Capítulo 42 - O peso do machado
VANIR
Num período de cinquenta anos, consegui reunir outros à minha causa. Pessoas ostracizadas por sua própria raça viram em mim uma perspectiva de futuro e possibilidade de vingança.
Isso nos movia.
Todos acreditavam que eu era um humano. Por mais nojo que eu sinta deles, para mim, isso bastava. Precisava de seguidores, não me importava com suas raças, desde que fossem úteis.
Me estabeleci na parte mais ao oeste do continente Aurora, entre uma pequena cadeia de montanhas e um litoral rochoso. Lá, com a ajuda de diversos magos que controlam minérios, construímos nossa primeira base subterrânea.
A parte mais difícil de manter uma organização como esta é a falta de recursos, então foi nisso que foquei todos os meus esforços iniciais. Alimento vegetal não era um problema para nós, pois, com minhas habilidades, conseguia nutrir sementes de diversos tipos de frutas e hortaliças. Já armamentos, e outros tipos de alimentos à base de carne, para meus comandados se alimentarem, eram um problema, então precisei decidir como lidaríamos com esta situação.
De início, organizamos incursões pela nação humana, efetuando diversos tipos de saques a fazendas e reservas de armamentos. Como éramos bem organizados em nossos ataques, raramente tínhamos baixas ou feridos. Nossa precisão, quase cirúrgica, nos momentos dos saques, garantiu isso.
***************************
Após mais cinco anos, já éramos uma organização bem estabelecida, com três bases espalhadas pelo continente. Uma base perto dos humanos, a segunda perto das montanhas dos anões e outra perto da floresta dos elfos.
A hierarquia nesta organização, ainda sem nome, era muito bem definida. Cada base tinha o seu general, que tinha poder absoluto para manter a ordem entre nossos comandados.
Era improvável que alguma das raças conseguissem desmantelar nossa operação. Tudo estava centralizado em mim e eu nunca estava num lugar só.
Neste início de operações, o foco era apenas recrutamento. Queríamos o máximo de soldados para atacar o coração de cada nação, ao mesmo tempo.
Estávamos nos programando para realizar nosso primeiro ataque um ano após a criação da terceira base, perto da floresta Galho-perpétuo.
Nesses cinquenta e cinco anos que estive fora da floresta, sempre que pude, reunia livros, pergaminhos, ou qualquer objeto que pudesse me fornecer informações, tanto sobre a organização da sociedade de cada nação, como para saber mais sobre o assunto que mais queria entender: Os deuses.
Para mim sempre foi estranha a ideia de existir seres, com poderes quase ilimitados, interferindo em nossas ações. Até ser banido da floresta, nem acreditava que os deuses pudessem intervir diretamente em nossas vidas.
Aprendi isso da pior maneira…
Todos estes anos de pesquisas, acerca do tema “deuses”, me levou a algumas conclusões:
Primeira conclusão: Cada uma das cinco raças tem três deuses, totalizando Quinze deuses, mas Os Cinco ignoram o deus branco, dos elfos-de-gelo, então, na verdade, existem dezesseis deuses.
Segunda conclusão: Todos os deuses já foram pessoas em vida. Suas contribuições as suas raças lhes concedeu a “divindade” após suas mortes.
Terceira conclusão: Algumas poucas vezes, muitos anos atrás, os deuses reuniram grupos de pessoas para agir em seu favor, chamados de “Marcados pelos deuses”. Estes grupos sempre continham integrantes de diversas raças, focados num objetivo em comum. Obtive, por meio de alguns livros, informações sobre a formação de dois grupos de “Marcados”: Uma formação, há cinco mil anos atrás, e, outra formação, há cerca de mil. Ambos os grupos foram reunidos para enfrentar inimigos poderosos, que poderiam causar um grande mal para diversas raças ao mesmo tempo.
Quarta conclusão: Se eu continuasse com meus planos, que envolviam assassinar dezenas de “inocentes”, e tomar o controle das três raças que controlam este continente, era possível que uma nova formação de marcados pelos deuses viesse a me confrontar no futuro.
Mas eu precisava de mais. Estas informações não passavam de conhecimento popular. Eu precisava saber TUDO sobre os deuses. Eu não queria apenas entender sobre o assunto. Queria me tornar um deles. O Décimo sétimo deus de Mundo!
Para isso eu precisava saber mais.
Parecia que eu já sabia tudo que Aurora tinha a fornecer, então o mais óbvio seria buscar informações no continente Sáfaro. Dessa forma decidi peregrinar entre os continentes.
Adiei os planos de atacar as capitais das raças de Aurora, até retornar de minha peregrinação. As três pessoas abaixo de mim, que cuidavam de cada uma das bases, não gostaram muito da ideia de adiar os ataques, mas não tinham muita escolha, pois não podiam seguir o plano sem mim.
Atravessar o oceano e chegar em outro continente foi tarefa simples. Como eu também controlava o vento, e conseguia flutuar com esta habilidade, em menos de 4 dias já estava do outro lado do planeta.
Não sabia por onde começar, ou quanto tempo levaria, mas eu precisava começar a reunir mais informações sobre os deuses, e logo.
Mais alguns dias flutuando pelo continente Sáfaro, encontrei uma pequena cidade à beira mar, bem grande para os padrões da época. Pareciam focar na pesca, devido a quantidade de portos e barcos que lá tinham.
Quando entrei no local, as pessoas pareciam estranhar a minha presença. Mesmo todos sendo humanos, nenhum deles parecia entender como era possível outro humano estar bem vestido e limpo.
Era como se eu fosse uma joia no meio da lama.
Cada humano que eu via ali era mais feio e sujo que o outro. Contive minha expressão, para evitar demonstrar nojo de todos que eu via.
Andando pelo local, encontrei uma pequena área mais movimentada, como se fosse uma zona comercial. Ali tinham várias tendas vendendo peixes, iguarias diversas e ornamentos. Isso chamou minha atenção, mas logo ignorei todos.
Mais ou menos um ciclo andando pelo local, encontrei algo que parecia uma livraria, perto do centro da cidade.
Era isso que eu procurava!
Entrei no local, e um pequeno sino acima da minha cabeça tocou com o movimento da porta.
— Bem vindo a livraria e biblioteca do Zenon. Posso ajudá-lo a encontrar algo em específico? Gosta de aventura? Romance? Folclore? Temos também uma repleta coleção de dicionários e Atlas, ótimos para aqueles que querem saber mais sobre este mundo!
O homem tagarela que me recepcionou não aparentava ter mais de trinta verões.
— Quanto por tudo?
— Perdão?
— Quanto. Por. Tudo? — Claramente em choque, o rapaz não entendeu minha pergunta. Soltei um suspiro longo, e continuei. — Quanto pede por todos estes livros? Desde o menos útil, sobre receitas do continente, até os com mais páginas, como estes dicionários de linguagem Lizard.
— Me desculpe, senhor… Como posso te chamar?
— Va… Valen! — Não sei porque pensei no título para “Guerreiro forte e corajoso”, que os elfos concedem aos seus mais poderosos guerreiros. Por enquanto, servirá.
— Então, senhor Valen, eu levaria meses para catalogar e precificar cada livro. E como o senhor faria para transportar tantos exemplares-
— Deixe que eu lido com isso. Me dê seu preço, e seja breve!
— Bem, usando como base o investimento inicial de cento e cinquenta moedas de ouro para comprar este local, mais uma peça de ouro, em média, por livro, e tendo em torno de quinhentos livros, não conseguiria pedir menos que setecentas peças de ouro por tudo.
Arremessei um saco, bem pesado para o humano. Ele mal conseguiu segurar.
— Aí tem mil peças de ouro. Deixe todos os livros empilhados na frente da biblioteca. Você tem um ciclo para fazer isso. Volto logo!
Eu poderia simplesmente devastar a cidade, e pegar os livros sem pagar, mas não queria atrair atenção indesejada, ainda mais sabendo do que sei sobre os deuses e os “marcados” por eles.
Dei meia volta e continuei andando pelas redondezas da cidade. Se eu achasse outro lugar parecido com aquela biblioteca, compraria tudo da mesma forma.
Infelizmente, não encontrei mais nada parecido nesta cidade.
Voltando à biblioteca, cada exemplar estava empilhado, como ordenei. Todos juntos mal enchiam um cômodo pequeno, o que seria perfeito para transportar.
Sem avisos, criei um pequeno, porém forte, redemoinho. Todos os livros se mantiveram unidos, mesmo dentro das lufadas de vento. Flutuei com os compêndios para longe da cidade.
Encontrar um lugar para me abrigar foi simples. Haviam muitas formações rochosas na área, então apenas me instalei em uma pequena caverna, longe das vistas de todos. Era bem espaçoso, então decidi usar aquele local para guardar todos os livros que coletasse neste continente.
***************************
No início da manhã seguinte, uma sensação ruim me fez acordar no momento em que o sol nasceu. Olhei em volta e a fogueira que acendi, perto da entrada da caverna soltava, soltava pouca fumaça, com algumas brasas ainda vivas.
Levantei, olhei lá fora, e o que vi me intrigou.
Ao longe, em pasto aberto, cinco pessoas se aproximavam. Estavam a poucos quilômetros, mas dava para vê-las, bem destacadas, na paisagem.
A sensação ruim em meu peito apertou ainda mais quando vi este grupo. Pensei em fugir, mas só covardes fogem!
“E se for um grupo de ‘marcados pelos deuses’, atrás de mim?”, pensei. Estava cada vez mais paranoico com isso.
Decidi ficar, e descobrir o que aqueles cinco fariam. Não demorou muito, e já estavam a algumas dezenas de metros de mim.
Fiquei o tempo todo na entrada da caverna, apenas observando. Aflição começou a tomar conta de mim.
Mais próximos, consegui distinguir bem o grupo: Um anão, muito corpulento, e quase da minha altura, o que não fazia muito sentido. Uma humana, muito esbelta e bonita, segurando duas espadas pequenas em punho. Um Lizard pequeno, quase da altura da humana, com escamas escuras. Um elfo macho, segurando um arco com uma flecha armada, mas ainda não apontando para nenhuma direção específica. E uma pelt-beast, parecendo uma tigresa fêmea, mostrava seus dentes e garras.
Ao se aproximar a uma distância suficiente para conversar, o grupo parou diante de mim. O Anão, que estava à frente deles, falou:
— Então é você, o motivo de termos nos unido! O escolhido dos elfos, disfarçado de humano! — Ele puxou um machado enorme das suas costas e o apoiou no chão, com o lado da lâmina na altura do seu peitoral.
Congelei. Como poderiam saber disso? Nem mesmo meus subordinados sabiam dessa informação.
— Creio que seja um engano. Sou apenas um humano, viajando pelo mundo. E vocês, quem são? — Tentei parecer o mais natural possível.
— Desculpe nossa indelicadeza, é que peregrinamos a muito tempo. Termos chegado ao final de nossa jornada causa uma certa inquietação… — Dessa vez foi a bela humana quem falou. — Não precisa mais esconder quem você é. Não viemos aqui à toa. Os próprios deuses nos uniram, e foram eles quem nos disseram onde estaria… Vanir!
Minha face, quase contemplativa, tentando fingir ser apenas um humano bobinho e inocente, mudou no momento em que ela proferiu meu nome.
Então eu estava certo. Alguém como eu, com aspirações tão malignas e destrutivas, teria uma resposta à altura dos próprios deuses. Pela fala da mulher humana, este grupo está unido a bastante tempo, apenas esperando o momento certo para investir contra mim.
Este era o momento perfeito para eles, já que eu não tinha ninguém ao meu lado para me apoiar.
Assim que ela falou meu nome, os cinco tomaram posição de combate, prontos para avançar contra mim.
— Se vamos conversar com os punhos, espero que ninguém reclame se acabar machucado!
Liberei toda minha mana de uma só vez. Ordenei que cada raiz nas redondezas atacasse o grupo. A onda de plantas subia e descia da terra, como uma avalanche descontrolada.
O lizard, a humana, a pelt-beast e o elfo saltaram para o lado, com habilidades sobre-humanas. Já o Anão pegou seu machado, e com um movimento horizontal, cortou todas as raízes que lancei contra eles com apenas um movimento. O corte não foi apenas físico, uma onda de chamas saiu de seu machado, incinerando tudo o que se movia a sua frente.
Pela quantidade absurda de mana, claramente o anão era um escolhido, assim como eu.
Mas eu não podia me dar ao luxo de me preocupar com ele agora, os outros quatro rodeavam a área em chamas, todos vindo em minha direção.
Dei um salto e usei minhas habilidades elementais com vento para me distanciar o mais alto que podia.
Não fui muito longe. Uma flecha, carregada com algum tipo de mana com eletricidade, passou raspando na minha perna, eletrocutando todo meu corpo com o breve toque. Tive que usar cada fibra do meu ser para não desmaiar com o susto.
Ainda no ar, a humana me surpreendeu, ela apareceu do meu lado, controlando um redemoinho parecido com o que eu usava para flutuar. Ela mirou um golpe com uma de suas duas espadas em meu pescoço. Quase não consegui desviar.
Aproveitei a brecha para empurrá-la com uma lufada vento poderosa. Isso a desequilibrou por um momento, e fez com que ela ficasse longe o suficiente para eu pensar um pouco.
Mais uma flecha, dessa vez mirando o meu peito, me errou por pouco. Tentei identificar a posição do elfo, mas não o via em nenhum lugar abaixo de mim.
Quando me preparei para tentar fugir voando, senti algo agarrou minha perna direita. Era a pelt-beast, que havia pulado de um lugar abaixo de mim, e conseguiu me segurar.
— Não vai a lugar nenhum! Aqui será seu túmulo! — A felina falou.
Tentei chutar a mão dela com a minha outra perna, mas era impossível soltar seu aperto. Seria mais fácil arrancar minha perna… Espera, é isso!
Desci bem próximo às árvores ao meu redor e usei mana de vida para controlar os galhos e fazê-los crescer de forma desproporcional, atacando a pelt-beast que me segurava.
Quando os galhos pontudos iriam perfurar a pealt-beast, mais uma flecha, carregada com bastante eletricidade, atacou, dessa vez em direção aos galhos recém criados. Quando a flecha acertou os galhos, uma explosão de eletricidade destruiu as plantas, salvando a felina que me segurava.
“Esse elfo, desgraçado. Preciso me livrar dele primeiro!”, pensei.
Ainda com meu plano em prática, me aproximei de outra árvore, dessa vez fazendo com que um galho atacasse minha perna, e não a felina. O Galho perfurou o lado direito do meu joelho, e arrancou minha perna. Assim me livrei da pealt-beast.
Continuei voando, dessa vez por entre as árvores, dificultando a visibilidade do arqueiro élfico.
Canalizei parte da minha energia na perna faltante, e uma nova cresceu, como mágica.
Não demorou para que a humana retornasse ao meu encalço, tentei empurrá-la novamente com outra grande lufada de ar, mas ela esquivou com facilidade, e continuou avançando.
No momento em que eu desviava de um dos ataques da humana, ainda no ar, senti o lado do meu corpo mais leve, quando olhei para minha esquerda, meu braço não mais estava lá.
Evitando ficar espantado, olhei para trás e lá estava o lizard, empoleirado em uma árvore, com meu braço esquerdo na boca.
“Eles são um grupo muito bem coordenado, não posso dar espaço para eles.”, pensei.
Desci por entre as árvores e criei um casulo com raízes e troncos de árvores, com dezenas de metros de espessura. Isso me protegeria de qualquer ataque que pudessem desferir.
Estava escuro e úmido lá dentro. Aproveitei o tempo, em que estava protegido, para criar um novo braço esquerdo com minha mana.
Esperei alguns instantes e, em cinco pontos diferentes, na parte externa do casulo, senti ataques contra ele, uns mais destrutivos do que outros. Esperei até que o ritmo entre os ataques diminuísse, antes de executar meu ataque mais letal e poderoso.
Assim que imaginei que todos eles estivessem perto o suficiente, usei cada resquício de mana que eu podia controlar para atacá-los.
Toda a área próxima ao casulo, a centenas de metros de distância de mim, foi coberta por raízes, galhos e espinhos, que subiram do solo como estacas envenenadas, fortes o suficiente para arrancar membros.
Ainda dentro do casulo, caí ofegante.
Esperei o que pareceram dois ciclos para sair, pois não sabia se meu ataque havia liquidado todos eles.
Abri o casulo, e a visão ao redor era aterradora. Transformei toda a área. Não era possível ver algo além de raízes afiadas, apontando para o céu da manhã.
Vaguei por entre as plantas, ofegante. Apoiava, vez ou outra, em raízes, para evitar cair.
Um…
Dois…
Três…
Quatro…
Encontrei o corpo de quatro, dos cinco que me atacaram. Apenas o anão não estava por perto. Os mortos estavam deformados ou desmembrados, tamanha a violência do meu ataque.
Com uma pontada de satisfação, comecei a gargalhar. Nem mesmo um desafio, preparados pelos deuses, poderia me parar.
Me senti invencível, por mais acabado que estivesse.
Passados alguns instantes de risadas descontroladas, respirei fundo, pronto para partir. Quando me virei, à minha frente estava o anão, sem o braço esquerdo e lutando para ficar de pé.
— Acabou, Vanir! Não tem mais para onde fugir!
Fui pego de surpresa, mas a situação do anão me fez achar a situação cômica, então eu ri mais uma vez.
— Seus amiguinhos estão mortos. O que pensa que pode fazer contra mim?
Enquanto eu falava, fiz com que uma raiz nascesse do chão, e perfurasse as costas do anão, bem na altura do coração.
O espanto nos olhos do anão era evidente, mas eu calculei mal… A distância que ele estava de mim permitiu um último golpe.
Com um movimento rápido e bem executado, o machado do anão desceu sob meu crânio, cortando tudo desde o topo da minha cabeça, até o lado esquerdo do meu quadril.
Fui brutalmente partido em dois.
“É estranho acompanhar os passos de quem você mais admira… Mesmo ainda glorificando o que aquela pessoa representa, posso vê-la como uma ‘pessoa normal’, que sofre como um humano comum… Isso ajuda a desmistificar a figura do ‘Alvo, o escolhido dos humanos’, para ‘Alvo, o bobalhão que não sabe chegar numa garota’. Ah, não é só com mulheres que ele é ruim. Tenho uma penca de histórias engraçadas sobre ele… Pode colocar na manchete do seu jornal ‘Alvo, o escolhido bobalhão!’, moça?'”
Pírio Sote

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.