Capítulo 46 - Armadura de cristal
ALVO PRIMEIRO
Com a armadura em mãos, fui em direção a onde os anões ficaram instalados. Eles haviam criado um pequeno morro pedregoso, onde pequenas alcovas artificiais eram usadas como quartos.
Entre este morro e a Cidade, antes ficava o coliseu do torneio Olana. A estrutura da arena foi afundada no chão, com habilidades de manipulação de minerais.
Neste “vácuo” na paisagem, ficou um caminho longo até os anões, sem nenhuma alma à vista.
Olhei para a caixa em minhas mãos e bateu a curiosidade: o quão poderosa essa armadura realmente seria?
Parei na escuridão da noite e ativei minha aura brilhante apenas nos olhos, para conseguir ver com mais clareza a caixa. A tentação foi maior que eu, e abri o invólucro.
Todo o interior era preenchido com placas metálicas, mais lisas e bem acabadas do que a armadura que Ven’e criou. O brilho do metal era hipnotizante. Toquei na armadura e ela reagiu, como se meu toque fosse um distúrbio num lago de águas paradas. Era como se as placas do metal seguissem minha mana. Como se a armadura quisesse ser usada.
Não aguentei.
Tirei a armadura de dentro da caixa metálica e ela se desdobrou e se reorganizou, ficando do tamanho do tronco do meu corpo. O formato não fugia muito de um peitoral de armadura normal. Cada segmento brilhava de forma independente, como um arco-íris metálico, com vida própria.
Tentei colocar a armadura e ela, de certa forma, me ajudou, se reorganizando para encaixar por cima do meu peito. Mesmo por cima da minha roupa, sentia o “toque” do metal, enquanto se ajustava.
À primeira vista nada havia mudado. Parecia uma cota de malha, só que com placas ao invés de pequenos anéis entrelaçados.
Olhei em volta e pensei, “como testar as defesas da armadura?”.
Vi um pedregulho perto de uma árvore e decidi fazer algo louco.
— Que deus azul me proteja.
Corri em direção ao pedregulho, e, um metro antes do impacto, coloquei meu ombro na frente do corpo, como se quisesse empurrar a pedra com meu corpo.
Armadura reagiu antes do impacto, e enrijeceu no ponto onde meu ombro iria colidir com a pedra. A rocha despedaçou, como se fosse um torrão de terra.
— Agora entendo o desespero dos anões… A armadura é incrível!
Então apareceu um problema: como tirar a armadura?
Procurei algum tipo de fecho, ou braguilha, mas não havia nada parecido. Tentei puxar para cima, como uma camiseta, mas a armadura não se moveu.
Então entrei em pânico. E se a armadura nunca saísse de mim? Eu seria enterrado com ela? Como eu faria para dormir? Ou tomar banho? Como eu a devolveria para Ven’e? E meu juramento com Listro?
A ansiedade, gerada por este fluxo de pensamentos me fez ficar sem ar por um momento, e comecei a respirar mais rápido que o normal.
Não adianta, preciso falar com quem entende como o artefato funciona. Mesmo com vergonha, por estar usando a armadura por cima da camiseta de pano, continuei em direção ao morro onde os anões estavam alojados.
Ao me aproximar, dois anões faziam guarda. Os dois me viram ao mesmo tempo. Um deles percebeu meu estado antes do outro e começou a rir.
— Alvo, né? Hehehehehe… Vou chamar o mestre Ven’e, hehehehehe.
O outro demorou um pouco mais, mas também começou a rir.
— Ha, ha, ha, muito engraçado — falei, irritado.
— De fato!
Não demorou muito e Ven’e apareceu.
— Vejo que não aguentou a curiosidade, e experimentou a armadura… — Disse em um tom zombeteiro.
— Evidentemente. Armadura muito interessante, coisa e tal… Como eu tiro esse treco?
— Ela reage a mana. Retraia sua mana que a armadura afrouxa.
Parecia óbvio e simples. Fechei os olhos e retraí minha mana o máximo que pude. A armadura continuou justa em meu corpo.
— Ven’e. Nada mudou. Ela continua grudada em mim.
— Você está fazendo errado. Retraia sua mana. Não aprendeu isso quando era uma criança?
— Eu sei retrair mana, seu barrigudo. Mas não está funcionando!
— Tente mais!
— Ta!
Mais uma vez, tentei retrair minha mana, o máximo possível. Nada mudou. A armadura nem se movia. Na verdade parecia até que estava mais apertada em mim.
— Ven’e, não brinque comigo. Preciso tirar essa armadura! Como vou viver com essa droga em mim?
O anão me olhou de cima a baixo.
— Realmente.. A armadura não quer sair. Será que ela gostou de você?
— Isso é algum tipo de piada de mal gosto? É assim que anões punem quem tenta usar seus artefatos?
— Não, nossa punição é a morte. Você só deu azar.
Suspirei. Olhei nos olhos dele e falei, o mais sério que pude:
— Tem outro jeito de tirar isso de mim?
— Tem. Em nossas montanhas temos ferramentas que podem remover a armadura. Infelizmente você teria que entrar em nosso reino, o que é inconcebível!
— Bem, é isso então. Ou eu fico com essa droga grudada em mim para sempre, ou vou com vocês até as montanhas, para darem um jeito na armadura.
— Ou podemos tirá-la do seu cadáver…
— Se não conseguiam me derrotar antes, quando eu não usava esse treco, o que te faz acreditar que, enquanto uso a armadura, vocês conseguiriam?
Ele pensou um pouco e disse:
— Não faço ideia do que fazer. Terei que consultar meus anciãos.
— Aqueles velhos bobocas, que tentavam controlar sua vida?
— Esses mesmos. Venha, vamos falar com eles.
Segui Ven’e morro adentro. Obviamente os túneis eram muito baixos para mim, então precisei andar curvado o tempo todo.
Não andamos muito, até que entramos em uma sala espaçosa, onde eu conseguia ficar com a coluna ereta. Os três anciãos estavam no recinto, fumando cachimbos, sentados em almofadas e conversando sobre minérios ou ouro… Eles acabavam ajudando a disseminar o clichê de “anões malucos por jóias”.
No momento que entrei, os três se calaram e logo começaram a atirar obscenidades em nossa direção.
— Ven’e, quem te deu autorização para este brutamontes aqui? — Falou nosso velho e querido Borgu.
— Ultraje! Humano, se retire daqui imediatamente! — Tatin’u rosnou.
O outro, que me recordo se chamar Galagar, só esbravejava, como só um velhote sabe fazer.
— Senhores, olhem para o que ele está vestindo, antes de continuarem… — Ven’e pediu.
Eles perceberam, sob a luz fraca, que a lareira projetava, a armadura de cristal em mim.
— O que significa isso? É um motim? — Borgu perguntou.
— Antes fosse… — Os velhotes não gostaram muito da fala de Ven’e, devido suas expressões. — Alvo colocou a armadura para brincar com nosso artefato, e agora ela não sai, de jeito algum.
— Não foi bem isso que aconteceu… — Tentei protestar.
— Calado, humano. O que tinha na cabeça, usando um artefato anão? — Tatin’u cobrou.
— Isso não importa agora. Preciso tirar essa droga de mim. Ven’e disse que existe uma opção, nas suas montanhas.
— Infelizmente é verdade, e nem tentem mentir para ele… — Ven’e interveio, antes que eles tentassem brigar comigo, por ter falado sem ser autorizado. Gostei de ver que ele estava menos passivo quando o assunto era se impor. Espero que isso não cause consequências para ele no futuro.
— E o que a pedra tem a ver com água? Você acha mesmo que deixaremos o escolhido dos humanos entrar em nossos túneis, ainda mais usando um dos nossos artefatos mais poderosos? — Galagar interveio.
— Não temos escolha. Ou fazemos isso, ou a armadura fica com ele até sua morte. Não quero deixar este brutamontes ainda mais forte do que ele já é!
Os velhos se detiveram, e se entreolharam.
Eu não podia julgá-los. Eles apenas queriam proteger sua casa. Como eu poderia ficar bravo com eles por causa disso?
— Como vamos saber que ele não está usando esta oportunidade para nos destruir por dentro? — Borgu atirou.
Pensei um pouco e falei:
— Sabem como funciona o juramento do deus azul?
Eles permaneceram em silêncio.
— Posso trazer um humano aqui, e jurar com ele que não farei mal a vocês, enquanto prometerem minha segurança e que vão tirar esse “treco” de mim.
— Tentador… — Tatin’u disse — Acho razoável.
— Ah, tenho mais uma condição. Quero conhecer a calamidade da montanha.
Voltei sozinho à estalagem, onde meus amigos me aguardavam.
Entrando no meu quarto, Mendir, Pírio, Tobin e Listro estavam conversando sobre o “assalto” que Listro protagonizou.
— …então ela deu um beijão na Cecena. Cara, até eu cairia nessa se fosse ela — Pírio brincou.
Listro deu um soco bem forte no braço dele.
— Ah, olá Alvo. Como foi com os anões… Você está usando a armadura? — Tobin perguntou.
— Longa história, depois explico melhor. O que posso adiantar é que ela não sai. Precisarei seguir até as montanhas dos anões, para retirá-la. Parto amanhã, no primeiro raio de sol.
Todos se entreolharam. Mendir caçoou:
— Você vestiu ela antes de entregar e ela não saiu, né?
Não respondi.
Os quatro começaram a gargalhar. Pírio, que estava sentado na minha cama, começou a rolar nela. Nem mesmo Listro segurou as risadas.
Devo admitir que a cena era mesmo cômica. A armadura era justa em meu corpo, o que contrastava com os panos da minha camiseta saindo por baixo dela.
Decidi rasgar a camiseta e puxar seus pedaços pelas aberturas da armadura. Alguns pedaços de pano permaneceram entre minha pele e o metal. O toque do artefato não era tão gelado quanto imaginei, então não seria de todo mal usá-la por um tempo.
Os meus amigos ainda estavam se recuperando da sessão de risos, então fui até uma das gavetas onde mantinha minhas roupas, peguei a camiseta mais larga que encontrei, e coloquei por cima da armadura.
— Bem, pelo menos não fica tão evidente que está usando proteção por baixo da roupa. Ainda dá para ver um pouco da “gola” da armadura, se é que podemos chamar assim… — Listro comentou.
— É o melhor que conseguirei por agora — respirei fundo antes de continuar. — Como ainda estamos unidos por aquela maluquice que chamam de “marcados pelos deuses”, acho interessante todos virem comigo. Até mesmo você, Pírio. Por mais que não esteja marcado, você não sai de perto de mim, ouviu?
— Não tenho muita escolha… — Ele suspirou. Havia empregado um tom de irritação na voz, que decidi ignorar.
— Fiz um acordo com os baixinhos. Em troca de devolver a armadura, eles também vão deixar eu conhecer a calamidade da montanha. Como nos disseram antes, que esta calamidade sabe sobre os antigos grupos de marcados pelos deuses, teremos mais informações sobre o assunto.
Tobin parecia ter visto um fantasma.
— Mas alvo, eu, entrar nas montanhas dos anões… Me matariam antes de chegar perto.
— Deixa que eu lido com isso, garoto. Apenas confie em mim.
— Ah, que seja. Não tenho nada melhor para fazer mesmo — Mendir comentou.
— E você, Listro, vem conosco? Você faz parte disso tanto quanto eu…
Ela parecia pensativa. Talvez, por sua real missão ser me levar de volta para Porto-Norte, ela estivesse hesitante.
— Não temos escolha. Estamos ligados por este “pacto divino”.
— Ótimo. Durmam logo. Partiremos junto com o raiar do sol.
Assim, todos se retiraram do meu quarto.
Durante a noite tive um segundo sonho estranho, como aquele, todo azul, de uns dias atrás.
No sonho da vez não haviam conceitos abstratos misturados a cor azul. Eu apenas ficava de olhos fechados, enquanto ouvia essa voz retumbante e inquisitiva, que não identifiquei ser masculina ou feminina. Ela dizia:
“Siga os anões!”
— Quem está falando?
“Siga os anões!”
— Não sei se percebeu, mas eu já faria isso…
“Siga os anões!”
Percebendo que não levaria a lugar algum, tentar conversar com a voz, decidi apenas concordar.
— Tudo bem. Seguirei os anões.
A voz se calou e o sonho acabou.
Na manhã seguinte, nos apressamos para quitar nossa estadia na hospedaria, pegar nossa carroça, e seguir até onde Ven’e e sua trupe nos esperavam.
O sol mal clareava o céu, quando chegamos ao morro dos anões.
Um punhados de baixinho estava organizado em quatro carroças largas e robustas, feitas de algum tipo de metal maleável e brilhante. Eram puxadas por antílopes enormes, com galhadas abundantes em suas cabeças.
Ven’e estava em pé ao lado de uma das carruagens gigantes de braços cruzados, enquanto aguardava meu grupo. Ele não parecia muito feliz, então brinquei:
— Bom dia, Ven’e. Vejo que está de bom humor.
— Corte a baboseira, Alvo. Está atrasado!
— Eu me desculparia, mas não me importo o suficiente… Vamos então?
— Hmph. Acha que conseguirão nos acompanhar, nessa carroça, caindo aos pedaços?
Realmente, a comparação entre minha carroça velha, em que eu e meus amigos estavam, com as incríveis carroças dos anões, era injusta.
— Não temos muita escolha, não é mesmo? — Pírio comentou sarcasticamente.
Ven’e suspirou, e deu um assovio, olhando para uma das carruagens dos anões.
— Vamos precisar de uma melhoria nessa carroça. Me ajudem.
Seis anões desceram, com certa dificuldade, de seu meio de transporte. Eles prontamente ficaram espalhados ao redor da minha carroça, e começaram a trabalhar. Um deles removeu a nossa roda esquerda, enquanto outro martelava na parte da frente. Tudo aconteceu tão rápido que nem consegui entender. Meus amigos pareciam tão maravilhados quanto eu.
— Enquanto isso, Alvo. É sua vez de cumprir sua parte do acordo. Faça um juramento com um de seus amigos, garantindo que não machucará nenhum anão em sua viagem, e que entregará a armadura de bom grado, assim que a removê-la — Ven’e me cobrou.
— Claro. Listro, pode me emprestar seu braço?
— Vamos lá!
— Juro que não vou machucar nenhum anão nesta viagem, para retirar a armadura. Claro, isso se nenhum deles fizer alguma gracinha conosco… — Ven’e fez uma cara de desgosto, mas entendeu o que eu disse. — Juro também devolver a armadura assim que receber meu pagamento em ouro, prometido por Ven’e e após termos uma audiência com a calamidade que os anões escondem — eram diversas cláusulas neste contrato mental, mas todas sabíamos da importância de cada uma delas.
— Juro cobrar Alvo por estes seus juramentos, para mantê-lo na linha — Listro complementou com um juramento genérico, só para tornar tudo oficial.
Em uníssono, falamos:
— Juro pelo deus azul!
Olhei para o anão, após cumprir minha parte no acordo.
— É só isso? Já está feito? — Ele perguntou.
— Sim, está feito. Estou preso a um juramento até voltar desta viagem. Mas não entenda errado. Esse é o tipo de coisa que humanos evitam fazer, pois ficamos muito expostos… Tenha ciência de que estou fazendo isso por desespero. Essa armadura precisa sair logo de mim!
— Compreendo — ele olhou para seus companheiros, que mexiam em minha carroça. — Pessoal, andem logo. Sei que estão fazendo isso de mal gosto. Já vi vocês consertarem um sistema de polias e engrenagens em pleno funcionamento… Quanto antes terminarem, mais cedo voltamos para casa!
Eles se entreolharam, e voltaram a mexer na nossa carroça, obviamente com mais agilidade que antes.
Aparentemente fizeram a troca de peças velhas por metais mais resistentes. Minha carroça parecia nova. As rodas eram maiores e mais robustas. Até um sistema de suspensão, usando molas, foi implementado.
— Não demorou nada… Vocês são incríveis! Obrigado — falei.
Se não me engano dois deles ficaram com o rosto avermelhado com o meu elogio. Não dava para saber muito bem, pois todos tinham barbas volumosas.
— Esta carroça é mais eficiente, seus dois cavalos devem conseguir cavalgar com o dobro da velocidade. Tente nos acompanhar.
Ven’e e seus seis companheiros subiram em suas próprias carroças e logo seguiram em frente. A velocidade era espantosa, mas minha égua e o outro alazão não ficaram para trás. Tobin conduzia, e fazia com que nosso veículo seguisse em uma velocidade espantosa.
— Uau, a melhoria que os anões fizeram foi incrível. Acho que conseguimos acompanhá-los assim! — O jovem elfo comentou.
Viajar, com anões à frente, era muito fácil. Eles ajustavam o terreno com suas habilidades de controle de minérios, sempre que algum tipo de buraco ou desvio aparecia. Seguimos quase exclusivamente em linha reta.
Alguns ciclos depois, a carroça de Ven’e perdeu velocidade e emparelhou com a minha. Ele quem conduzia o veículo.
— Alvo, fico feliz que estão conseguindo nos acompanhar até aqui, mas seus cavalos não vão aguentar tanto quanto nossos antílopes. Vamos parar em uma hora, para que seus animais possam se alimentar e descansar. Depois continuamos até o anoitecer, tudo bem? — Ele quase gritava por cima do barulho do trote apressado dos animais.
— Beleza! E o que é “uma hora”?
Ele fez um expressão que parecia querer me xingar por eu ser apenas um humano burro.
— Equivale a um ciclo… Vocês humanos, e suas medições de tempo antiquadas…
Ele fez um movimento de cima para baixo com suas rédeas, e os dois antílopes, que puxavam sua grande carroça, aumentaram a velocidade.
Mendir, Listro, Pírio e eu estávamos na parte de trás da carroça, aproveitando a viagem que passava depressa ao nosso redor. A vegetação parecia menos densa nessa parte do continente. Senti uma brisa fria em minha pele e me lembrei de algo.
— É verdade, as montanhas dos anões ficam na parte mais fria do continente. Acho que não tenho agasalho para isso.
— Eu até tenho, mas não vai ser tão útil se for um local coberto por neve — Listro comentou.
— Espero que dentro das montanhas não seja tão frio — Mendir falou pela primeira vez em ciclos.
Pouco tempo depois, fizemos a pausa programada com nosso amigo anão, ao lado de um rio. Deixamos nossos cavalos se hidratarem e se alimentarem com o pasto ralo do local.
Fui até a comitiva dos anões, fazer perguntas sobre nossa viagem a Ven’e.
— Então, falta muito para chegarmos?
Ele estava sentado em uma pedra. Seus seis companheiros formavam um círculo ao seu redor, conversando sobre o clima ou sobre as pedras daquele local. Eles se calaram quando me aproximei.
— Pelo menos mais dois dias de viagem. Acha que dão conta?
— A viagem em si acho que conseguimos aguentar, meu medo é o frio. Não estamos preparados.
Ven’e olhou em volta, e percebeu o óbvio. Meu grupo nunca esteve ali, e não aguentaria uma mudança de temperatura muito brusca.
— Tou, pegue algumas peles de ovelha, que temos em nossa carroça, e empreste ao grupo do Alvo. Precisamos deles vivos para chegarmos até nosso destino, não é mesmo?
O Jovem anão, chamado Tou, subiu agilmente em seu veículo, vasculhou o fundo de um baú, e arremessou cinco cobertas de lã. Seriam perfeitas para meu grupo aguentar o restante da viagem.
— Fico extremamente agradecido, garoto de nome Tou. Se quiser te dou um autógrafo, o que me diz? — Brinquei com ele. O rapaz pareceu um pouco desconcertado.
— Deixe o rapaz em paz, Alvo. E Tou, se recomponha. Lembre que ele é apenas um humano.
O rapaz se empertigou antes de descer da carroça.
— Claro, mestre Ven’e. Mil perdões.
— Não seja tão duro, Ven’e. Só estou brincando com ele. Fiquei realmente agradecido. Obrigado aos dois!
Dei meia volta e levei as cobertas até minha carroça.
Menos de um ciclo depois, já estávamos de volta na estrada.
A cada ciclo, em que continuamos seguindo em direção ao norte do continente Aurora, mais frio ficava. Após um dia de viagem, já não era possível ficar na carroça sem estarmos debaixo das cobertas de lã.
O vento batia em nosso rosto cortante feito navalhas afiadas. Os rostos de todos estavam mais vermelhos. O nariz de Pírio escorria um pouco, então ele fungava. Mendir não pareceu se importar. Na verdade, ele parecia estar gostando da viagem.
Listro ficou sempre ao meu lado. Por mais que cada um tivesse sua própria coberta, ela se aninhava em mim. Não vou dizer eu que não gostava daquilo. Seu calor deixava o frio menos maçante.
Já Tobin era o mais afetado pelo frio, por estar à frente do grupo, mas era o que menos reclamava. Espantosamente ele tinha uma resistência ao frio maior que a nossa. Para não ficar muito pesado para ele, a tarefa de guiar nossa égua, eu e Tobin trocávamos de lugar de tempos em tempos.
Antes do segundo anoitecer de nossa viagem, era minha vez de conduzir a carroça. Listro resolveu sentar-se ao meu lado, no banco do cocheiro.
Ficamos em silêncio por bastante tempo, mas nós sabíamos um pouco do que se passava na cabeça um do outro. “Ela me odeia por eu ter rejeitado ela no beco, aquela noite?”, eu pensava. Já ela devia pensar “O que fiz para merecer gostar logo desse palerma?”. Ta Bom, ela não devia estar pensando isso… Espero…
Ela quebrou o silêncio.
— Depois que resolvermos toda essa bagunça entre escolhidos, marcados pelos deuses e voltarmos à capital, vou me distanciar um pouco. Preciso ter uma dose menor de “Alvo” em minha vida.
Absorvi o que ela disse antes de responder.
— Tem certeza de que é isso que precisa fazer?
— Não, eu acho que se ficar longe de você, vai acabar morrendo. Mas eu preciso me afastar um pouco. Não está me fazendo bem…
Aquela frase fez meu peito doer.
— E seu eu disser que sou contra?
— Como é? — Ela parecia extremamente confusa.
— Podemos ter essa conversa depois que terminarmos essa etapa de nossa jornada? Por favor, não tome nenhuma decisão até lá. Te imploro… Quero colocar minha cabeça no lugar antes de ambos tomarmos qualquer decisão mais apressada.
Ela me olhou nos olhos e retribuí o olhar. Nenhum de nós cedeu.
— Está bem. Darei seu “tempo”. Mas não me enrole, tudo bem? Preciso ajustar os trilhos da minha vida o quanto antes.
— Agradeço por compreender.
Antes do sol se pôr, conseguimos vislumbrar uma cadeia de montanhas ao longe. Seus topos cheios de neve.
— É isso pessoal, estamos oficialmente muito longe de casa! — Pírio comentou, tremendo embaixo de sua coberta.
— É lindo! — Tobin exclamou.
— Montanhas dos anões, aqui vamos nós! — Brinquei.
O frio mordia, a estrada era longa, mas o topo nevado daquelas montanhas parecia guardar respostas demais para ignorarmos.
“Depois da minha luta com Alvo, onde fiz um diamante em meio a batalha, vários anões vieram falar comigo, para eu explicar o processo. Aparentemente esse tipo de minério não é tão raro, mas meu feito, aos olhos deles, foi incrível. Devo dizer que comecei a gostar dos baixinhos.”
Mendir Astor Terceiro
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