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    JOUCI “NÃO-NOMEADA”

    Consigo contar nos dedos de uma mão a quantidade de cidades em que estive durante minhas viagens. 

    Nenhuma se comparava a Arcos.

    Muitas pessoas carregando sacos com trigo. Outras dezenas em grupos, se preparando para aventuras pelo continente. Também tinham outros punhados de gente carregando peixes. 

    — É a primeira vez de vocês na nação humana, certo? — Perguntou o mais jovem dos cinco guardas que nos interceptaram.

    — Como percebeu? — Thermon perguntou.

    — Os olhos de vocês estão brilhando com o movimento do povo — o rapaz deu uma outra olhada em nós. — Sugiro colocarem suas bagagens na frente de seus corpos, para que trombadinhas não roubem seus pertences…

    Olhamos em volta e percebemos olhares animados de jovens maltrapilhos sobre nós. Pareciam estar olhando um banquete, pronto para ser degustado.

    Decidimos seguir a dica do guarda.

    Passamos por centenas de pessoas. Tantas vozes interagindo em uníssono quase me causavam tontura.

    — Falta muito até a prefeitura? — Perguntei.

    — Sim! — O guarda mais velho respondeu com irritação.

    Andamos por pelo que pareceu um ciclo. Durante esse tempo, vimos todo tipo de gente. Mesmo entre humanos, havia uma diversidade grande. Vi pessoas altas, baixas, gordas, magras, com pele parda, escura e clara. 

    Isso era novidade para mim. Mesmo numa cidade grande, como Lires, não havia tanta diversidade assim.

    — Estamos chegando. Podem afrouxar a proteção com suas bolsas. Essa parte da cidade é mais segura… — O guarda mais jovem nos informou.

    E sim, o local em que estávamos parecia mais seguro, com menos pessoas andando ao redor. Havia muitos guardas ali, reforçando a ideia.

    — Por que essa parte da cidade é mais segura? Não deviam proteger todo lugar da mesma forma? — Franzi o cenho ao falar.

    — As pessoas que pagam por nossos serviços moram nessa área. Algum problema com isso?

    — Não, imagine… Só curiosidade mesmo — respondi, um pouco sem graça.

    A disparidade nas culturas era muito grande. Nessa parte do mundo o ouro comandava, causando discriminação e fome entre a plebe. Como não cabia a mim tentar resolver estas questões sensíveis, decidi apenas me abster.

    Chegamos na frente de uma construção de dois andares, com a fachada toda branca. Havia todo tipo de adorno nos cantos da construção, mostrando a importância do local. Esta prefeitura bonita, em nada lembrava a pequena prefeitura de Lires, que tinha um teto de madeira e tamanho modesto.

    — Aqui pedem a autorização de acesso às terras humanas. Se comportem! — O guarda mais velho nos orientou.

    — Obrigado pelo auxílio, senhor. Faremos o possível para não causarmos problemas aos humanos — tentei ser o mais humilde possível. Até fiz uma pequena reverência no final da fala.

    O velhote soltou ar pelas narinas em aprovação antes de dar meia volta. Ele saiu com seus comandados, voando em direção a entrada da cidade. 

    Os guardas que rondavam o perímetro nos olhavam com atenção. Provavelmente não era todo dia que viam elfos-de-gelo.

    — Vamos falar com o prefeito, então? — Regi me tirou de meu estupor, por apreciar a estrutura à nossa frente.

    Ao nos aproximarmos da entrada, vimos uma moça jovem, com os cabelos pretos, preso em um coque alto. Usava saia longa verde-escuro e uma camiseta branca. Ela nos parou assim que chegamos perto o suficiente para ser ouvida.

    — Olá, Viajantes. Bem vindos a Arcos. O que desejam aqui?

    — Queríamos ter passado direto, voando por cima da cidade, mas nos pararam antes disso… — Thermon balbuciou.

    Dei uma cotovelada em seu braço esquerdo, e tomei a frente do grupo.

    — Olá. Somos viajantes, enviados pelas tribos do polo sul. Temos uma missão a comprimir na sua nação. Na realidade não sabemos exatamente onde deveríamos ir. Buscamos o seu Escolhido. É caso de vida ou morte!

    Não sei por que fui tão direta. Algo me dizia que era bom não dizer meias verdades nessa viagem.

    — Ei, calma lá. Muita informação de uma vez. E qual seria esta missão? — A humana começou a escrever em uma prancheta, como se anotasse cada coisa que eu dizia.

    — Em poucas palavras? Salvar minha nação, e a vida de centenas, senão milhares, de pessoas pelo mundo.

    Thermon abaixou meio palmo para que sua boca ficasse na altura do meu ouvido esquerdo. Aos cochichos ele perguntou:

    — Tem certeza que é sensato falar tudo isso para ela?

    Sem cochichar, respondi:

    — Não temos nada a esconder. Precisamos da ajuda dos humanos, simples assim.

    A humana nos mediu com os olhos. Quase dava para ouvir as engrenagens na sua cabeça girando.

    — Essa história é tão maluca que só me resta falar com o prefeito… Aguardem aqui, por favor.

    A moça era bonita e tinha uma certa altivez que a deixava elegante. Olhei de relance para Thermon, querendo confirmar se ele não estava encarando a garota mais que o “aceitável”… Quando meu rosto virou em direção dele, Thermon fitava o segundo andar do prédio, fingindo que não percebi seus olhares em cima da recepcionista.

    — Se for olhar para uma mulher, pelo menos tenha culhões de não fingir depois… — Comentei, num tom quase irritado.

    — Espera, eu posso olhar outras mulheres? — Ele tentou brincar.

    — Até onde sei não somos noivos ou namorados… Como posso proibir algo, se você ainda não é meu?

    Thermon corou. Regi envolveu o pescoço do filho com um braço e brincou:

    — Ela te pegou nessa, Thermon…

    — Desculpe, achei que era óbvio que éramos noivos.

    — Só estou brincando com você, bobalhão… E tem outra, você nem matou um tubarão para mim. Como poderíamos nos casar?

    Matar um tubarão pelo seu parceiro é algo que faz parte da cultura dos elfos-de-gelo. O costume consiste em um dos noivos matar um tubarão-de-escamas adulto e oferecer ao seu pretendente um anel, feito do osso da coluna do animal. Para nós isso é um ato que demonstra coragem e inspira fidelidade. “Se alguém está disposto a matar um tubarão por você, acho que esta pessoa realmente quer estar contigo”.

    — Sim, tem razão. Nossos costumes são importantes. Matarei dezenas de tubarões por você!

    Ela falou em tom de brincadeira, mas aquilo me afetou mais do que havia previsto. A vermelhidão em meu rosto foi tão extrema, que era impossível esconder. Regi e Thermon viram tudo, e decidiram fitar o prédio da prefeitura, para não me constrangerem mais.

    — Ahem — Regi forçou uma tosse —, a recepcionista está voltando.

    A garota voltou, dessa vez usava um óculos na ponta do nariz. Enquanto olhava para sua prancheta, nos informou:

    — Nosso prefeito vai recebê-los agora. Por favor, me sigam.

    Acompanhamos ela até o interior do prédio. Era bonito, mas sem muitos adornos exagerados. O chão era de pedra clara, lisa e polida.

    Ela nos guiou por entre corredores e chegamos em uma sala oval, onde havia vários móveis cor de ébano. No fundo estava um homem quase idoso, com o topo da cabeça sem cabelos. Os poucos tufos de pêlo que ele ainda tinha na cabeça eram grisalhos.

    O homem obeso estava de pé, aguardando nossa chegada.

    — Bem-vindos a Arcos, a segunda maior cidade humana em todo planeta! A que devemos a visita de vocês?

    Nós três entramos e deixamos a recepcionista na porta. 

    Já dentro do escritório, eu, Thermon e Regi fizemos uma reverência curta.

    Regi e Thermon me olharam, como se dissessem: “Vamos, você é a líder agora, faça seu trabalho”. Homens, sempre que podem deixam as mulheres fazerem todo o trabalho…

    — Agradecemos por nos receber tão prontamente, senhor..?

    — Solom. Agus Solom Terceiro, ao seu dispor! — O prefeito também fez uma reverência curta.

    — Senhor Solom, agradecemos a atenção. Me chamo Jouci, este é Regi e este outro é Thermon…. Temos uma missão urgente em suas terras, que envolve milhares de vidas. Precisamos entrar em contato com o seu Escolhido…

    A menção do nome de nosso Escolhido fez a cabeça do homem pender para o lado, como se soubesse quem Thermon era, mas não se recordava.

    — E o que desejam com aquele brutamontes? — Ele se sentou e apontou para as cadeiras à sua frente, nos oferecendo os assentos.

    Nós três nos sentamos, eu no meio e Thermon a minha direita.

    — Serei direta… Esse ao meu lado é Thermon, o Escolhido do elfos-de-gelo. Minha raça acabou se envolvendo com inimigos poderosos, e agora precisamos enfrentar uma organização muito poderosa, espalhada por todo o planeta. Tudo indica que alguém como Alvo, seu Escolhido, pode nos auxiliar, e muito, na batalha vindoura.

    Ele franziu o cenho e olhou Thermon de cima a baixo. Por um instante um vulto de preocupação passou pelo rosto de Agus, mas ele se recompôs antes de falar:

    — Escolhidos e suas batalhas gigantescas… Devem ter visto a marca enegrecida perto de minha cidade, certo? Alvo acabou com todos os malditos elfos em menos de um ciclo. Foi horrível! Oh, me desculpem, comecei a divagar…

    — Tudo bem, senhor.

    — E qual organização é essa que precisam enfrentar? Se é tão grande como deu a entender, posso ter ouvido falar dela antes.

    Olhei para meus companheiros de viagem, pois não sabia se seria seguro falar mais do que já falei.

    Thermon parecia tenso, mas me deu um aceno encorajador.

    — Creio que conheça a Rosa-dos-ventos… Bem, eles não são apenas mercenários. É uma organização muito maior e mais intrincada do que todos imaginam — mudei o peso de meu corpo na cadeira. — Ao que tudo indica, em pouco tempo, minha terra natal será atacada por toda essa organização. Sem ajuda de Escolhidos, temo que minha raça não terá futuro!

    O homem colocou  uma mão no queixo, atento a cada palavra.

    — A Rosa é tão poderosa assim? Céus, lembro de contratar os serviços deles há uns meses. Tem certeza que eles são tudo isso mesmo?

    Dessa vez Thermon respondeu:

    — Temos plena certeza, senhor. Vimos do que eles são capazes e o poder que eles detém. Muitas vidas inocentes estão em perigo. Precisamos de toda ajuda que pudermos conseguir!

    — E não são apenas vidas de elfos-de-gelo que estão em perigo. As razões de nosso inimigo vão muito além da busca por poder ou dinheiro. Ele é ideologicamente cego, e quer destruir tudo o que Os Cinco construíram. Ninguém estará a salvo! — Regi participou da conversa.

    Agus respirou fundo e se afundou ainda mais em sua poltrona.

    — Devo admitir que não fiquei surpreso em saber que a Rosa-dos-Ventos não presta. Eles levaram nosso ouro para realizar uma missão de aniquilação de ladrões, mas nunca mais ouvimos falar deles… Aqueles salafrários!

    O prefeito respirou fundo antes de continuar:

    — Está bem, já ouvi o suficiente. Thermon, certo? Me prove que é um Escolhido, e eu acreditarei em suas palavras.

    Sem avisos, Thermon fechou seus olhos. Ainda sentado, parecia estar meditando.

    Senti como se o ar estivesse pressionando o meu corpo e uma breve lufada de ar passou por meus olhos. Lacrimejei um pouco. A força da mana sendo manipulada por Thermon causava mudanças simples ao seu redor. Geralmente é imperceptível, mas, aqui, tão perto dele, era fácil entender a extensão de sua força.

    Um arrepio em minha espinha depois, senti a temperatura de toda a área baixar drasticamente.

    Não demorou até ouvirmos pingos d’água baterem na janela atrás do prefeito. Cada vez mais forte, a chuva parecia aumentar para uma pequena tempestade tropical. 

    Thermon usou suas habilidades por mais um tempo, até o prefeito pedir:

    — Basta. Está óbvio que é um Escolhido… Então foi você “aquele” Thermon que enfrentou Alvo, na floresta do elfos? 

    Ele abriu os olhos e respondeu Agus:

    — Pelo visto aqueles papéis, detalhando minha derrota, chegaram nesse lado do planeta… — Thermon murchou um pouco ao relembrar de seu combate contra Alvo.

    — Tenho que dizer, a sua luta foi incrível e muito difícil… Isso levanta um ponto: O que garante que não quer encontrar o Escolhido dos humanos para se vingar, depois da sua derrota esmagadora?

    — Sua indagação é pertinente, mas um pouco desconexa da realidade — a face do prefeito retorceu um pouco com a fala de Thermon. — Se ler novamente o relato sobre minha luta contra Alvo, perceberá que participei daquilo para evitar mortes. Não houveram baixas por parte dos combatentes. Não sou inimigo dos humanos ou do seu Escolhido. Estou aqui para usar minhas habilidades pelo bem de todos!

    As palavras foram recebidas pelo prefeito com uma miríade de reações. Ele pareceu confuso inicialmente, mas sua expressão abrandou, como se entendesse pelo que estávamos lutando.

    Ele respirou fundo, aceitando nossas palavras. Ele não tinha motivos para negar a liberação de nossa passagem por sua cidade.

    — Entendem que se eu deixá-los “zanzar” pelos domínios humanos, é minha reputação que estará em jogo, certo? — O homem nos fitava com atenção.

    — Sim, senhor Solom — respondi de imediato.

    — Certo… — O prefeito pegou três papéis de sua escrivaninha e os carimbou, cada um uma vez. Ele levantou um dedo, como se estivesse prestes a nos repreender, por estarmos prestes a fazer alguma bagunça. — Não façam eu me arrepender disso, tudo bem?

    Nos levantamos e pegamos os papéis que diziam: “Autorização de entrada. Válida em todo território Humano. Vencimento: 30/12/1053”.

    Os anos em Mundo são contados de formas diferentes entre Os Cinco. Humanos iniciaram a contagem de seus anos com a morte do humano que se tornou o deus Azul, mil e cinquenta e três anos atrás.

    Elfos-de-gelo tem um sistema mais parecido com o dos humanos, o que facilitava quando líamos escrituras desta raça.

    Elfos contam a passagem de tempo em “eras”, divididas em espaços de cem anos, que são nomeados de acordo com seus reis ou rainhas vigentes, algo como: “Hoje é o quarto dia, do terceiro mês do quinto ano da era de Altimanus”, sempre achei essa maneira de marcar as datas um pouco burocrática, então prefiro não utilizá-la.

    Sei que Anões têm calendários mais complexos, aliando datas com ciclos da lua, mas não sei muitos detalhes.

    Já Lizards ou Pelt-beats não compartilham com Os Cinco como organizam a passagem de tempo.

    De qualquer forma, se tornou consenso entre as raças que a periodicidade de um ano equivalia uma volta de nosso planeta em torno do sol. 

    Como este movimento de translação dura exatos trezentos e sessenta dias, foi conveniente dividir um ano em doze meses, com cada um deles contendo exatamente trinta dias.

    Voltando ao a sala do prefeito Agus Solom, falei:

    — Agradecemos sua ajuda! Não sabe o tamanho da encrenca em que nos metemos! Cada resquício de esperança de que podemos dispor, estamos aceitando!!

    — Está quase de noite, então darei mais um pouco de ajuda. Durmam no quarto vago que temos nos fundos. Pela manhã poderão partir.

    Ficamos surpresos. Entre todas as raças, a humana era tida a menos compreensiva e caridosa. Nos oferecer tanto, quase chegava a ser suspeito.

    — O senhor não precisa… Podemos acampar fora da cidade.

    — Se a missão de vocês for tão importante e altruísta como me disseram, menina, não posso tratá-los com descaso. Estarão sob minha proteção enquanto estiverem aqui. Avisarei toda a guarda sobre sua estadia. Ninguém irá importunar vocês!


    A noite foi tranquila. Nós conseguimos descansar muito bem no quarto que o prefeito nos cedeu. 

    Assim que o sol raiou, organizamos o que bagunçamos e nos encontramos com Agus, que nos aguardava na entrada da prefeitura.

    — Espero que façam uma boa viagem. Que o deus Azul os proteja nesta viagem!

    Eu, Regi e Thermon fizemos uma breve reverência, e nos despedimos dele e de sua secretária.

    Andamos pelas ruas apinhadas de pessoas até a saída mais ao norte da cidade. Dois guardas nos guiaram o tempo todo.

    Quando passamos pela fronteira da cidade e olhamos para trás, só tínhamos a agradecer pela hospitalidade.

    — Espero voltar aqui no futuro, e agradecer ao senhor Agus. Além de acreditar em nós, ele nos ajudou imensamente! — Fiz esta anotação mental, gravando a promessa em minha mente.

    — Faremos isso juntos, tudo bem? — Thermon me deu um olhar animador.

    — Foi a primeira vez em anos que recebi algo sem ter que pagar ou tomar para mim… É uma sensação estranha, de certa forma… — Regi olhava em direção a Arcos, sem focar em nenhum ponto específico.

    Com as Autorizações de Entrada, cedidas pelo prefeito de Arcos, sabíamos que nossa passagem pelo reino humano seria mais tranquila. Aquilo tirou um peso grande de nossas costas.

    Dando as costas para Arcos, e olhando para cima, lembrei de meu pai, Baru. “Ele estaria tão animado de estar fazendo parte dessa viagem…”, pensei.

    Fiquei um pouco triste com este pensamento, mas não podia me abalar. Muito estava em jogo, e precisávamos nos apressar.

    Sem mais contemplações, rumamos ao norte, preparados para mais um dia de viagem sob as Asas-de-Gelo.


    “Dia 20/12 é aniversário de Jouci. O que vai dar para ela, Thermon? Infelizmente não sei o que garotas de cinco anos gostam, então queria que me ajudasse a escolher algo… Jou, minha querida, o que vai dar para nossa filha?”

    Baru Arpão, quatorze anos antes

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