Capítulo 49 - Duplicando o problema
VANIR
Não sei se o que me manteve vivo foi minha vontade inabalável ou uma piada de mal gosto do destino. Não importa. Estava vivo. Mesmo partido ao meio.
Mas eu ainda não entendia muito bem o que significava “estar vivo” naquele instante. A sensação era como ser uma criança, com memórias desconexas, sem saber como fazer a maioria das coisas. Até mesmo o conceito de falar me parecia estranho.
Pensei sobre isso enquanto ainda estava caído no chão. Não sabia muito bem como controlar o meu corpo. Pelo menos eu sabia que tinha um corpo.
Levei um tempo para reaprender a abrir os olhos. Olhar as coisas em volta era outra tarefa maçante, pois eu estava limitado a o que estava à minha frente, com o rosto colado no chão.
Meus olhos ardiam, não sabia o que significava isso. Só depois percebi: estavam secos. Eu estava muito tempo sem piscar.
Após o que pareceram eras depois, consegui aprender a mover meu corpo. Cada movimento era estranho e mecânico. Com os braços, que parecia nunca ter usado antes, me apoiei e consegui ficar sentado.
Tomando o controle do meu pescoço, olhei em volta, mas nada fazia sentido para o meu “eu” daquele momento. Eu entendia que acima havia o céu e abaixo estava o chão, mas as raízes e plantas ao meu redor não faziam sentido.
Senti algo no meio do meu corpo, algo que entendia ser dor. Olhei para baixo e não dava para ver nada de diferente, que pudesse justificar a sensação. Era muito incômodo.
Eu sentia fome.
Mas como lidar com aquilo, se nem sabia o que era fome?
Os ciclos foram pensando e aquele “eu” estava cada vez mais perdido. Até que percebi uma movimentação ao meu lado. Eu sabia que era uma pessoa como eu, pois seu corpo parecia o meu, então ele tinha que ser uma pessoa, certo?
Acompanhado dessa outra pessoa, os dias foram passando. Como bebês recém nascidos, soltos numa floresta, começamos a aprender a nos alimentar e a nos cuidar.
De início nos locomovemos como animais, apoiando as mãos no chão. Após algumas semanas, aprendemos a nos equilibrar sobre as duas pernas.
Eu e aquela outra pessoa éramos inseparáveis, como se um dependesse do outro para viver.
Evitamos sair da floresta, pois não conhecíamos o mundo fora dela.
Ficávamos perto de um rio, para nos hidratarmos. Comíamos todo tipo de fruta e peixe que conseguíamos pegar.
Assim, alguns meses se passaram.
Certo dia, em que eu e meu “amigo” fomos juntos até um espelho d’água, para nos hidratarmos, olhamos para a água ao mesmo tempo, e percebemos algo engraçado: eu e ele éramos idênticos, mas a metade de rosto de cada um era invertida, como um espelho.
A orelha direita da minha contraparte era pontuda, já a minha orelha esquerda era pontuda.
Nesse instante uma pontada de dor aconteceu em minhas têmporas, e um flash de memórias despontou em minha mente. Lembrei do momento em que, por vontade própria, cortei as pontas das minhas orelhas, mas, agora, uma delas estava inteira novamente.
A força das memórias me desnortearam, e eu desmaiei às margens do pequeno córrego.
Ao acordar, meu “amigo” havia me arrastado até um local seco, e colocou minha cabeça acima de uma pedra. Fiquei feliz por ele ter se preocupado comigo.
— Obrigado! — Falei pela primeira vez. A voz saiu rouca.
Eu e meu amigo nos espantamos. Ele não parecia entender o que eu disse. Já eu não sabia como havia lembrado como falar.
— Eu… Eu… Agora lembro como falar, mas não me recordo de nada além disso.
Minha contraparte parecia ainda mais perdida, devido aos sons que saíam de minha boca.
Meses se passaram, enquanto ensinei meu amigo a falar. Agora eu o chamava de “Gêmeo”.
Para ele era muito difícil falar, pois era um conceito que não fazia parte de seu ser.
Ele já conseguia entender frases curtas e responder com “sim” ou “não”, o que facilitava nossa interação.
Num dia muito quente, enquanto eu e minha contraparte juntávamos troncos e galhos secos para nossa fogueira, perguntei:
— Está com fome, Gêmeo?
Uma pausa na coleta de galhos e depois deliberação por parte dele, antes de responder.
— S-Sim — sua voz era falha e um pouco rouca, como se não soubesse criar sons complexos com as cordas vocais.
— Tudo bem, vamos procurar algumas frutas.
Cruzamos a floresta, indo em direção a uma árvore frondosa, que sempre usávamos quando queríamos coletar alimento. Ao nos aproximarmos, ouvimos barulhos por entre arbustos. Eu e Gêmeo nos abaixamos, tentando entender qual a fonte dos sons, com medo de ser algum tipo de animal perigoso.
Quando o som se aproximou, se pareciam com passos de pessoas. Então alguém disse:
— Aqueles cinco vieram nessa direção, sei disso! O mestre Galidon veio aqui para enfrentar um tal de Vanir… — A voz de um rapaz falou perto dali.
O nome “Vanir” me deu um calafrio na espinha, como se fosse algo que eu deveria saber.
Gêmeo, ao meu lado, enrijeceu no lugar, como se tivesse se tornado parte do tronco da árvore que usava para se esconder das pessoas que conversavam.
Assim que as pessoas se distanciaram da nossa posição, voltei a respirar mais rápido. Aquele encontro parecia algo predestinado, tamanho o impacto daquele nome em mim.
Não foi apenas eu quem se sentiu assim.
Ao olhar para Gêmeo, ele tremia bastante, ainda estático no mesmo lugar.
Tentei chamar a atenção dele, tocando em seu ombro, mas nada mudou, ele ainda estava tenso e imóvel.
Um instante depois ele falou:
— Vanir… Nós somos Vanir!
Uma nova torrente de informações invadiu minha mente e, mais uma vez, desmaiei.
Com as primeiras lembranças de Gêmeo, ele começou a falar como eu.
A floresta que nos “pariu” não tinha nome. Demos um: “Semente do Erro”. Foi ali que os deuses falharam pela primeira vez.
A partir das lembranças recuperadas por mim e Gêmeo, conseguimos montar um quebra-cabeças, que, sozinhos, seria impossível: Cada um de nós é metade de uma mesma pessoa. Alguém que era poderoso e com muitos anos de vida.
Algo no processo que nos “dividiu” mexeu com nossas memórias, e cada um de nós estava com fragmentos de informações na cabeça.
Com isso, eu e Gêmeo decidimos voltar ao local onde havíamos acordado juntos, semanas antes.
Ao chegar no emaranhado de raízes e espinhos, encontramos algo que, no momento de nosso despertar, havíamos ignorado: um corpo de um anão se decompondo. O fedor da cena era nauseante.
Tomei coragem e revirei as vestes nojentas e fétidas do corpo do anão. Até encontrar em seu corpo um pequeno diário. Me afastei assim que peguei o objeto.
Eu e Gêmeo nos afastamos antes de voltar comentar algo.
— Então foi ele que nos derrotou. Aquele anão dividiu nosso corpo em dois? — Gêmeo perguntou.
— Se nossas memórias estiverem certas, sim… Talvez este livreto tenha alguma informação sobre ele. Você se recorda como ler? Dei uma olhada nas páginas, mas os símbolos não faziam sentido para mim.
Ele pegou o diário, o folheou e logo respondeu:
— Felizmente sim, sei ler.
Depois que retornamos ao nosso acampamento improvisado, feito com folhas, galhos e pedras, Gêmeo tentou ler o máximo que pode do diário.
— O dono deste diário se chamava Galidon. Ele fala muito sobre seu dia-a-dia, e como treinava sem descanso. Ele tinha uma filha, chamada Cicalia.
Gêmeo continuou lendo antes de falar mais sobre o conteúdo.
— Ah, aqui, perto da metade, ele fala que foi marcado pelo deus vermelho, e que sua missão era caçar um escolhido, chamado Vanir… O que é um escolhido ou um “marcado”?
— Talvez sejam coisas que deveríamos saber. Parece importante.
— Sim… Por enquanto vou continuar lendo.
Passado mais um tempo, ele pareceu finalizar o conteúdo.
— Resumindo o final do diário: Galidon e mais quatro pessoas se juntaram para me matar… Digo, nos matar.
A sensação de descobrir isso foi uma das mais estranhas que me recordo. Em minha percepção, tinha menos de seis meses de vida. Porém as memórias, que eu e Gêmeo compartilhamos, diziam outra coisa.
Passamos mais alguns meses naquela floresta, tentando desvendar mais informações sobre nós mesmos. Sempre que lembramos de algo, o outro tentava preencher as lacunas com outras informações.
O processo foi bastante extenso. Muitas vezes repetitivo e tedioso.
Após um ano na floresta, conseguimos lembrar de todo nosso passado. Ambos éramos Vanir e sua cópia. Com as lembranças também retornou o ódio que sentíamos de todas as raças.
Aos poucos aprendemos a usar nossas habilidades novamente. Desde o controle do crescimento de plantas, até a manipulação das correntes de vento.
Gêmeo era mais versado em técnicas de mana do tipo vida, sendo um curandeiro e manipulador de plantas muito poderoso. Eu tinha maior controle em mana elemental de vento. Com isso era nítido que poderíamos fazer coisas grandiosas, mesmo separados.
Durante este ano, a floresta mudou drasticamente, refém da mudança de estações. Quando as folhas voltaram a crescer e as chuvas de verão traziam cheiro de vida, nós dois já não éramos mais cópias.
Éramos como ervas daninhas, prestes a macular as estruturas deste mundo. Prontos para crescer e se espalhar.
Foi nesse momento que decidimos nos separar. Cada um iria lidar com uma parte do planeta. Gêmeo iria focar seus esforços em manter o continente Aurora sob ameaça constante.
Já eu iria dar início às bases de nossa organização aqui, no continente Sáfaro.
Pouco antes de nos despedirmos pela primeira vez, eu e Gêmeo decidimos nomear nossa “facção”.
Em alusão às nossas habilidades como escolhidos, decidimos o nome: Rosa-dos-ventos.
Rosa, fazia um paralelo com nossas habilidades de controlar plantas. Já o “Vento” era literal, se referindo ao nosso controle sobre este elemento.
Como a Rosa-dos-ventos estaria espalhada pelo mundo, este nome seria perfeito.
Antes do Gêmeo partir, fizemos uma promessa: uma vez por ano, nos encontraríamos ali, na “Semente do erro”, no exato ponto em que fomos separados.
Faríamos isso tanto para ambos ficarmos a par sobre as atividades da Rosa, quanto para nos lembramos de nossa promessa: acabaríamos com todas as raças e seus deuses!
Prestes a partir, antes mesmo de usar suas habilidades elementais para voar em direção ao continente Aurora, Gêmeo falou:
— Os deuses tentaram nos matar, mas acabaram duplicando o problema.
Ele começou a flutuar e, ainda de costas para mim, proferiu:
— Vamos abalar as estruturas desse mundo, irmão! Dessa vez não estamos sozinhos!
“Senhora Henco foi um jovem prodígio. O peso de seguir os passos de seu pai a tornou madura bem mais cedo que qualquer outra criança da mesma idade. Me orgulho de ter ajudado a criá-la.”
Fragmento retirado do diário de Bomas Sertino, mordomo da família Pleno

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