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    GÊMEO

    Quatro séculos se passaram.

    Vanir, a minha outra metade, e eu nos encontramos todo ano, na “Semente do Erro”. Sempre sozinhos e cheios de informação para compartilhar.

    Discutíamos sobre os rumos de nossa organização, finanças, recrutamento e até força de subordinados.

    Fazíamos dessa forma pois assim evitávamos sermos “vistos” pelos deuses.

    Em meus séculos de estudos sobre as divindades, eu e Vanir identificamos um padrão interessante: Eles não tinham vontades próprias ou pensamentos críticos. Eram mais como conceitos, que ascenderam a divindade para manter o equilíbrio da mana no planeta.

    Isso significava que eu poderia fazer o que quisesse, desde que não perturbasse a balança da mana de Mundo.

    E o que desequilibra a mana? Em resumo, duas coisas: Muitas pessoas reunidas ou muitas mortes ocorrendo abruptamente.

    Descobri isso em livros muito antigos, que encontrei em ruínas abandonadas de uma cidade antiga do Sáfaro, cerca de duzentos anos atrás. Nestes livros eram explicados como os deuses apenas interferem quando não há mais outras formas de “correção” em questões envolvendo muitas pessoas.

    A quantidade era a chave.

    Se eu mantivesse minha interferência em números “aceitáveis”, os deuses não fariam nada comigo ou com minha organização.

    Dessa forma, eu e Vanir decidimos criar bases mais espaçadas, com no máximo quinhentos soldados presentes simultaneamente. Quanto mais espaçadas essas bases, melhor.


    A sudoeste de Aurora, continente onde eu controlava “minha” metade da Rosa-dos-ventos, segui com dez subordinados fiéis, atrás de novos recrutas para uma nova base.

    Andávamos a cavalo, por trilhas estreitas em áreas cheias de mato.

    Sabíamos que ali perto havia uma vila, controlada por ladrões e mercenários sujismundos.

    Esses tipos de pessoas, desacreditadas e sem perspectivas em seu futuro eram as que eu julgava mais fáceis de “dobrar”. Promessas de ouro, conforto e segurança eram como música em seus ouvidos. Raramente negavam minhas propostas de “recrutamento”.

    Era tentador demais para contrariar.

    Ainda montados em nossos cavalos, nos embrenhamos mais profundamente na mata. Se um de meus batedores não tivesse nos detalhado esta localização, achar este lugar seria impossível.

    Andamos, andamos e andamos.

    Muito mato, mosquitos e suor depois, começamos a ouvir pessoas atrás das árvores. Sem nos aproximar muito, paramos para observar os arredores do local. Não era muito grande, devia ter seis casas, um poço grande e dois currais, que no passado deviam abrigar porcos.

    — Mestre, tem certeza que devemos recrutar esses selvagens? Sei que sempre precisamos de gente nova em nossas bases, mas não confio em ladrões — falou Ruliter, meu mais velho subordinado. Ele tinha sessenta verões, humano, com uma voz grave e corpo bastante parrudo.

    — Não seja hipócrita, Ruliter. Quando te recrutei, você estava tentando roubar minha bolsa de ouro. Isso faz o quê, cinquenta anos?

    — Não é a mesma coisa. Eu era criança e órfão. Não sabia nada da vida. Esses caras já não são inocentes.

    O olhar de meu subordinado demonstrava nojo.

    Ainda era dia, então podíamos ver com clareza a movimentação dos habitantes daquela vila.

    Não vi mulher alguma ali. Possivelmente isso explicaria o por quê aquele lugar era tão fétido e mal cuidado. Mulher alguma aceitaria viver em condições tão deploráveis. Homens, ainda mais humanos, tendem a ser muito descuidados.

    — Veja, chefe, eles defecam no mato… Não tem nem banheiros ou fossas? Que espelunca!

    — Ruliter, fique quieto! Coordene nossos subordinados para o outro lado da vila. Caso as coisas não saiam como planejado, dou o sinal, e vocês me ajudam a lidar com eles.

    — Sim, senhor!

    Ruliter deu um sinal de mão para que meus outros nove subordinados o seguissem pelo matagal.

    Desci do meu alazão marrom e o amarrei em uma árvore próxima.

    Aguardei alguns espaços de tempo antes de ir em direção à clareira, onde parecia ser o centro da vila.

    Andei despreocupadamente, até ser avistado por um dos homens maltrapilhos. Não tinha nenhuma peça de roupa limpa em seu corpo. Devia ter menos de vinte verões.

    — Quem é você? O que pensa que está fazendo aqui?

    Ele puxou uma espada curta, de lâmina claramente cega, mas não fez menção em atacar.

    — Olá, rapaz. Quero falar com o seu líder. Tenho negócios a tratar com ele — falei enquanto levantava ambos os braços, em rendição.

    — INTRUSO! ME AJUDEM AQUI! — O rapaz gritou, chamando a atenção dos outros.

    Mais rápido do que imaginei, vinte homens, de diversas idades, me cercaram. Alguns deles tinham poucos dentes na boca, um ou outro tinha cicatrizes na face.

    Nenhum deles se aproximou mais que cinco passos de mim. O único deles, que não estava com espadas em punho, falou:

    — Oras, o que temos aqui? Roupas azuis, cheias de “frufrus”. Uma espada bonita na cintura e uma cara de desdém… É algum tipo de riquinho metido a besta?

    O homem era jovem, mas não a ponto de ser um adolescente. Devia ter menos de vinte e cinco verões. Era alto e corpulento, como se treinasse seu corpo diariamente.

    — Não sei quanto ao “metido a besta”, mas tenho uma quantidade considerável de ouro. Queria dividir um pouco com vocês… — Peguei um saco pesado na minha cintura, e arremessei para o rapaz que falava comigo.

    Ele pegou com certa dificuldade, devido ao peso. Ao abrir e checar o conteúdo, ele se espantou.

    — Puta merda! Aqui deve ter umas quinhentas peças de ouro!

    Todos os outros residentes da vila se entreolharam.

    — Quer contratar nossos serviços, riquinho? Somos mais caros que isso…

    Alguns dos ladrões riram, com olhar maléfico no rosto.

    — Esse dinheiro é apenas uma oferta de paz. Podem ficar com ele, não me importo. O que procuro aqui são novos recrutas para minha organização — todos pareciam confusos.

    — Não entendi direito. O que quer da gente?

    — Quero que me ajudem a acabar com alguns assentamentos humanos pelo continente Aurora. Claro, tudo o que conseguirem saquear, será de vocês. Basicamente continuarão sendo quem são, mas com um pouco mais de disciplina…

    Eu já não estava com as mãos para o alto, então relaxei minha postura.

    — Isso é bom demais para ser verdade, velhote. Quando a esmola é muito grande…

    — Vou treiná-los e armá-los. Vou dar comida e um lugar seguro. Apenas espero obediência!

    Nesse momento fiz com que os ventos ao redor da vila rodopiassem em minha direção. Ao mesmo tempo, controlei raízes e prendi as pernas dos vinte homens antes que pudessem perceber.

    — Me apoiem e serão recompensados. Me atrapalhem e se tornarão adubo junto com suas fezes — fiz uma pausa dramática, enquanto fitava os olhos de cada ladrão presente. — O que me dizem?

    O olhar de terror em suas faces era, de certa forma, impagável. Contive um riso.

    — Pessoal, acho que essa é uma proposta irrecusável… — O líder deles falou, com um tom de preocupação na voz.

    Dei um sorriso que não chegou aos olhos. Me preparei para soltá-los de suas prisões de raízes, quando percebi uma movimentação no céu. Não havia nuvens, então nem mesmo um pássaro passaria despercebido.

    Olhei para cima e lá estava um jovem elfo, flutuando na altura da copa das árvores, que rodeavam a vila. Seu olhar era pedante e altivo, como se fosse da realeza. Como se estar em nossa presença fosse a maior de suas provações.

    — Então é aqui que vocês se escondiam, seus desgraçados! — Ele falou, direcionando o ódio aos ladrões ao meu redor.

    Usando a água turva, em tons marrom-esverdeados, do poço da vila, o elfo flutuante criou uma parede de gelo ao nosso redor.

    — Oh, então você consegue controlar água e vento, garoto? Formidável! — Falei enquanto batia palmas, realmente impressionado com o feito do rapaz.

    Percebendo minha presença, o elfo focou sua atenção em mim pela primeira vez.

    — Quem é você? Não parece fazer parte desse bando de ladrões fedorentos…

    Ele desceu até o telhado de uma das casas, e ficou ali, nos olhando de cima.

    — Merda, ele nos encontrou! — O Líder dos ladrões soltou o saco com ouro e levantou as mãos em rendição. — Só não nos mate, por favor! — Ele implorou ao elfo recém chegado.

    — Eu cuido de vocês depois. Fiquem quietos! — O elfo ordenou, rispidamente.

    Olhei para o outro lado da vila, em direção ao mato alto. Eu sabia que meus homens estavam ali, mas não via motivos para chamá-los ainda.

    — Não é muito educado perguntar sobre uma pessoa sem se apresentar antes, não concorda? — Falei. Meu tom quase de zombaria.

    — Se estiver envolvido com esses calhordas, não merece minha educação, humano!

    Às vezes eu esquecia que fingia ser humano. Esse disfarce era bastante conveniente.

    — Bem, estava tentando recrutá-los para uns serviços escusos. Tem algo contra eles?

    — Óbvio que sim. Eles atacaram aldeias élficas, às margens de Galho-perpétuo. Demorei dias para encontrar o resto deles — o jovem cruzou os braços, em desaprovação. — Que tipo de serviço espera contratar de assassinos e ladrões, humano? Pelo visto é tão vil quanto eles!

    — Não me importo com o passado de meus subordinados, desde que me sirvam apropriadamente… Isso me faz pensar, o que acha de se tornar meu pupilo, rapaz?

    Minha pergunta o deixou desconcertado.

    — Não seja estúpido! Sou o “Valen” de minha aldeia. Vim vingar meus amigos, mortos por esses desgraçados. Não tenho intenção de me juntar a um humano. Ainda mais um, com propósitos cinzentos como você!

    “Valen”… É, eu me lembro desse “título”. Os elfos concedem aos nossos guerreiros mais poderosos e corajosos. Senti uma leve nostalgia, pois já fui o “Valen” da Cidade Verde, capital élfica.

    — Façamos o seguinte. Eu lido com todos esses ladrões para você. Em troca, me concede um pouco do seu tempo, para eu falar mais sobre minha organização. O que me diz?

    — Um humano, fraco como você, derrotar uma vila inteira de ladrões? Essa vou pagar pra ver. Temos um trato!

    Os humanos, que ainda estavam presos pelas minhas raízes, começaram a tentar se libertar com mais urgência. O líder deles queria protestar, mas não dei tempo para reclamações.

    Coloquei a palma da minha mão direita para cima, e a levantei rápido. Foi como um maestro, pedindo para a orquestra aumentar a intensidade e volume da música. No mesmo instante as raízes cresceram e perfuraram os corações de cada um dos humanos que estavam contendo.

    Dei um assobio curto, indicando que meus homens poderiam entrar na vila.

    O Elfo, de título “Valen”, observou tudo, ainda em cima de um telhado. Sua expressão ia de espanto para nojo, devido a cena grotesca que os ladrões mortos protagonizaram.

    — Vamos procurar algum lugar para sentar, garoto? Não gosto de conversar em pé.


    Em uma das casas abandonadas daquela vila imunda, encontramos uma mesa com cadeiras não tão sujas. Convidei Ruliter e o jovem elfo para entrarem no local empoeirado e fedorento.

    — Eu ofereceria vinho, mas esta não é minha casa, e não sei se tinham algo melhor do que água suja aqui… Queira se sentar, por favor — apontei para uma cadeira. — Ainda não sei seu nome. É o “Valen” de qual aldeia? — Me sentei antes do elfo, na extremidade oposta da mesa.

    O rapaz me encarou enquanto franzia o cenho. Ele se sentou antes de falar:

    — Meu nome é Priarin… Como sabe tanto da cultura élfica, humano?

    — Sou mais velho que aparento. Conheci muitos elfos durante minha vida. Talvez eu saiba mais sobre sua cultura do que você…

    Ele cruzou os braços e deu risadas de escárnio.

    — Que piada sem graça. Um humano jamais saberia mais que-

    — Já visitou as catacumbas da floresta? Já se banhou nas cachoeiras-carmesim?

    — “Não” para as duas perguntas… E você, sabe? — O tom de descrença de Priarin foi substituído por uma tensão crescente. Em seu rosto estava estampado: “como ele sabe esses nomes?”.

    — As catacumbas ficam treze quilômetros a noroeste da capital élfica. Lá não entram pessoas que não estejam em luto. Ordens da floresta.

    Tensão crescia dentro do jovem, que já não cruzava os braços. Continuei:

    — As cachoeiras-carmesim ficam próximas às bordas ao sul da floresta Galho-Perpétuo. A água de lá parece vermelha, devido aos cristais que existem nas rochas que formam a cachoeira.

    — Grande coisa! Você apenas sabe sobre locais específicos. Não sabe nada sobre o que é ser um elfo e o respeito que devemos ter com a floresta!

    Meus olhos se estreitaram no mesmo instante que minha expressão ficou mais séria.

    — Não venha falar sobre o que significa ser um elfo para mim, moleque! Criei metade das regras que você segue até hoje!

    Inundei o recinto com mana bruta. Mesmo quem não sente mana seria afetado por aquilo. Algo na fala do rapaz me irritou, deixando um gosto amargo em minha boca.

    — Co-como assim? Que tipo de blefe é esse? Um humano não poderia criar regras para elfos! — Ele estava bastante desconcertado. A intimidação por mana o afetou mais do que eu previa.

    — Vou direto ao ponto, Priarin. Seja meu discípulo e criaremos um mundo conforme nossa vontade. Se negue e aqui será seu túmulo!

    Eu não queria fazer esse tipo de proposta abrupta e ele, mas fiquei irritado em lembrar sobre a floresta que eu nunca mais poderia entrar.

    Amei Galho-Perpétuo no passado, mas hoje não me importaria se cada tronco se tornasse carvão!

    — Por quê acha que eu te seguiria, humano? — A voz dele era trêmula, mas firme.

    — E qual o problema em seguir seu verdadeiro rei?

    Ele se levantou tão abruptamente que sua cadeira caiu atrás dele.

    — Qua-qual seu nome, humano?

    Levantei calmamente. Fiz galhos crescerem e entrarem pela janela. Ao mesmo tempo, ventos rodopiavam ao meu redor.

    Proferi, sem pressa, para que ele pudesse absorver cada sílaba:

    — Sou Vanir Altivo. Atual e único Escolhido dos elfos!

    Priarin empalideceu.

    Eu não sabia o que ele poderia fazer depois disso. Imaginei ele me chamando de mentiroso ou me xingando, mas o que ele fez me espantou.

    Sem avisos, ele se ajoelhou, apoiou o punho direito no chão e voltou sua face para baixo, como se todas as ações de sua vida tivessem sido vergonhosas.

    — Senhor, peço que me desculpe! Fui muito desrespeitoso desde que o conheci. Mereço ser punido!

    — Levante sua cabeça, garoto… Não duvida de minhas palavras? Pareço ser apenas um humano de meia-idade aos seus olhos, não?

    Ele recusava levantar a cabeça. Ainda ajoelhado, disse:

    — Não preciso duvidar do senhor. As lendas falam muito de suas habilidades e de seu “pecado” contra o deus Verde. Sei que fala a verdade…

    — E ainda assim se ajoelha diante de um traidor?

    — Compactuo de seu ódio pel’Os Cinco, senhor! Também quero acabar com as outras raças!

    Dessa vez eu franzi o cenho.

    — Sabe que odeio a todos igualmente, correto? Tanto humanos quanto elfos…

    — Sim, imaginei que, depois de tanto tempo, poderia não estar em “paz” com nossa raça… Sabendo disso, posso fazer uma proposta ao senhor?

    — Estou ouvindo…

    — Poupe os elfos em sua marcha contra o mundo e me junto a sua causa!

    Aquilo me surpreendeu. Mais uma vez Priarin fez algo que não previ.

    — Garoto, acha que pode ser tão útil a minha causa, que eu desistiria dessa parte de minha vingança?

    — Se as lendas estiverem corretas sobre seu exílio, o culpado foi o deus Verde, certo? Por favor, foque seu ódio nele ao invés de nossa raça!

    Era como se ele lesse minha mente. Sim, eu havia jurado vingança contra os deuses, e “o Verde” era o que eu mais odiava.

    Ponderei alguns instantes antes de dizer:

    — Esteja ao meu lado e prove sua utilidade. Enquanto me for útil, deixarei meu ódio contra o elfos de lado. Temos um acordo?

    Nesse momento ele se levantou e se aproximou de mim. Quando estendi a mão para um aperto, ele aceitou o gesto e selamos nosso trato.

    Ruliter, que assistia tudo do canto da sala empoeirada, deu uma risadinha forçada antes de dizer:

    — O chefe sempre consegue o que quer!


    “Ele podia ter arrancado minha mão ou me espancado até a morte. Ao invés disso ele cuidou de mim e me deu um propósito. Não existe ninguém mais leal a Vanir do que eu!”

    Ruliter Pradari, braço direito de Gêmeo.

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