Capítulo 63 - Rebeldes
An’u
Me infiltrar na base oeste foi mais fácil do que imaginei. Minhas vestes acinzentadas, características da Rosa-dos-ventos, permitiram minha entrada.
Este local é focado em cultivo e obtenção de alimentos. É peça chave na manutenção de outras bases num raio de cem quilômetros.
Isso significava que aqui não havia tantos soldados preparados para combate, visto que a maioria eram fazendeiros sem experiência em lutas de verdade. Isso tornaria minha missão mais fácil.
O local era um complexo de diversas pequenas propriedades rurais, espalhadas por uma bela planície, longe de qualquer cidade mais populosa da região.
Encontrar um posto para trabalhar foi simples. O que não faltava era trabalho braçal a ser realizado.
Com isso, um mês se passou.
No meio da manhã, enquanto eu ajudava a limpar currais de porcos-do-sol — animais com pele brilhosa e suculenta, um dos supervisores de nossas tarefas se aproximou de meu grupo de cinco trabalhadores e disse:
— Parem o que estão fazendo imediatamente! — Ele ofegava um pouco. — Primeiro está aqui, e deseja falar com todos nós. Se limpem e entrem em formação no pátio central. Vocês têm cinco espaços de tempo!
Eu e meus novos colegas nos entreolhamos, mas não perdemos tempo.
Dois deles controlavam mana elemental de água, e nos ajudaram a limparmos nossas mãos e pés rapidamente.
Corremos até o pátio central, onde centenas de soldados já estavam alinhados, como militares bem treinados que eram. Mais de dez fileiras com soldados, espaçados um metro de distância de cada um, formavam um padrão coordenado e bem ensaiado.
Como eu era um dos mais baixos, fiquei perto do final da fileira mais à esquerda, junto com outros anões.
Um humano, que parecia de patente superior aos demais, deu ordens para que todos ficassem em posição de sentido e todos obedeceram.
Pouco som era ouvido entre os soldados. Todos pareciam apreensivos com a chegada do arauto de Vanir.
Como esta base é bastante afastada das demais neste continente, eles têm pouco contato com Vanir e seus arautos. Sempre que algum deles está por perto, a tensão toma conta do ambiente.
Não demorou muito para que um elfo, usando vestes elegantes azul escuro, subisse numa espécie de palco, à frente de todos nós.
Sua postura, altiva e pedante, demonstrava uma superioridade quase tóxica. Ele devia estar pensando que nossa presença não valia seu tempo.
Ele parou, nos olhou sem pressa e começou:
— O objetivo da nossa organização está prestes a ser concluído — ele fez uma pausa e continuou a passar os olhos pela multidão de soldados. — Vanir obteve informações reveladoras sobre nossos inimigos. Já traçamos uma direção, e é para lá que seguiremos.
Ninguém ousou respirar alto demais. Todos queriam saber o que aquilo significava, mas eu já sabia…
Primeiro prosseguiu com seu discurso:
— Daqui um ano vamos iniciar movimentações por todo o planeta. Todos da Rosa-dos-ventos, de soldados a comandantes, partirão em uma peregrinação até o sul de cada continente — ele começou a andar de um lado para o outro, sem pressa. Olhos fixos em nós. — Nosso objetivo será o polo sul!
Alguns burburinhos começaram a se formar. Primeiro levantou uma mão e todos voltaram a ficar em silêncio.
— Não posso dar muitos detalhes, para a segurança de todos, mas o que precisamos para concluir nossos objetivos se encontra protegido pelos elfos-de-gelo. Dessa forma, vamos enfrentar resistência por parte dos orelhudos-azulados.
Algumas risadinhas irromperam entre os soldados.
— Tínhamos traidores entre nós, que identificaram nosso objetivo e farão de tudo para dificultar nossa chegada, então se preparem para o pior! — Primeiro parou no meio do palco e deixou uma expressão severa tomar conta. — Em um ano nos moveremos. Treinem bastante para se preparar. Mostrem seu valor! Todos que estiverem ao lado de Vanir, no final, serão ricamente recompensados!
Quase dava para sentir a agitação do pessoal. A maioria estava muito animada. Alguns, como eu, tinham expressões muito apreensivas.
— Estamos contando com todos vocês! Dispensados!
Com essa fala, Primeiro deu meia volta e sumiu atrás do palco. Diversos soldados aplaudiram o arauto, assim que saíram de forma.
Pelo o que entendi, Primeiro foi designado a avisar todas as bases da Rosa-dos-ventos, sobre o próximo objetivo. Essa seria a minha chance. De noite eu conseguiria, enfim, convencê-los.
No meio da noite, atrás do banheiro do meu alojamento, eu estava agachado aguardando algumas pessoas. Desde que cheguei nesta base, tenho cochichado para todos os soldados que eu conseguia, sobre o quão problemática a Rosa é.
Poucos se interessaram pelo que eu dizia.
Dos vinte com quem consegui falar, metade aceitou criar uma espécie de “clube”. Nos encontramos sempre atrás deste banheiro, onde os sentinelas ao redor da base não conseguiam nos ver.
Todas as noites eu tentava abrir os olhos deles, dizendo que Vanir só quer usá-los, mas sem contar o que eu realmente sei. Normalmente eles apenas ouviam, mas este dia seria diferente…
Com a notícia que Primeiro nos deu, eu tinha o que precisava para trazer mais pessoas para o nosso lado.
A noite estava bastante fria, então assoprei ar quente em minhas mãos, tentando aquecê-las. Fumaça de vapor saía de minha respiração.
Não demorou muito para os dez soldados se aproximarem, com cautela. Se esgueiravam, arrastando-se pela parede do alojamento.
Quando os dez se reuniram ao meu redor, todos sentamos no chão.
— An’u, viemos novamente… — Falou Jodas, um elfo de cabelos castanhos, um pouco mais alto que eu. Ele era o mais avesso às ideias da Rosa dentre os soldados com quem falei, mas ainda assim não deixava de obedecer às ordens da organização.
Ele se aproximou antes de continuar falando:
— É, parece que você tem razão. Todos nós sabemos que a Rosa-dos-Ventos não tem objetivos nobres, mas hoje ficou claro que genocídio de inocentes é um deles… Eu tinha minhas dúvidas antes, mas hoje estou convicto: Preciso sair da Rosa!
Os outros nove soldados se entreolharam e abaixaram o olhar. Eles não queriam admitir, mas pensavam o mesmo.
Quando Primeiro mencionou o ataque ao Polo-sul, entendemos de imediato: Toda a raça dos Elfos-de-gelo estava em perigo.
Estes rapazes, de várias espécies, não sabiam que eu havia participado do plano que destruiu a “Jóia do deserto”, onde Thermon estava preso. Não tinham ideia do que eu sabia sobre Vanir. Durante este mês me mostrei apenas como um companheiro, que compartilha a raiva contra a Rosa, mas isso precisava acabar. Nessa noite.
Olhei nos olhos de todos, com medo de qual poderia ser suas reações, mas eu não tinha escolha. Precisava arrancar esta atadura, antes que fosse tarde demais…
— Pessoal, quero que prestem bastante atenção. Omiti uma informação crucial quando me apresentei a vocês… Eu sou desta base. Não só isso, como sou um dos traidores que Primeiro mencionou em seu discurso. Estou aqui justamente para tentar diminuir as forças da Rosa, antes do ataque ao Polo-sul.
Eles ficaram surpresos, se entreolhando. Jodas empalideceu e disse:
— Não é possível… A “Jóia do deserto” foi atacada há pouco mais de um mês. Não teria como você ter feito parte dos traidores e chegar aqui em tão pouco tempo… São centenas de quilômetros daqui até o meio do deserto.
Respirei fundo antes de continuar:
— Tive ajuda para chegar aqui. Vim voando… Isso é uma longa história — Olhei ao redor antes de falar. — Em todo caso, fiz parte da equipe que resgatou os escolhidos que Vanir havia prendido naquela base do deserto.
— Escolhidos? No plural? — Um soldado humano perguntou. Ainda não sabia seu nome, pois essa era a segunda vez que ele participava desses encontros.
— Sim, Vanir também tinha sequestrado o escolhido dos Lizards. Felizmente também o libertamos.
Os soldados ficaram estupefatos. Não sabiam como reagir ao que eu dizia. O que estava mais atrás do grupo, um Pelt-beast, meio-humano e meio-jaguar, se levantou e disse:
— E por quê está nos contando isso?
Olhei nos olhos de cada um e disse:
— Preciso da ajuda de vocês para evitar mortes, tanto do lado dos elfos-de-gelos, quanto dos soldados da Rosa-dos-ventos. Não temos motivos para continuar seguindo Vanir em sua busca por destruição.
Era muita informação para eles, mas, no fundo, sabiam que eu estava falando a verdade.
— O quê espera da gente? O que precisamos fazer? — Jodas perguntou.
Me levantei antes de proferir:
— Se juntem a mim para derrubarmos a Rosa por dentro. Um soldado a menos nas linhas de frente pode significar várias vidas salvas… Infelizmente sei que muitos dos seguidores de Vanir são sádicos e gostam do caos e da matança. Estes não temos como converter para nossa causa.
Sem espaço para ponderação. Jodas disse, com a voz um pouco mais alta que o aceitável para mantermos nosso esconderijo oculto:
— Conte comigo! Vamos fazer o possível para evitar mortes inocentes!
— Shhhh! Faça silêncio e se nos descobrirem? — Tentou alertar um soldado anão, que estava logo atrás de Jodas.
— Que pena, já foram descobertos!
Os rapazes que ainda estavam sentados se levantaram de imediato, encarando a nova figura.
Virando a esquina do alojamento apareceu um dos supervisores desta base, seu nome era Tolar. O humano era corpulento e alto, voz grossa e olhar medonho, ele não devia ter completado trinta verões de idade. Sua presença era a última que queria alí — este era um exemplo de seguidor sádico de Vanir.
Tolar era encarregado da disciplina e treinamento em artes marciais. Ele adorava se exibir, derrotando soldados mais fracos que ele em lutas de treinamento. Ninguém abaixo dele o suportava.
Fiquei à frente dos soldados, pronto para enfrentar Tolar, se necessário. Em todo caso eu precisava evitar confrontos ao máximo.
— Boa noite, senhor. Não entenda errado, este é apenas um grupo para contar histórias de terror. Não o fazemos dentro do alojamento para não atrapalhar o sono dos demais…
Essa pequena mentira eu ensaiei desde o primeiro dia, justamente para momentos como este. Os rapazes atrás de mim apenas assentiram com a cabeça, validando minha história.
— Acham que eu sou idiota? Ouvi um de vocês falar, muito animadamente, algo sobre “evitar mortes inocentes”. Que tipo de história de terror teria uma fala como esta?
Ele dizer isso mostrava que não ouviu o suficiente para nos incriminar. Quase não consegui esconder minha expressão de alívio ao perceber isso. Ainda precisava manter ele longe da verdade.
Se eu forçasse a mentira que contamos, ele não teria outra escolha, senão nos liberar.
Quando me preparei para tentar explicar o inexplicável, Jodas surgiu ao meu lado e falou:
— Bem, peço desculpas a todos. Eu me empolguei com a história. Essa não era exatamente de terror… Eu estava enjoado dessas histórias de terror e queria contar algo mais animado, o senhor entende, não é senhor Tolar?
A pergunta pegou o humano de surpresa. Como estávamos fingindo fazer algo, de certa forma, inofensivo, ser perguntado daquela maneira tornou nossa história mais crível.
— Não me importo com esse tipo de coisa sem sentido! — Tolar apontou em direção a entrada do alojamento. — Voltem já para suas camas! Não quero saber de clubinho de terror. de aventura ou do que quer que seja! Estão proibidos de fazer isso no futuro.
— Mas, senhor, não estamos fazendo nada de mais! — Ele mordeu a isca, então mantive o teatro.
— Não quero saber! Sumam da minha frente!
Agradecendo mentalmente apenas o esporro, voltamos para dentro do alojamento de cabeça baixa.
— Essa história está muito mal contada… Estou de olho em todos vocês!
Tolar esperou que entrássemos no alojamento antes de voltar aos seus aposentos, que ficavam em construções mais afastadas.
“Espero que isso não nos atrapalhe no futuro…”, pensei.
“Felizmente a base em que fui enviado estava cheia de insurgentes. Muitos estavam descontentes com a Rosa-dos-Ventos. Em parte por esta ser mais afastada das demais, em parte por se tratar de uma base focada em serviços mercenários. Pouco glamour, muito trabalho, pouco ouro… Trazer eles para o nosso lado vai ser fácil”
Maso, elfo, e um dos traidores de Vanir.
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