Capítulo 45 - Teatro e extorsão
LISTRO DISTAR
Com o embrulho debaixo do meu braço, andei pelas ruas movimentadas de Kelcor. A caixa metálica, que guardava a versão falsa da armadura de cristal, pesava muito pouco, mesmo contendo uma intrincada armadura, feita pelo escolhido dos anões, Ven’e.
Naquela hora da noite as ruas estavam apinhadas de gente, indo e vindo entre bares, estalagens e bancas, que vendiam itens diversos.
Andei menos de dez espaços de tempo e cheguei no local que havia combinado com Pírio. Ele estava em uma bar, num prédio ao lado da estalagem onde Cecena, e sua equipe, festejavam sua vitória.
Quando me aproximei, ele estava de costas, mas sabia quem eu era, antes de me sentar.
— Eles conseguiram fazer uma réplica da armadura?
— Sim, está aqui, embaixo deste pano — mostrei para ele o embrulho.
— Perfeito. Vamos seguir com aquele plano mesmo?
— Confie em mim. Nesse tipo de coisa eu sou boa!
Ele deu uma risada enfadonha antes de dizer:
— E em quê você não é boa?
Ele pegou o embrulho e sumiu na multidão.
O plano era simples, mas, talvez por isso, fosse tão sólido. Cecena me usou para atingir Alvo, então eu usaria isso contra ela.
Na noite anterior, quando a conheci, estava irada com o escolhido humano. Se eu fizesse ela crer que ainda estava chateada com ele, poderia me aproximar sem muitas suspeitas. O azar dela é que sou uma ótima atriz.
Entrei na estalagem onde ela e sua equipe estavam. Foi fácil encontrar sua trupe. Eles sentaram no meio do restaurante da estalagem, gritando e gargalhando alto, enquanto viravam canecas e mais canecas de cerveja quente.
Cecena, a única mulher da equipe, estava no meio disso tudo, gargalhando e se embebedando como nunca vi.
Me aproximei do grupo, com um sorriso caloroso no rosto.
— Ora, vejam só. Então esta é a equipe campeã do torneio. Parabéns pela vitória, camarada! — O calor em minha voz era tão real que quase acreditei na minha própria mentira.
— O que temos aqui. Quem é esta beldade, Cece? — Falou um dos brutamontes, companheiros de equipe do meu alvo.
— Ah, esta é a ex-namoradinha de Alvo. Aquela, que mencionei mais cedo. O que faz aqui, garota? Quer brigar comigo, por alguma mentira, que Alvo tenha contado sobre mim?
Fiz muito esforço para não me irritar com ela. Fui me sentando ao seu lado, enquanto dizia:
— Alvo? Ah, ele que vá se morder. Estou farta dele desde ontem. GARÇOM! — Gritei, e um jovem rapaz, que estava atrás da bancada do bar do restaurante, olhou em minha direção — Traga mais uma rodada para esta mesa. Por minha conta!
Todos eles gritaram de alegria. Cecena, inclusa.
— Sério? Bom saber que não voltou a lamber o chão que ele anda… O que fez você abrir os olhos? — Cecena perguntou, entre um gole e outro.
— Estou farta de ser posta de lado. Sabe quanto tempo conheço ele? Desde sempre! Ele me trata como algo conveniente, que pode usar quando quiser e depois me descarta… Mas isso acabou! O que quero fazer nesta noite é esquecer meu nome, enquanto enchemos a cara! — Facilitou o meu teatro estar realmente brava com Alvo.
Nesse momento, o garçom, e mais uma garota, trouxeram cerca de dez canecas de cerveja. Levantei da cadeira para ajudar a distribuir as canecas pela mesa. No momento em que peguei a caneca, que seria de Cecena, pelo topo, abri a palma da minha mão, soltando um punhado de um poderoso remédio em sua bebida. O remédio demoraria cerca de meio ciclo para fazer efeito, então eu precisava agir logo.
— Pessoal, quero fazer um brinde à Cecena. Que ela continue acabando com a raça de muitos idiotas por aí! — Levantei minha caneca, e todos da mesa fizeram o mesmo.
— A Cecena! — Todos disseram em uníssono.
— A mim! — Ela brincou.
Depois que todos demos grandes goles em nossas bebidas, voltei a falar com ela.
— Então, “Cece”, como é vencer um escolhido?
— Ah, você sabe, nem lutamos, mas, ainda assim, a sensação é indescritível — ela parecia mais viva do que nunca.
— E aí, o que vai fazer com a armadura. Fiquei sabendo que é um item muito poderoso.
— Ainda não tenho certeza. Talvez eu venda e compre uma fazenda perto do meu feudo, ainda não tenho certeza… Por que a pergunta? — Nesse momento ela pareceu um pouco desconfiada.
Ninguém conseguia entender muita da nossa conversa, visto que o lugar estava bem barulhento e movimentado.
— Ah, só curiosidade. Dizem que a armadura é um item equivalente a um artefato divino… Talvez vender não fosse a melhor opção.
— E o que eu faria com aquilo? Não faço parte da guarda ou algo assim. Não tenho interesse em manter aquilo.
Com isso, tentei iniciar meu plano para tirá-la dali.
— Bem, meu interesse não é no artefato de qualquer forma…
— O que quer dizer com isso? — Ela me olhou de soslaio, intrigada com minha fala.
— Ah, você sabe… Ontem tivemos uma conexão bem rápida no bar. Achei que estivéssemos na mesma página aqui!
A frase pegou ela de surpresa.
— Você está falando o que eu acho que está falando?
— Depende… Se o que você acha que estou falando é que estou dando em cima de você, então sim — falei isso bem no pé do ouvido dela.
Cecena foi pega de surpresa. Ela me encarou. Nossos rostos a menos de dez centímetros de distância, ela olhou para os meus lábios e depois nos meus olhos.
— Não brinque comigo, garota. Depois você vai acabar se arrependendo…
— Ao que parece você é quem vai se arrepender, se não me beijar agora!
Sem mais avisos, Cecena me puxou para um beijo. Foi molhado e com sabor de cerveja velha. Seria bom, se não levássemos em consideração as circunstâncias.
O pessoal da mesa deu alguns gritos animados, devido a cena que presenciaram.
Ainda atuando, retribuí o beijo, com paixão fingida, mas ela não saberia dizer se eu estava atuando… Eu beijo muito bem!
— Vamos para um lugar mais reservado. Onde fica seu quarto? — Perguntei.
— No andar de cima, segunda porta à esquerda, por que? — Cecena respondeu, ofegante. Luxúria quase pingando do seu olhar..
— Me espere lá em cima. Vou ao toalete e te encontro lá!
Dei mais um selinho em sua boca, e me dirigi ao fundo do restaurante.
Entrei no banheiro, esperei um pouco e sai, dei a volta para não ser vista pelo pessoal da equipe de Cecena e saí da estalagem.
Meu companheiro de assalto, estava lá fora, me esperando.
— Pírio, segunda janela à esquerda do prédio. Esse é o quarto dela. Fique preparado.
— Certo. E parabéns pelo beijo, muito convincente!
— Corta a brincadeira. Depois falamos disso.
Dei meia volta e entrei na estalagem. Antes de subir a escada, passei no bar do local, e deixei um punhado de moedas, para pagar as cervejas que pedi.
Ao chegar no primeiro andar, seguindo as instruções de Cecena, alcancei a porta do quarto dela. Esperei uns instantes e ouvi um baque surdo lá dentro.
— Bem na hora.
Abri a porta e lá estava Cecena, desmaiada no chão. O remédio/droga fez efeito no momento certo.
Entrei no quarto e olhei em volta. Na mesa de cabeceira estava um cubo metálico, um pouco maior que minha cabeça.
— Bingo!
Peguei a caixa e fui até a janela e a abri. Pírio estava lá embaixo, com a caixa falsificada em seus braços. Fiz um barulho para chamar sua atenção.
— Psiu. Aqui!
Ele olhou para cima, deixou a caixa falsa no chão e levantou os braços. Deixei a armadura cair em suas mãos. Logo em seguida ele pegou a caixa falsa e arremessou até mim. Ela era um pouco mais pesada que a caixa original, mas duvido que Cecena percebesse a diferença.
Peguei a segunda caixa e coloquei no mesmo lugar que a primeira estava.
Pronto. Tudo certo. A armadura era nossa, novamente.
Com bastante esforço, coloquei Cecena em sua cama. A despi um pouco, para parecer que teve algum tipo de “emoção” comigo. Peguei um pedaço de papel e escrevi:
“Querida Cecena. Obrigado pela noite magnífica. Espero encontrá-la novamente. Beijos, Listro”. Coloquei o papel apoiado embaixo da caixa da armadura falsa, tranquei o quarto por dentro, e pulei a janela.
Pírio me aguardou no beco até aquele momento, ele havia embrulhado a caixa no pano. Quando aterrissei ao seu lado, ele perguntou:
— Qual seu tipo de mana mesmo? Você parece bem mais forte do que uma pessoa normal.
— Do tipo força. Agora vamos sair logo daqui. Não quero ficar nem perto dessa vaca!
Já na estalagem, onde todos estávamos hospedados, bati na porta do quarto do Alvo. Ele abriu entrei com o embrulho embaixo dos braços. Pírio me seguiu.
— Como sempre, Listro, resolvendo seus problemas, bonitão! — Falei, brincando.
— Você é incrível, Li. Salvou o dia! — Alvo falou.
— Minha comissão são cinco mil moedas de ouro. Pagar ou pagar!
— O quê? — Ele parecia estar começando a se irritar
— Meus serviços não são baratos… E parte é do Pírio. Ele não fez muito, mas participou. Mil moedas serão dele.
— Não brinque comigo, Listro. Não agora!
Sentei numa poltrona, cruzei as pernas, e coloquei a caixa metálica no meu colo.
— Considere isso como uma “taxa por inconveniência”. Se não quiser pagar, posso vender pelo mesmo valor para o escolhido dos anões. O que me diz?
Ele respirou fundo, e esfregou os olhos fechados, com os dedos indicador e polegar, como se estivesse tentando espantar pensamentos destrutivos, direcionados a mim.
— Três mil — Ele deu uma contra oferta.
— Agora que tentou barganhar, Seis mil! — Rebati.
— Você não está me ajudando aqui, Listro!
— Tá bom, quatro mil. Última oferta!
Relutante, ele estendeu a mão, fiz o mesmo.
— Juro pelo deus azul!
Selamos o acordo com o juramento do deus azul. Assim, nenhum de nós poderia dar para trás no acordo.
Joguei a caixa metálica para Alvo
— Eu nem sabia que ia receber comissão! — Pírio ficou animado.
— Nem eu, mas consegui extorquir uma “graninha” do meu amado amigo, então não vejo motivo para você não receber uma parte também.
— Vocês sabem que ainda estou aqui, né? — Alvo protestou.
Eu e Pírio gargalhamos um pouco.
— Agora vá, entregue a armadura ao Anão e pegue meu dinheiro!
Alvo olhou para mim, irritado, mas nada fez. Embrulhou a caixa novamente e saiu do quarto.
“Meu filho já foi meu orgulho, mas ele me mostrou que, nem sempre, os pais amam seus filhos. Espero, de coração, que ele se redima, algum dia…”
Rufo Sote
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