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    THERMON AGOURO

    Viajamos por mais um dia inteiro em cima das “Asas-de-gelo”. Passamos por feudos, vilas, pastos e pequenas cidades, até nos aproximarmos do nosso provável destino: Porto-norte.

    De longe a cidade parecia uma versão em maior escala de Arcos. A diferença mais perceptível era em seu centro, de onde emergia um castelo, construído com pedras claras e torres com telhados pontudos e azulados. Estranhamente aquela era a imagem que me vinha à mente quanto imaginava castelos feitos por humanos.

    — Vamos descer e seguir até a entrada da cidade a pé. Não quero ser alvejado por magias explosivas ou flechas errantes — meu pai, Regi, pediu.

    — Tudo bem!

    Desci a um ciclo de caminhada de distância das fronteiras da capital humana. 

    Diferente da maior parte dos caminhos que seguimos durante nossas viagens a pé, neste local havia uma pequena estrada, que levava diretamente ao nosso destino.

    — Será que vão estranhar elfos-de-gelo nessa parte do planeta? — Jouci perguntou.

    — Garanto que sim. A última vez que me aventurei pelos domínios humanos, fui atacado diversas vezes. Na época não andava todo enfaixado, durante minhas missões para Vanir — meu pai parecia preocupado com o tipo de recepção que teríamos.

    — Não temos escolha… Vamos andando! — Fui à frente do grupo, tentando manter o foco de nossa missão.

    A cada novo quilômetro que avançávamos, apareciam mais humanos pelas estradas que bifurcavam em direção à cidade. Eram viajantes, ou mercadores guiando carroças. Sempre que nos viam, seus rostos exibiam preocupação ou estranheza. Felizmente nenhum nos atacou.

    — Mantenham suas expressões neutras, e evitem contato visual. Humanos têm mais medo de nós do que nós deles — Regi brincou, mas não senti vontade de rir.

    Quando a pequena aglomeração de pessoas chegou conosco à frente dos portões de Proto-norte, um guarda nos percebeu ao longe. Devia haver cem pessoas entre nós e ele.

    O jovem rapaz, usando armadura completa e uma lança, falou alguma coisa para o pessoal ao seu redor, e veio com mais outros cinco soldados em nossa direção.

    Por suas expressões, não pareciam muito felizes em nos ver.

    Poucos metros antes de nos alcançar, eles apontaram suas lanças em nossa direção. Um deles gritou:

    — Altos lá! O que desejam em nossa capital? Respondam ou serão executados aqui mesmo!

    Eu e meus companheiros nos entreolhamos. Levantei minhas mãos em rendição.

    — Somos viajantes. Buscamos a ajuda de sua raça! Por favor, nos deixem falar com o seu líder! — Tomei a frente do meu grupo mais uma vez.

    — Líder? Quer dizer o rei? Está maluco se pensa que vamos deixá-lo entrar em nossa cidade. Ainda mais depois de tudo o que tem acontecido… — Um segundo guarda falou.

    — Fique quieto, Benon! Estranhos não tem que ficar sabendo do que se passa dentro de nossas muralhas — Um terceiro guarda cuspiu.

    Eles não fizeram menção em abaixar suas lanças.

    As dezenas de humanos ao nosso redor se aglomeraram para assistir a bagunça.

    — E agora, o que faremos? — Jouci cochichou, atrás de mim.

    — Não pensei tão longe… Já sei, as autorizações! Guardas, temos autorizações, concedidas pelo prefeito de Arcos. Ele confia em nós. Isso não é prova de que não somos inimigos?

    Peguei um papel, que estava guardado em minhas vestes, e o segurei na altura do meu rosto.

    Um dos guardas se aproximou, pegou o papel da minha mão, e se afastou para ler.

    — “Autorização de entrada”? Nunca vi essa merda! Quem andaria com isso?

    Um quarto guarda interveio, pegando o papel da mão do seu colega, e me devolvendo rispidamente.

    — Eu já ouvi falar nisso. Serve para caravanas transitarem entre feudos, mas não tem valor algum aqui na capital. Deem meia volta ou serão empalados!

    — Mas… — Jouci tentou intervir.

    Balancei negativamente a cabeça.

    — Não queremos confusão. Estamos aqui em nome da paz entre as espécies. Se levantarmos a voz, perderemos a razão.

    Minha fala surtiu efeito em Jouci e ela se calou.

    Quando estávamos nos virando, preparados para ir embora, uma voz de um rapaz gritou por cima da multidão:

    — Elfos-de-gelo, esperem! — Olhamos em direção a pessoa que nos chamou. — Guardas, eles estão comigo. Deixe-os entrar!

    O rapaz não parecia mais velho que jouci, mas tinha minha altura, perto dos um metro e oitenta e cinco. Tinha cabelo curto, penteado para trás. Ele exalava nobreza de berço, como se nunca tivesse pego em nenhuma ferramenta na vida.

    Suas vestes eram marrom claro, como um manto. Sabíamos que quem usava este tipo de roupa era da guilda dos mercadores.

    Esta guilda é, de longe, a entidade mais bem organizada do planeta. É a primeira e única organização que funcionava em todos os cantos, com conexões entre todas as raças. Eram unidos mesmo em tempos de guerra, como se o ouro fosse mais importante que disputas idiotas por território ou poder.

    Se pensarmos friamente, a maior parte do planeta é movida por dinheiro, então deter dinheiro é deter poder.

    De toda forma, este jovem que intercedeu por nós parecia importante, devido a reações dos guardas.

    — Senhor Cádimo. Mil perdões, não sabíamos… Estamos todos em alerta, o senhor sabe. Muita coisa tem acontecido por aqui.

    — Está perdoado, rapaz. Qual seu nome? Vou falar bem de você ao seu supervisor.

    — É Benon, senhor Cádimo — o jovem fez uma reverência tão rápido que quase caiu para frente.

    — Este trio de azulados são meus convidados. Liberem a entrada deles, por favor! — Algo me dizia que esta fala não era um pedido.

    Sem mais desculpas ou perguntas, os guardas nos escoltaram por entre a multidão, Cádimo nos seguiu de perto.

    Passamos pelo enorme portal de pedra e entramos na cidade. 

    — Eu assumo daqui, senhores. Podem voltar aos seus postos.

    Os guardas ficaram em posição de sentido e bradaram em uníssono.

    — Sim, senhor!

    Após isso, voltaram depressa para a parte externa da cidade.

    Agora estávamos apenas nós e o jovem mercador, parados em uma esquina movimentada. Antes que pudéssemos perguntar algo, ele nos disse:

    — Se não fosse minha curiosidade, nunca conseguiriam entrar nesta cidade… O que querem com os humanos? Falem logo!

    — O senhor nos ajudou por curiosidade? — Jouci foi a primeira a falar.

    — Sim, um capricho da minha parte. Só fiz isso pois está óbvio que são burros demais para tentarem fazer algo perigoso contra humanos. Me digam logo, o que querem aqui?

    Olhei para meu pai e depois nos olhos de Jouci. Não sabíamos mais se contar nossa história iria ajudar, mas precisávamos chegar até o Escolhido deles.

    — Sei que vai parecer maluquice, mas estamos lutando contra uma organização tão forte quanto uma nação inteira, e precisamos da ajuda dos humanos. Mais especificamente da ajuda de Alvo! — Falei por meu grupo.

    Ele franziu o cenho, olhou em volta para confirmar se não tinha ninguém ouvindo. Aos cochichos, ele falou:

    — E que organização é essa?

    — A Rosa-dos-ventos.


    Seguimos Cádimo por vielas movimentadas durante bastante tempo. Não falamos palavra alguma no caminho todo.

    Pessoas nos olhavam de esguelha, mas ignoramos. A reação dos humanos aqui não era muito diferente das pessoas em Arcos.

    Andamos mais um tempo até chegar em uma propriedade enorme. 

    — Entrem, esta é minha residência.

    O rapaz seguiu pelo portão prateado que protegia a entrada. Guardas, com vestimentas esverdeadas, protegiam os entornos da propriedade. Eles pareciam estátuas em seus postos. Contei dez deles ao redor.

    Quando chegamos à entrada da mansão de paredes escuras, uma empregada abriu a porta para Cádimo.

    — Olá, mestre, chegou cedo. Deseja que eu prepare seu banho?

    — Agora não, Herta, tenho convidados. Traga tira-gostos em minha sala. Chá preto também. E vocês, querem algo específico para comer ou beber? — ele se virou para nós, como se oferecesse um cardápio em um restaurante.

    — Estou cansado de carne-seca. Tem peixe? — Falei. 

    Jouci cutucou meu braço, e me olhou com uma expressão que dizia: “Tenha modos!”. Apenas a ignorei.

    — Claro. Herta, traga robalo-prateado em cubos assados para eles. Viajaram por dias, merecem um agrado — ele nos lançou um sorriso que não chegou aos olhos.

    — Como desejar, mestre Cádimo! — Jovem, e muito bonita, empregada fez uma breve reverência e se retirou para o interior da mansão.

    — Me sigam, vocês três. Temos muito a conversar.

    Ele começou a nos guiar pelos corredores de sua mansão.

    Jouci quebrou o silêncio.

    — Não quero ser petulante, mas tem certeza que pode nos ajudar a encontrar com Alvo, senhor Cádimo?

    — Claro que sim. Estão com sorte. Sou o tipo de pessoa que troca informações por dinheiro. É como dizem: “Conhecimento é poder!”. Se tem algo importante acontecendo nessa cidade, eu garanto a vocês que sei.

    Nesse momento chegamos na entrada de uma sala, mas as portas duplas estavam fechadas. Cádimo empurrou as maçanetas e nos revelou uma sala enorme, abarrotada de livros em estantes altas.

    Ao fundo havia uma mesa de madeira clara, toda adornada em prata. Mesmo sem saber muito sobre preços das coisas, tinha certeza que aquela peça de mobília valia mais tudo o que eu já possuí na vida.

    Haviam alguns sofás distribuídos pelos recinto. O jovem comerciante apontou para eles e disse:

    — Podem se sentar. Herta logo trará vosso pedido.

    Essa formalidade toda era, de certa forma, constrangedora. Eu não sabia me portar naquele tipo de lugar.

    Nos sentamos e observamos Cádimo se aproximar de sua mesa. Ele não foi até sua poltrona. Ao invés disso ele sentou em cima da mesa, como se fosse dono do lugar.

    Bem… Ele era o dono.

    De toda forma, ele parecia muito mais a vontade agora. Ele cruzou os braços e nos mediu por uns instantes antes de perguntar:

    — Me contem mais sobre essa “guerra” que vão enfrentar. Sobre a Rosa e sobre precisarem da ajuda de Alvo. Se forem convincentes os ajudarei.

    Não tinha mais motivos para esconder nada. Começamos a falar alternadamente.

    Eu falei sobre os perigos da Rosa-dos-ventos. Regi sobre o tamanho e dimensões da organização. Jouci falou sobre a possível guerra vindoura.

    Cádimo ouviu cada palavra com atenção extrema. Nos parava poucas vezes, apenas para repassar informações.

    — … e assim chegamos em Porto-norte, e o senhor nos “salvou” — Jouci finalizou a história.

    Omitimos duas informações nessa história toda: Os sonhos de Jouci com o deus Verde e a condição de meu pai, como agente duplo. Pareceu pertinente fazer isso. Não conseguimos omitir o fato de eu ser um Escolhido.

    Cádimo percebeu que terminamos a história, fechou os olhos e respirou fundo.

    — É muita coisa para digerir. Escolhidos, deuses, Rosa-dos-ventos… Se estiverem dizendo a verdade, estão num barco fadado a afundar.

    Seu olhar era penetrante e sua expressão longe de demonstrar pena ou solidariedade. Parecia que ele estava animado com nossa jornada.

    — Garanto que não atravessaremos metade do planeta só para tomar chá e contar histórias — fui meio ríspido, mas nosso anfitrião pareceu gostar da minha resposta.

    — Tem razão. Tem toda a razão… Se me lembro bem, você foi o elfo-de-gelo que parou Alvo na floresta, certo? É o segundo Escolhido que tenho a honra de conhecer…

    Ele desceu da mesa, se aproximou alguns passos em minha direção e continuou:

    — Devo admitir que estou um pouco decepcionado. A presença de Alvo exala força e confiança. Não sinto isso vindo de você, Thermon.

    O comentário me incomodou um pouco. Não me importo com comparações entre Escolhidos, mas ser diminuído não fez bem ao meu ego.

    — Oh, céus, não queria ser rude. Só constatei um fato. Costumo pensar em voz alta. Mil perdões!

    Como eu estava mais à esquerda do sofá, e mais perto do jovem mercador, não estava vendo as reações de meus companheiros de viagem. As desculpas não eram voltadas para mim. 

    Jouci parecia furiosa, Regi estava prestes a se levantar. expressão de raiva em seu rosto.

    Em parte eu fiquei contente por eles reagirem daquela maneira. Fez eu me sentir querido.

    Após as desculpas de Cádimo, os dois respiraram fundo e voltaram à neutralidade.

    Batidas na porta. Uma voz abafada falou:

    — Trouxemos o que solicitou, mestre. Podemos entrar?

    — Até que enfim! Entrem logo!

    A moça abriu as portas duplas e outros três criados trouxeram os aperitivos para Cádimo e três bandejas com cubos de robalo-prateado, liberando fumaça e vapor.

    O alimento estava disposto nas bandejas para ser degustado com garfos longos e finos, perfeitos para espetar a comida e trazer a boca.

    As bandejas de prata foram colocadas em uma mesa de centro, que ficava na frente de nosso sofá. Os serviçais entregaram para nós os garfos que estavam nas bandejas e se afastaram.

    Herta trazia uma garrafa branca, adornada com tinta dourada. Ela posicionou na mesinha quatro xícaras e entornou o chá. Assim que ela terminou, Cádimo disse:

    — Obrigado a todos. podem se retirar.

    Ele segurava uma bandeja com canapés de todos os tipos, tamanhos e formatos. Jogou um na boca e disse:

    — Não façam cerimônia, podem comer.

    Com os garfos em mãos, nos entreolhamos.

    Não me lembrava da última vez que senti um cheiro tão bom. Meu estômago roncou e comecei a salivar.

    Espentei o primeiro cubo de peixe assado e o provei. Nunca comi nada tão saboroso. 

    Degustei de olhos fechados, rindo comigo mesmo.

    Provavelmente meus companheiros fizeram o mesmo, pois ouvi eles gemendo pelo prazer de comer algo tão bom.

    Em nossa viagem a comida era preparada apenas para nosso sustento, então não tínhamos refeições muito saborosas. 

    — Pois é, é bastante saboroso. Estão degustando o peixe mais caro deste lado do continente. Se for preparado de forma incorreta, a carne pode amargar… Apenas os melhores chefs conseguem extrair todo o potencial desta iguaria.

    Enquanto ele explicava, gesticulava animadamente. Falar sobre esse tipo de assunto parecia ser o que ele mais gostava de fazer.

    Antes de perceber, finalizamos o robalo.

    — Nem sei o que dizer. Estava uma delícia. Agradecemos muito! — Jouci falou, usando um tom de satisfação pouco usual.

    — Fico feliz em saber que até mesmo elfos-de-gelo conseguem apreciar o que é bom e requintado. Talvez não sejamos tão diferentes, afinal de contas… 

    Cádimo fitou o canto da sala ao fim de sua fala, como se entrasse em um transe momentâneo. Seus olhos não focaram em nada específico.

    Forcei duas tosses, para trazê-lo de volta à realidade.

    — Oh, céus. Tive uns devaneios. Desculpem por isso. Vamos voltar aos negócios…

    Ele também havia terminado seus quitutes. Deixou a bandeja vazia em cima da mesa.

    — Certo… O senhor pode nos ajudar a encontrar Alvo? — Perguntei.

    Quando ele abriu a para responder, duas batidas na porta do escritório fisgaram sua atenção.

    — Mestre, seu pai está aqui e deseja lhe ver — a voz abafada de Herta falou.

    — O que o velhote quer dessa vez? Não vou emprestar mais dinheiro para ele… — Cádimo falou para si, quase como um sussurro. — Peça para ele vir mais tarde. Tenho convidados no momento.

    Então a porta se escancarou. Um senhor, um pouco mais baixo de Cádimo entrou. Suas vestes, pomposas e em vários tons de azul, demonstraram que não era um plebeu comum. Era um senhor robusto, com barriga avantajada e braços bastante fortes e roliços.

    — Desculpe a invasão, filho, mas não pude deixar de notar que trouxe convidados bastante peculiares a sua casa. Nas ruas só se fala disso.

    A expressão de Cádimo azedou. Ele claramente não queria ver aquele senhor no momento.

    — E o que o senhor tem a ver com isso?

    — Sou o conselheiro interino do rei. Se algo com relação a segurança da nação ocorre, eu preciso estar ciente… Os guardas do portão sul me disseram que elfos-de-gelo entraram na cidade, pedindo por ajuda para algo, estou certo? — O homem falava com calma, como se tivesse ensaiado um discurso.

    — Precisamente… Estes viajantes me contaram uma história bastante interessante sobre uma possível guerra que está por vir. Ia falar com o senhor sobre eles assim que terminasse de conhecê-los — Cádimo pareceu diminuir enquanto falava, como se estivesse contornando as palavras para não dizer algo errado.

    — Entendo… — O homem falou em um tom de desconfiança. Ele voltou sua atenção ao meu grupo. — Peço mil perdões por não ter me apresentado. Prazer, me chamo Rufo Sote Terceiro, ao seu dispor!


    “Robalo-prateado, Atum-cego e Tubarão-de-serra são os peixes mais difíceis de capturar e os mais gostosos de comer. Metade da economia de Porto-norte gira em torno da pesca. Não faz ideia como é difícil transportar grandes quantidades de peixe fresco para o interior.”

    Cádimo Sote

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