Índice de Capítulo

    JOUCI “NÃO-NOMEADA”

    Dormir naquela noite não foi possível. Entre sonhos dispersos e suadouros constantes, já não sabia o que era real ou não.

    Thermon estava ao meu lado, dormindo feito pedra. Não o acordei, pois não queria preocupa-lo com isso.

    De todos sonhos desconexos que tive nesta noite, apenas dois consigo me lembrar: O primeiro foi meu sonho padrão, que tenho tido desde o meio de minha viagem para resgatar Thermon. Aquele, em que estou em uma floresta linda, mas tudo explode, e eu acordo. Novamente este sonho ocorreu, aplacando minha noite.

    Já o segundo sonho, dentre os que me recordei, nunca tive, mas foi o que mais me assustou.

    Eu parecia flutuar num infinito sem cor alguma. Nem preto, nem branco. Nem claro, nem escuro. Conseguia ver meu corpo. Parecia estar à deriva no mar, mas com a água invisível ao meu redor. Tentei procurar algum ponto de referência, mas não existia nada do tipo.

    Depois do que pareceram vários ciclos, senti algo como uma presença às minhas costas. Quando me virei, parecia que uma parede de vinhas, de cor verde claro, estavam bloqueando minha visão. A parede de plantas se estendia ao infinito, como se metade daquele universo fosse tomado por essas plantas..

    Tentei me aproximar, mas eu não consegui sair do lugar.

    Foi quando uma voz, forte e majestosa, ribombou por todo o lugar:

    — Tem minha eterna gratidão, criança.

    As palavras vibravam em todo o meu ser, como se cada sílaba entrasse em minha alma.

    — Q- Quem está falando?

    A voz não teve pressa em me responder.

    — Em seu mundo me chamam de “deus verde”.

    Eu não sabia o que dizer ou como me portar. Não sabia se me prostrava ou se fazia uma reverência… Decidi apenas falar da forma mais formal que conseguia:

    — Senhor deus Verde, em que posso ser útil?

    — Você já fez o bastante. Mas, infelizmente, preciso pedir mais.

    A voz parecia triste ao dizer isso.

    — O que precisa, senhor?

    Novamente, uma pausa antes dele continuar.

    — Serei breve, pois não consigo manter comunicação por muito tempo. Vocês precisam deter Vanir, custe o que custar! Os deuses falharam em pará-lo no passado, e ele voltou, mais forte do que nunca.

    Esperei ele continuar, prestando o máximo de atenção em cada palavra.

    — Minha divindade, assim como a dos outros deuses, me concede a habilidade de vislumbrar o futuro. Mesmo sendo imagens pouco claras e nada objetivas, conseguimos entender o que está por vir. E isso é o que nos preocupa… Não conseguimos vislumbrar nada após dezoito meses no futuro. Normalmente conseguimos compreender o que acontecerá em até dez anos, mas há uma “barreira”… Algo ocorrerá. Algo que nos tornará cegos para o que está por vir.

    Era muita informação para eu absorver, mas fiz o máximo para encorajar ele a continuar.

    — Entendo, senhor. O que podemos fazer para ajudá-los a remover esta “barreira”?

    — Vanir é esta barreira. Se ele conseguir invadir o polo sul, neste dia, daqui dezoito meses, os deuses não conseguirão mais intervir.

    — Está dizendo que ele vai vencer?

    — Estou dizendo que ele pode vencer… O futuro não está escrito e pode ser mudado. Infelizmente vocês não conseguem evitar que ele inicie o ataque, mas podem se defender… Jouci, vim suplicar a você: Encontrem aliados. Vasculhem o planeta por pessoas formidáveis para ajudarem na sua batalha. Dezoito meses é o prazo limite. Os deuses contam com vocês!


    Quando acordei desse sonho, já era manhã. Tentei olhar para fora da janela do meu quarto, mas minha visão estava parcialmente obstruída por algo em meus olhos. Passei a mão e era um líquido esverdeado. Olhei com mais atenção e parecia clorofila. Tinha cheiro de planta recém cortada. Usei um pouco de água, que estava ao lado da cama, para limpar meus olhos. Não demorou muito e já conseguia ver melhor.

    Ao tentar andar pelo quarto, quase caí, devido a um enjoo repentino. Algo me dizia que tudo isso tinha a ver com o sonho, onde encontrei com o deus verde. Me apoiei na parede ao lado da janela, e coloquei a mão na testa, enquanto ofegava bastante.

    — Jou, você está bem? — Perguntou Thermon, com uma voz sonolenta. Ele sentou na cama um pouco rápido demais, preocupado comigo.

    — Não… Algo complicado aconteceu durante essa madrugada… Precisamos falar com Tala e Regi.

    Esperei até nos reunirmos com o restante do nosso grupo para contar meu sonho com o deus verde. A vertigem foi melhorando com o passar do tempo, então qualquer preocupação que o Thermon tivesse, logo acabaria.


    — …então ele pediu para recrutarmos pessoas fortes para proteger o polo sul. Temos um ano e meio para isso — terminei meu resumo, enquanto nós quatro estávamos sentados no escritório de Talamaris.

    O lugar estava exatamente como me lembrava: apinhado de papéis, espalhados em cima de bancadas ao redor do lugar. A mesa de Tala tinha ainda mais papéis.

    — Certeza que não foi apenas um pesadelo estranho? — Talamaris estava sentada em sua cadeira, de braços cruzados. Sua espada no mostruário, atrás de si.

    — Poderia ser o caso, se eu não tivesse acordado com clorofila saindo dos meus olhos… Se não me engano senti um pouco de gosto de planta na boca também.

    Regi, Thermon e Tala de entreolharam, com preocupação. O pai de Thermon falou:

    — Temos mais de um ano, pelo menos… Se um deus, que consegue ver o futuro, está dizendo que não temos outra opção para enfrentar Vanir, além de nos defender no polo sul, acho interessante acreditarmos — ele se arrumou na cadeira, limpou a garganta e continuou. — Já ouvi falar sobre acontecimentos como esse, em que deuses se comunicam conosco, mas nunca é algo tão direto como o que ocorreu com Jouci.

    — É, eu também. Lembro de histórias, sobre grupos de pessoas reunidas pelos deuses, onde se aliaram para resolver algo pelas divindades. Lembro também que todos os participantes desses grupos morriam no processo. Ao que tudo indica, os “marcados” sonham com a cor do deus que os marcou.

    — Sobre isso… — Thermon falou — Acho que fui marcado por um deus. Na noite em que dormimos no deserto, antes de sermos transportados por Krane e seus irmãos, sonhei com a cor branca. Não falei nada sobre isso, pois achei não ser importante. Agora vejo que estava enganado.

    Todos ficamos tensos. Os sinais eram claros demais para ignorarmos. Estávamos sendo marcados pelos deuses, um a um.

    — Então é isso, vamos morrer pela vontade dos deuses? Que piada de mau gosto! — Reclamei. Mal havia começado minha vida e já iria acabar. Não tem como isso ser justo!

    — O deus verde falou que os deuses não conseguem ver o futuro além daquela data, certo? Isso deve significar que podemos mudar o futuro após isso… Não é certeza que vamos morrer no processo — Thermon tentou ser positivo, mas eu não estava convencida.

    — Tá… Não vamos ficar pensando muito nisso. O que precisamos fazer agora está óbvio. Temos que encontrar mais aliados e eles estão espalhados pelo mundo. Quem podemos procurar para nos ajudar? — Tentei focar no objetivo da nossa missão, para que a ansiedade não tomasse conta de mim.

    Tala respirou fundo e massageou as têmporas. Regi fechou os olhos, pensativo. Thermon parecia irritado com o modo que eu estava lidando as coisas.

    — Jouci, tente ser mais positiva. Não sabemos o que nos aguarda. Quem garante que é uma regra, “marcados pelos deuses” morrerem? Pode ser apenas uma coincidência.

    Tentei ignorar, para não faltar com a razão. Não via problema em Thermon tentar olhar a coisa pelo lado positivo, mas eu não queria fazer isso. Não agora.

    — Tudo bem… Vamos focar no assunto do recrutamento, pode ser? Preciso pensar em outra coisa, se não vou endoidar aqui! — Eu estava visivelmente irritada.

    Thermon resolveu parar de falar.

    — O deus verde não deu nenhuma pista de quais seriam esses aliados? Se ele consegue ver o futuro, poderia ter dado uma dica — Regi tentou colocar a conversa nos trilhos.

    — Se me recordo bem, ele apenas disse “Vasculhem o planeta por pessoas formidáveis para ajudarem na sua batalha”. Quando ele diz “planeta”, ele também deve se referir ao continente Aurora, certo? Essa missão não será simples…

    — Não tem como cobrirmos o planeta todo em busca de aliados. Precisamos nos dividir? — Thermon comentou.

    — E ainda tem Lires. Não posso deixar a cidade desguarnecida. Vanir sabe que tenho a espada, ele pode querer retaliar — Talamaris parecia mais preocupada que o normal.

    — Tem razão, você não pode sair daqui. Não agora — Regi confirmou a fala de Tala.

    Enquanto o pessoal discutia questões logísticas, eu cochichava comigo mesma

    — Formidáveis… Pessoas formidáveis… Alvo! — Falei o nome do escolhido dos humanos mais alto, quase como se tivesse levado um susto. — Não… Teríamos mesmo que pedir ajuda dele?

    Thermon não pareceu gostar da ideia.

    — Alvo poupou minha vida durante nossa batalha, dizendo que não queria mais me ver na frente dele… Não deve ser uma boa ideia pedir algo a ele.

    — Mas Jouci tem um ponto. Pessoas formidáveis incluem “escolhidos”. Podemos pelo menos tentar… — Tala parecia esperançosa.

    Eu e Thermon não queríamos admitir, mas era fato: Com o auxílio de escolhidos, teríamos mais chances contra o exército de Vanir.

    Levantei da cadeira e andei pela sala de Talamaris.

    — Como faremos para alguém, tão orgulhoso como Alvo, nos ajudar? Ele não seria tão altruísta, a ponto de se arriscar por nós, seria?

    — Bem, se os deuses querem parar Vanir, coisa boa ele não vai fazer, se conseguir tomar o polo sul… Talvez seja de interesse dos humanos não deixar alguém, como nosso inimigo, vencer — Talamaris comentou.

    — Então é isso, vamos pedir ajuda do assassino de Altimanus? — Thermon não tinha uma expressão formada no rosto. Parecia que nem ele sabia o que sentir sobre isso.

    — Altimanus não foi exatamente o mocinho, se não me falha a memória. Ele mexeu com os humanos, e perdeu — Regi falou.

    — Espera, Tala, Regi, se lembram quando vimos aquele lizard, junto de Vanir e Primeiro? Parecia que ele estava reportando algo sobre um ataque aos humanos…

    Regi levantou da cadeira, quase como se tivesse tomado um susto.

    — Faísca, um dos meus “irmãos”. Sim, ele reportou que atacou a capital humana e que quase foi morto por Alvo. Também disse que passaram informações falsas, como se o ataque fosse orquestrado por Altimanus, mas não é verdade. Isso também foi culpa de Vanir… Que desgraçado! Como deixamos isso passar?

    — Lembro que estava muito irritada com você, Regi, pois descobri, naquele momento, que havia assassinado Penur, então eu não pensei em mais nada, além de querer te dar uma surra… — Tala comentou, irritada.

    — Eu também estava com tanta coisa na cabeça nesse momento, que deixei essa informação de lado. Então Vanir também é um inimigo dos humanos. Podemos usar isso para pedir ajuda — concluí.

    — E como faremos para ele acreditar nisso? — Thermon perguntou.

    — Thermon, tente ser mais positivo! — Brinquei.


    Passada uma semana, após outras reuniões com meus companheiros, decidimos que Regi, Thermon e eu iríamos até Aurora, em busca de auxílio do escolhido dos humanos.

    Infelizmente Tala não poderia ir conosco, tanto por precisar defender Lires, quanto para aguardar possíveis mensagens de Elear, Maso ou An’u.

    Nesse meio tempo, contratamos um mensageiro para entregar uma carta para nossa terra natal, no polo sul. Na carta detalhamos o ocorrido neste último mês, bem como falamos sobre os possíveis ataques de Vanir. No último parágrafo da mensagem, Thermon dizia o seguinte:

    “Sugiro que a população seja concentrada nas partes mais centrais do polo sul, facilitando assim sua proteção. Não sabemos quando retornaremos, mas, com toda certeza, chegaremos a tempo de defender nossa casa”.

    Decidimos manter nossas suspeitas sobre Tomoga, quanto às atitudes que ele possa ter tomado contra Regi, para nós. Tiraríamos esse assunto a limpo assim que voltássemos para o polo sul. Por enquanto, deixamos este assunto de lado.

    Decidimos nos despedir de Tala com um jantar. Convidamos mais duas pessoas: a assistente Pelt-beast de Tala, Ouna e o Senhor Kurisupi, nosso querido mercador de vinhos.

    O jantar foi bastante animado. Ouna não reagia muito às nossas conversas inicialmente, mas o álcool foi “libertando” suas amarras com o tempo. Perto do fim do jantar, ela estava abraçada com Kurisupi, rindo das histórias do velho mercador.

    Tala falou pouco durante a pequena festa. Diversas vezes ela se perdeu no fundo de sua taça de vinho, absorta em pensamentos.

    Quando todos já haviam comido, só restava beber. Então decidi fazer um brinde:

    — Pessoal, um minuto de sua atenção, por favor — Ouna conteve uma gargalhada, e Kurisupi se endireitou. Thermon, Regi e Tala seguraram uma taça, assim como eu. Me levantei. — Gostaria de agradecer a todos aqui presentes. A ajuda de vocês tornou possível o resgate de Thermon e a união dele com seu Pai, Regi. Por isso, quero fazer um brinde a vocês — levantei minha taça acima da cabeça. — Aos amigos mais inusitados que eu poderia imaginar!

    — A nós! — Talamaris brincou.

    Após o brinde, todos bebemos de nossas taças e voltamos a conversar.

    Menos de dois ciclos depois, nossa pequena festa teve fim. Tala e Ouna se dirigiram para a prefeitura, Kurisupi seguiu para sua casa, nos arredores de Lires e eu, Thermon e Regi nos dirigimos até a estalagem em que estávamos hospedados.

    Pela manhã iríamos nos despedir de Tala antes de seguir até o continente Aurora, mas, por agora, poderíamos aproveitar nossa última noite antes da longa viagem que estava por vir.

    Thermon e Regi gastaram cerca de um ciclo, conversando sobre tipos de animais que achavam a carne mais saborosa, ou sobre paisagens que viram em suas viagens. Decidi apenas observar. Os dois faziam bastante isso.

    Eu gostava desses momentos. Havia algo neles que fazia tudo parecer mais leve, como se o mundo lá fora pudesse esperar. Parecíamos uma família: eu, sentada ao lado de Thermon, apoiando a cabeça em seu ombro, e Regi, sentado à nossa frente, enquanto falavam animadamente sobre qualquer que fosse o assunto.

    Nesses instantes lembrava de Chandici, a mãe de Thermon. Ela não sabia de nada do que havia ocorrido aqui no continente Sáfaro. Não sabia o quanto seu filho havia se arriscado e que seu marido está vivo. Só conseguia imaginar qual seria o tamanho da felicidade dela ao descobrir isso tudo… Lembrar deste fato deixava meu coração quente de felicidade.

    Assim que os dois terminaram de conversar, Regi se despediu, e foi até seu quarto. Thermon e eu ficamos sozinhos novamente.

    Ele esperou uns instantes até garantir que Regi estava longe o suficiente do quarto, antes de começarmos a “fazer” o que sempre fazíamos de noite… Manterei os detalhes entre eu e Thermon.


    Na manhã seguinte, estávamos todos ao lado do nosso barco branco como osso de baleia: Regi, Thermon e eu, prestes a zarpar. Tala, Ouna e Kurisipi estavam no cais, se despedindo.

    Talamaris trazia sua espada na cintura. Percebi que, desde que voltamos para Lires, ela sempre estava perto da espada. Nunca se sabe quando o inimigo pode atacar. A prefeita falou:

    — Tenham uma boa viagem. Que o deus Aéreo os proteja. Ficaremos aqui, aguardando novas notícias — seus olhos estavam úmidos, enquanto ela segurava as lágrimas. — Não demorem muito, tudo bem?

    — Já estou com saudades, Tala. Por mim eu nunca mais ficaria longe de você. É quase como se fosse fosse minha… — Tentei pensar em algo que pudesse pôr em palavras o que sentia por Talamaris.

    — Como se ela fosse uma irmã de mães diferentes? — Thermon falou por mim, com um sorriso brincalhão. Era assim que ele via meu pai, Baru. Os paralelos chegavam a ser engraçados.

    — Sim… Como se fosse fosse minha irmã de outra mãe. Prometo voltar assim que conseguir!

    Tala fungou, segurando o choro, mas eu não me contive. Deixei as lágrimas rolarem, enquanto fui em direção a ela para mais um forte e longo abraço.

    — Espero ter um exército ao nosso lado na próxima vez que nos virmos. Ou isso, ou ou tudo vai por água abaixo — Thermon tentou brincar, mas todos olharam feio para ele. — Não está mais aqui quem falou.

    Entre abraços apertados, e fungadas de nariz e apertos de mão, nos despedimos do pessoal de Lires.

    Subimos em nossa embarcação e rumamos em direção oeste, sempre ladeando o continente.

    Em poucos dias estaríamos em alto mar, rumo ao litoral central do continente Aurora.


    “Superei dezenas de entraves para trazer prosperidade ao meu povo. Anos e mais anos de paz, só mostram como consegui cumprir meu dever. Infelizmente foram necessários ‘alguns’ sacrifícios para manter esta paz…”

    Altimanus Fluorescente

    Deseja apoiar o autor? Clique no link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota