Capítulo 55 - O que faz tudo valer a pena
ALVO PRIMEIRO
Seguimos um Ven’e enfurecido pelos túneis da montanha.
Atrás de nós os soldados nos escoltavam em direção a saída.
— Espere, e meu dinheiro? — Perguntei ao Escolhido, que eu acompanhava de perto.
— Droga… — Ele lembrou que ainda faltava me pagar o ouro da “devolução” da armadura de cristal.
Todos nós andávamos apressadamente. Listro emparelhou comigo e com Ven’e antes de falar:
— Lembrando que dos oito mil que Ven’e te deve, quatro são meus e do Pírio.
— É isso mesmo! — Pírio confirmou, logo atrás de mim.
— Falem baixo… — Ven’e quase cochichou. Eu e Listro nos aproximamos para ouvir melhor. — Preciso passar nos meus aposentos para pegar alguns artefatos e um pouco de ouro que tenho guardado, mas não vai ser fácil com tantos guardas às nossas costas.
— E se nocauteamos todos? Já está mal visto pelo seu povo, não é mesmo? — Pírio, que ouviu tudo, sugeriu.
Nos entreolhamos. Um sorriso maroto surgiu no meu rosto.
— Eu os contenho e vocês os desmaiam? — Ven’e me perguntou.
— Combinado! — Respondi sem demora.
Meu grupo parou.
Mendir e Tobin, que não sabiam do “plano”, estranharam nossa ação. Ambos franziram o cenho, sem entender.
— Agora! — Ven’e iniciou o “ataque”.
Havia quinze guardas atrás de nós, todos segurando espadas e machados. Ven’e controlou as pedras ao redor deles, os prendendo em casulos rochosos, deixando apenas suas cabeças expostas.
Formou-se uma espécie de corredor, com oito casulos de pedra enfileirados de um lado e sete do outro.
— Eu cuido dos da direita! — Falei para meus amigos.
— Entendido! — Pírio e Listro responderam em uníssono.
Corri até os soldados que tentavam se debater ou reclamar, mas não demos tempo para que pudessem ser ouvidos.
Acertei oito têmporas de anões, uma atrás da outra. Listro e Pírio desmaiaram os sete à minha esquerda.
Na mesma velocidade que iniciamos o plano, o finalizamos.
Mendir, entendendo o que havíamos feito, deu um longo assovio de surpresa.
— Me sigam, não temos muito tempo até encontrarem eles e virem atrás de nós! — O Escolhido anão liderou o avanço pelos túneis novamente.
Andamos pelo o que pareceu meio ciclo até chegarmos nos aposentos de Ven’e.
Assim que alcançamos a entrada, ele escancarou a porta de metal e entrou com todo o meu grupo em seu encalço.
O espaço do local era amplo e espaçoso. O teto, ironicamente, era bastante elevado, possivelmente com uns quatro metros de altura.
O local era aconchegante, cheio de almofadas e móveis baixos.
Ao fundo podíamos ver uma forja, uma fornalha e diversos instrumentos para manipular artefatos, como pinças, alicates e outras ferramentas diversas.
Não pareciam ter cômodos separados. Era como uma grande caverna, cheia de coisas que o Escolhido precisava para viver.
Dessa vez eu quem assobiei alto, ao contemplar o local.
— Se eu fosse um anão, iria adorar viver aqui! — Comentei.
— Pois é, eu adorava! — O anão respondeu em um tom rabugento.
Eu não podia culpá-lo por pensar assim. Ele havia desistido de tudo o que prezava por uma missão suicida, sem nem saber o que devemos fazer..
Havia muita fé em suas ações.
Ele revirou alguns gaveteiros, e pegou alguns artefatos.
Ele abriu um armário na parede e falou por cima do ombro:
— Algum de vocês sabe manejar espadas?
— Eu treinei esgrima por muitos anos — Mendir falou.
— Ótimo, então não foi perda de tempo ter forjado isso!
Ven’e pegou uma espada média do armário. Ela ainda estava embainhada, então não sabíamos muito sobre seu formato. A bainha tinha alguns detalhes prateados e dourados.
Ele jogou a arma para Mendir, que a segurou.
— Depois te conto mais sobre esta lâmina. Temos que sair logo.
O anão enfiou diversas roupas em uma mochila grande. Ele a colocou nas costas e nos apressou.
— Vamos embora. Se eu ficar mais um minuto aqui, vou me arrepender e posso desistir de acompanhar vocês…
Ven’e olhou em volta e suspirou. Parecia que o peso de uma montanha havia caído sob seus ombros.
Seguimos pelos túneis, andando a passos largos.
Um tempo depois, ouvimos diversos sons de passos atrás de nós. Corriam em nossa direção.
— Já estão nos perseguindo? Achei que teríamos mais tempo… — Ven’e comentou, irritado.
Começamos a correr também.
Ven’e começou a fechar os túneis atrás de nós, com a mesma facilidade que eu respirava. Controlar rochas era muito simples para ele.
— Temos ótimos magos que controlam minérios, mas não vão conseguir reabrir esse túnel antes de sairmos da montanha, isso garanto!
Guiados por Ven’e, chegamos a um dos elevadores metálicos, que nos trouxe para o subsolo da montanha.
Um anão e uma anã acabaram de descer pelo elevador. Eles empurravam uma espécie de caixa com rodas, como carros de mina, em direção ao fundo da montanha.
— Ah, olá, senhor Ven’e. Podemos ajudar em algo? — A anã, que era bem mais baixa que Ven’e, falou de forma amigável. Ela deu um sorriso fofo. Das anãs que vi até agora, ela era a mais bonita.
— Oh, Tenkz… Não preciso de nada, obrigado. Estamos com pressa, então vou apenas me despedir por enquanto — ele enrubesceu. Parecia desconcertado. A notícia que ele fora banido ainda não tinha chegado em toda a montanha.
Passamos pelos dois anões e entramos no enorme elevador.
Ven’e puxou a alavanca que controla o mecanismo, e começamos a subir.
Esperei ascendermos algumas dezenas de metros antes de brincar com o anão:
— Tenkz, né… Ficou todo vermelho quando falou com ela… Ela é alguém especial?
Ven’e não sustentou meu olhar, e focou em um dos cantos do elevador.
Listro, que estava ao meu lado, levantou as sobrancelhas.
— Não é da sua conta…
— Não seja tão duro comigo. Somos parceiros agora. Pode me falar!
Ele me dirigiu um olhar irritado, mas se rendeu:
— Eu só acho ela bonita. Nada mais.
— Tudo bem… Vou deixar esse assunto para depois. Vamos focar em fugir por enquanto.
Instantes depois o elevador chegou a base da montanha.
Saímos apressados.
Cada integrante do meu grupo levava uma bolsa de pano com seus pertences, o que não era muito prático. Pelo menos não tínhamos nada nos prendendo ali, além da minha carroça, estacionada nos limites externos daquela pequena cidade, aos pés da montanha.
Seguimos Ven’e e passamos pelo portão da entrada que levava aos elevadores. Os guardas que cuidavam do local nos olhavam de soslaio. Nos ignoraram por estarmos na presença de seu Escolhido.
Andamos sem conversar, apreensivos com possíveis retaliações dos anões de dentro da montanha. Felizmente nada de ruim aconteceu até então.
— Seus companheiros de raça vão ficar irados com você, meu amigo! — Pírio se aproximou de Ven’e e falou em um tom sério.
— Meio tarde para dizer isso, não é mesmo? Quem teve a ideia de desmaiar quinze soldados anões foi você, lembra?
— Às vezes eu falo as coisas na esperança de que ninguém vai ouvir… — Pírio brincou.
Dei uma risada contida. Ven’e olhou em minha direção e também riu.
— Não estou seguindo vocês só por conta desse “lance” de marcados. A maior parte da minha vida estive preso nessa montanha… Quero ver o mundo e usar minhas habilidades para algo útil…. A maior parte de mim está feliz com essa decisão.
— Sei que não é a mesma coisa, mas meu caso era um pouco parecido com o seu Ven’e. Deixei as Forças de proteção para “viver” um pouco, sabe? Dei tanto pela nação humana, que precisava de um pouco de tempo para mim.
Listro fez um som de “hunf”, como se estivesse irritada com a minha decisão de ter saído de Porto-Norte. Mendir fez o mesmo.
Olhei em direção a eles e falei:
— Se os dois continuarem com isso, dou um cascudo em ambos!
Tobin deu uma risada. A primeira em muitos ciclos. Muita tensão saiu de cima dele assim que nos retiramos da montanha. Embaixo da terra não era lugar para elfos…
Olhei para o garoto e fiquei contente em perceber que ele estava sendo apenas isso, “um garoto”.
Por causa dessa loucura entre raças, Escolhidos e deuses, muito peso pode acabar caindo nos ombros de Tobin, mas, por agora, ele parecia apenas um menino qualquer, aproveitando o momento conosco.
Andamos mais um pouco e chegamos onde nossa carroça estava estacionada. O frio nessa parte da cidadezinha era intenso, então já batíamos nossos queixos e abraçávamos nossos braços.
Ven’e foi a frente, pagou pelo aluguel do estábulo dos nossos cavalos, e trouxe a carroça até nós.
— Subam logo. Quero me distanciar o máximo que pudermos antes de anoitecer.
A noite chegou e com a falta do sol, o frio e a neve nos castigavam.
Montamos um pequeno acampamento perto de um riacho congelado. Nos mantemos protegidos do clima ameno dentro de uma redoma de rochas, criadas por Ven’e.
No topo da estrutura, criada pelo anão, havia um buraco, perfeito para deixar a fumaça da fogueira escapar.
Todos nos enrolamos em nossas cobertas de lã, sentados ao redor do fogo.
Ven’e era menos afetado pela temperatura negativa. Apenas a fogueira era o suficiente para mantê-lo aquecido.
Agora que já estávamos longe de tudo e todos, conseguimos parar para conversar com mais calma. Enquanto estávamos focados em nos aquecer, Mendir perguntou para Ven’e:
— Senhor, pode me falar mais sobre essa espada que me entregou? — Ele segurou a bainha com a mão esquerda, e o cabo com a mão direita. — Tentei desembainhar, mas não consegui…
— Ah, sim. Experimente aplicar mana pelo cabo.
Mendir obedeceu e conseguiu separar a lâmina de sua proteção adornada.
O fio era quase irregular, todo ondulado. O metal brilhava em tons roxo-azulados, como o céu num dia ameno. A espada tinha dois gumes e parecia tão afiada quanto uma navalha.
— É linda! — Mendir exclamou, boquiaberto.
— Seu nome é “Sombrazul”. Não tem nada de especial nela, além de sua lâmina estupidamente afiada. Não a use para defesa ou o metal pode estilhaçar. O propósito dessa espada é ataque e nada mais.
Mendir inspecionou a lateral da espada com cuidado e admiração.
— Terei isso em mente, senhor. Muito obrigado por confiar este artefato a mim!
Ven’e coçou a parte de trás da cabeça, um pouco desconcertado com os modos de Mendir.
— Não me chame de “senhor”, garoto. Só meu nome já é o suficiente. Somos todos companheiros agora, não?
— Terei isso em mente, Ven’e.
Fiquei contente com a interação dos dois. Era bom que nos déssemos bem, já que teríamos que interagir bastante daqui em diante.
— Ahem… — Listro forçou uma tosse. — Acho que deve alguma coisa para Alvo, não?
— Oh, obrigado por lembrar. — Ven’e revirou sua bolsa e puxou de lá um saco pesado e arremessou em minha direção. — Aí tem mil moedas e várias pedras preciosas. Tudo deve somar umas cinco mil moedas de ouro.
Estreitei os olhos em sua direção.
— Mas você me deve oito mil moedas…
— Bem, entreguei uma espada incrível ao seu amigo. Ela deve valer mais ou menos três mil moedas de ouro — ele olhou para Mendir e deu uma piscadela. — Não acha, garoto Mendir?
— Ah, sim. Com toda certeza — o rapaz assentiu vigorosamente.
— Então cobre três mil moedas dele, oras! — Eu estava prestes a me irritar.
— Eu não, foi um presente. Anões não cobram por presentes.
— Então por que está cobrando de mim?
— O presente não foi para você… Simples! — Ven’e cruzou os braços e fechou os olhos, como se tivesse declarado o assunto por encerrado.
— Isso não faz o menor sentido… — Bati minha mão contra a face, tamanha a raiva que sentia.
— Ahem! — Listro forçou uma tosse ainda mais forte que a primeira. — Meu pagamento, por gentileza!
Olhei em sua direção, prestes a amaldiçoar seu lado sovina, mas fiz um juramento e precisava mantê-lo.
Tirei todas as moedas de ouro e arremessei saco contendo as pedras preciosas para minha amiga. Ali continha exatamente o valor da minha dívida com ela.
— Como fui de uma proposta de cem mil moedas de ouro, pela armadura de cristal, para apenas mil moedas? Tem algo errado aqui…
Olhava o punhado de moedas em minhas mãos com uma expressão de amargura, mas não estava realmente irritado ou triste com isso. No fundo fiquei feliz por Listro e Mendir estarem contentes.
Percebi, a pouco tempo, que nem todo ouro do mundo serviria de algo se não vivêssemos o suficiente para usufruir dele no final de nossa jornada. Ter posses era a menor das minhas preocupações no momento.
Ven’e voltou a revirar sua bolsa e disse:
— Infelizmente não trouxe muita coisa útil, mas isso pode te ajudar no futuro, garoto! — O anão arremessou um bracelete dourado para Tobin.
O menino quase não conseguiu pegar o artefato, pois estava todo enrolado dentro de sua coberta de lã.
— O-obrigado senhor Ven’e. O que isso faz?
— Isso, pequeno príncipe dos orelhudos, serve para proteger contra ataques diretos utilizando magia. É de uso único, mas pode ser o suficiente para evitar a morte certa.
— Uso único? — Perguntei enquanto me aproximei do garoto, querendo olhar o artefato mais de perto.
— Significa que ele será protegido apenas por um ataque mágico poderoso, antes do bracelete perder suas propriedades.
— Uau, isso seria muito útil se cada um de nós tivéssemos um desses — Pírio comentou.
— Seria, mas não é um artefato simples de se fazer. E também não é nenhum pouco barato. Se vendêssemos esse item aos humanos, deveria valer algo perto de cinco mil moedas de ouro.
O queixo de todos caiu.
— E você está dando isso para uma criança? Ainda por cima para um elfo, que vocês anões tanto odeiam? — Perguntei.
— Apenas pare de falar, antes que eu me arrependa disso…
— É, Alvo, fica quieto! — Tobin falou, enquanto apreciava o artefato, que acabara de colocar em seu pulso esquerdo.
— O que aconteceu, que perdi o respeito de todos?
Listro olhou para cima, pensativa, antes de responder:
— Deixe-me ver… Tobin tem um artefato que vale cinco mil. Eu ficarei com três mil em pedras preciosas, pois vou dar mil em pedras a Pírio. Mendir tem uma super espada mágica e você só tem mil “moedinhas” de ouro. Você é praticamente mais pobre aqui, Alvinho!
Todos, menos eu, gargalharam. Pírio até apontava em minha direção, como quem dizia: “Olha a cara de idiota dele”.
Suspirei fundo e não aguentei. Me rendi e comecei a rir com meus amigos.
Naquele momento percebi mais um motivo pelo qual aceitei receber tão pouco pela armadura de cristal: Estar ali, rodeado pelos meus amigos, fazia tudo valer a pena.
Havia muito tempo que não me sentia tão bem.
“Quem iria adivinhar que o fim do mundo uniria nossas raças mais uma vez…”
Tobirin, Príncipe da floresta
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