lindo!”.

    Pouca gente parecia torcer por Cecena.

    Cecena, que estava na minha frente, com olhar ameaçador, falou apenas para eu ouvir:

    — Se me deixar vencer te conto como foi nossa noite.

    — É sério, Cecena. O que fizemos? Não lembro de nada…

    O narrador deu instruções que não me importei em ouvir enquanto Cecena dizia:

    — Nossa, não fui especial a ponto de você lembrar como foi, Alvo? Por isso você faz tantas mulheres chorarem…

    Ela acertou meu ponto fraco. Eu ainda estava mal pela situação com Listro. A frase me irritou.

    — Não diga bobagens… Teremos uma luta limpa, ok? Não vou deixar você vencer por tão pouco…

    Fingindo estar completamente ultrajada, Cecena falou:

    — “Tão pouco”? Quer dizer que, para você, não valho nada? — Ela pareceu ponderar uns instantes e falou. — E se eu gritar para todo mundo que você me deflorou sem meu consentimento, o que será que pensariam do grande escolhido?

    Eu congelei.

    “Claramente não teria feito algo assim… Teria me lembrado disso, certo? Não, ela só pode estar querendo me abalar. Espero que seja isso.”, pensei.

    — Chega de gracinhas, vamos ao combate!

    — Não, o plano é bom… Se eu falar que você fez “coisas” comigo, sua imagem com a nossa raça vai pro ralo… Se você se importa com o que pensam de você, desista ou colocarei meu plano em prática agora mesmo.

    — Você não faria isso. Só precisamos de um juramento do deus azul e sua farsa cairia por terra.

    — E quem disse que eu estou mentindo? — A face de Cecena, antes, quase brincalhona, com a suposição de me acusar, se tornou uma carranca séria.

    “E se ela não estiver mentindo, e se fiz mesmo isso, nem um juramento do deus azul conseguiria me inocentar”.

    Um dos problemas do juramento é que não existe algo como um “juiz” nos céus olhando nossas ações, julgando nossos feitos para validar se estamos seguindo nossos juramentos. Nós mesmos somos nossos juízes, júris e executores.

    Se não soubermos que estamos fazendo algo que quebre um juramento, nada ocorre conosco, mas isso raramente acontece. No caso parecido como este, em que houve amnésia devido bebedeira, eu não teria como garantir que fiz algo, se não lembro que fiz.

    O narrador agradecia a plateia, dizendo como o evento foi incrível este ano, e outro tipos de informações irrelevantes para mim no momento.

    — Última chance, bonitão. Saiba que muita gente nos viu próximos na noite passada naquela taverna. Testemunhas para apoiar o meu caso eu tenho… E você, o que tem?

    Era arriscado tentar negar a acusação dela. Mesmo que um juramento do deus azul não me punisse diretamente, mostrando uma possível culpa, poderia também não me eximir de acusações.

    Os tribunais ainda existem, então o ostracismo poderia ser parte do meu futuro.

    O narrador gritou:

    — COMECEM!

    Continuei parado, pensando.

    Cecena também não se mexeu. O público vaiou.

    — Terminem logo isso para eu ir pra casa! — Uma velhota reclamou.

    — Acaba com ele, Cece! — Uma voz feminina falou. Se não estivesse irado com minha oponente, teria achado o apelido engraçado.

    Ainda parado, olhei para minha oponente, que estava com um sorriso largo no rosto.

    Ela apenas movimentou os lábios, e pude ler o que dizia: “Você não tem muito tempo!”

    Eu precisava pensar, então fiz mana fluir por meu corpo e cabeça.

    Como todas as vezes que faço isso, foi como se o tempo desacelerasse, fazendo tudo parecer mais devagar. Habilidade bem útil para usuários de mana do tipo força. Possivelmente estava vendo tudo com a metade da velocidade, mas não queria “ver” nada.

    Precisava pensar em uma saída, e logo.

    Coloquei na balança meu acordo com Ven’e e os anões anciãos, e Ujikar, o treinador/financiador da minha equipe, que receberia o prêmio principal. Isso tudo contra a possibilidade de eu ser odiado por todos de minha espécie.

    Estupros são inconcebíveis em nossa cultura, mesmo se for contra escravos ou inimigos. Não é tolerado! Eu mesmo já cauterizei virilhas de estupradores em meus tempos de vigia da cidade, no início de minha jornada nas forças de proteção.

    Lembro bem do ódio que senti dos agressores sexuais… Se todos fossem sentir a mesma coisa por mim, eu não teria lugar na nação humana.

    Isso não vale 10 mil moedas de ouro.

    Levantei o braço e gritei por cima da multidão:

    — EU DESISTO!


    “Uma benção ou uma maldição? O juramento do deus azul proporcionou paz entre nossa raça, mas a que preço? Pessoas acreditam que o mundo está mais seguro, mas sempre existe algum espertinho que consegue encontrar brechas nesta ‘benção’ e se aproveitar. Eu incluso!”

    Cadimo Sote

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