Capítulo 64 - A primeira Vontade
JOUCI “NÃO-NOMEADA”
Sentada em um balanço de madeira, observava o lindo nascer do sol.
A madrugada foi preenchida com uma torrente de informações sobre nossos inimigos, então havia uma sensação de progresso nesse “lance” de marcados pelos deuses.
A única coisa que não entrava na minha cabeça era o que Alvo me falou: Os deuses me escolheram como a líder dos marcados.
Não sabia o que isso significava ou o que eu precisava fazer, mas me imaginar liderando Escolhidos contra um inimigo poderoso não estava em meus planos.
De tempos em tempos eu usava os pés para impulsionar o balanço de madeira para trás. Não me sentava num brinquedo como este há, pelo menos, dez anos. A sensação era nostálgica e um pouco melancólica. Na ocasião, minha mãe empurrava minhas costas e meu Pai assistia.
A lembrança de meus pais falecidos não me deixou triste, muito pelo contrário. Fechei os olhos, respirei fundo e senti um arrepio em minha espinha. A lembrança encheu meu peito com alegria.
— Estou com muita saudade de vocês… Um dia espero revê-los.
Ouvi a grama atrás de mim sendo pisada, mas não me virei para saber quem estava ali. Continuei olhando em direção ao mar que banhava a baía de Porto-Norte. O reflexo do sol dançava nas águas, quase como se o astro estivesse feliz por despertar naquele dia.
— Pelo menos “alguém” conseguiu dormir — resmunguei para o sol.
— Está falando com quem? — A voz do meu amado, e irritante, namorado surgiu atrás de mim.
— Você não entenderia…
Ainda fitava o horizonte. Suspirei fundo, apoiei um cotovelo na perna e o queixo na mão.
— Não consegui ficar muito tempo longe de você — Confessou. — Posso ficar ao seu lado, em silêncio?
— Tudo bem, não precisa se calar. Só queria pensar um pouco.
Sem olhar diretamente para Thermon, percebi, pelo canto do olho, ele se sentou no chão ao meu lado. Cruzou as pernas como uma criança.
Me copiando, ele também focou sua atenção em direção ao mar.
— Essa calmaria me assusta — falei.
— Acho que entendo o que quer dizer. Realmente… Temos tanta coisa para fazer até Vanir tentar invadir o polo-sul, que a calmaria do momento parece “errada”.
— Pois é…
Ficamos mais um pouco ali, em silêncio, apenas aproveitando a presença um do outro.
— Obrigada, Thermon!
Ele me olhou, confuso.
— De nada. Pelo o que está agradecendo?
Thermon me observava de baixo para cima, ainda sentado ao meu lado. Estendi a mão e baguncei o cabelo dele.
— Não tenho como listar todos os motivos. Só saiba que estou muito feliz em ter você ao meu lado.
Meu ataque de “amor surpresa” o atingiu em cheio. Ele não conseguiu sustentar meu olhar e corou intensamente, o que é engraçado para seres de pele azulada.
Meu companheiro se levantou, tentou se recompor e disse:
— É recíproco — Thermon ainda não conseguia me olhar nos olhos. Achei aquilo muito fofo. — Agora vamos voltar. Precisamos descansar.
Ele estendeu a mão e usei o apoio para levantar do balanço.
— Sinto que conseguiria dormir por vários dias — brinquei.
Ven’e, o Escolhido dos anões, usando suas incríveis habilidades para controlar minérios, criou uma espécie de anexo na casa de Rubía, mãe de Listro. As paredes de pedra lisa e acinzentada combinavam com a humilde moradia. Agora tínhamos quartos para todos.
Thermon e eu ficamos em um quarto mais afastado. Meu companheiro usou água ambiente para congelar as paredes, criando um clima perfeito para nós, elfos-de-gelo, dormirmos.
No meio da tarde, todos do nosso grupo despertaram.
Eu, Thermon, Regi, Ven’e, Tobin, Mendir, Alvo e Pírio, novamente, estávamos na sala, sonolentos demais para conversar, quando Listro e Rubía abriram a porta de entrada. Elas foram até o mercado e voltaram com várias cestas, lotadas com alimentos.
— Enquanto estiverem aqui, ficarão bem alimentados. Algum de vocês sabe cozinhar? Vou precisar de mãos extras na cozinha — Rubía perguntou, ao deixar no chão as cestas que trazia.
— Eu sei uma coisa ou duas, posso ajudar — Mendir levantou, indo em direção a Listro e Rubía, para ajudá-las a carregar as cestas.
Antes que Mendir e as duas sumissem na cozinha, Alvo falou:
— Mendir, você não disse que nasceu aqui, em Porto-Norte? Se quiser, depois, pode ir visitar seus familiares.
Mendir parou entre o corredor que levava a cozinha e a sala, não se virou antes de dizer:
— Isso não é da sua conta. Não me diga o que fazer!
Então ele seguiu nossas anfitriãs, desaparecendo pelo corredor.
O clima ficou pesado na sala.
Pírio tentou desconversar, chamando atenção para si, com uma tosse forçada.
— Ahem… Então, quais serão nossos próximos passos? Temos uma ideia do que a Rosa-dos-ventos fará, mas, e nós, o que faremos?
— Vamos esperar por mais informações de seu tio, Pírio. Se Rufo conseguir uma audiência com o rei, acredito que consigo persuadi-lo a os ajudar — Alvo comentou.
Ven’e, o Escolhido anão, entrou na conversa:
— Espera que seu rei nos entregue um exército de presente?
— Esse seria o melhor dos cenários. No pior dos casos seremos apenas expulsos da cidade.
— Animador… — Thermon brincou.
Logo em seguida começamos a jogar conversa fora, aguardando o pequeno banquete que Rubía, Listro e Mendir preparavam para todos.
Quando Rubía anunciou que estava pronto, nos enfileiramos na mesa da cozinha para pegar um prato. Todos famintos.
Havia cerca de seis recipientes grandes, dispostos na mesa, repletos com alimentos. Duas com carnes, duas com ensopados, outra com peixes e a última com diversos tipos de carnes empanadas.
— Senhora Listro, estou vendo todo tipo de alimento preparado, mas acho que não vou conseguir comer — disse o pequeno elfo, Tobin, meio cabisbaixo. — Sou vegetariano, lembra? Vou atrás de algumas frutas na carroça.
Ela se curvou um pouco, para ficar na altura do garoto.
— Acha que eu esqueceria de você, Tobin? — Listro apertou uma das bochechas do rapaz. — Aqui, esta panela é só para você. Ensopado de verduras e legumes. Ideia do Mendir.
O rosto do garoto iluminou. Ele olhou para o cozinheiro ajudante, que estava no canto da cozinha e disse:
— Obrigado, Mendir!
Mendir, por sua vez, ficou sem graça. Ele cruzou os braços e focou seu olhar em um dos armários de Rubía, e falou:
— Não precisa agradecer. Todos temos que comer, não é mesmo…
Percebi que Mendir era uma boa pessoa. Por mais que, às vezes, ele fosse ríspido com Alvo, não significava que ele era assim com todos.
Depois de nos servirmos, voltamos à sala e começamos a comer.
— Pelas barbas da minha mãe, isso é uma delícia. Obrigado pela comida, pessoal! — Ven’e agradeceu.
Coloquei o garfo de carne na boca e quase não contive um gemido de prazer com a comida. Pela segunda vez desde que cheguei em Porto-norte comia algo extremamente saboroso.
O momento foi bem relaxante. Todos se empanturraram até ficarem satisfeitos.
Perto do anoitecer, quando o cheiro de comida ainda pairava no ar, ouvimos batidas na porta.
— Quem é? — Perguntou Alvo, que estava mais perto da porta.
— Um mensageiro. Senhor Rufo me enviou.
Todos nos entreolhamos.
Alvo se levantou e abriu a porta para o rapaz. Ele não devia ser mais velho que eu.
— Desculpe a intromissão. Recebi a ordem para entregar isso em suas mãos, senhor Alvo.
Mesmo sem se apresentar, o rapaz sabia quem Alvo era. Isso poupou tempo.
— Obrigado.
O mensageiro deu meia volta e sumiu na escuridão da noite.
Alvo fechou a porta atrás de si enquanto desenrolava o pergaminho.
Ele passou os olhos pela mensagem, usando a luz das velas recém acesas para ler.
— Ele conseguiu. Vamos ter uma audiência com o senhor Grenford — Alvo olhou para mim e Thermon, sentado ao meu lado. — Amanhã, após o almoço. Rufo pede que apenas eu, Ven’e, Jouci e Thermon compareçam.
— Os três Escolhidos e nossa líder? Parece razoável — Ven’e comentou, passando a mão na barba.
Eu ainda não tinha aceito esse posto honorário como líder, então esse tipo de comentário me irritou um pouco.
Thermon percebeu meu cenho franzido, e chamou atenção para si:
— Vamos tentar tirar o máximo de proveito dessa audiência. Precisamos de aliados. E muitos deles!
Listro, a bela humana, levantou de seu banco perto da porta e cruzou os braços, pensativa. Ela disse:
— É bom preparar um bom discurso para o rei, Alvo. Ele estava uma fera com sua partida. Se quer a ajuda dele, vai precisar se ajoelhar e lamber o chão para o velhote.
Alvo não respondeu. Ao invés disso ele sentou perto da porta. Em seu rosto estava uma miríade de sentimentos. Raiva? Angústia? Medo? Arrependimento? Não tinha como saber.
Percebi pelo canto do olho Mendir saindo da sala. Ele se dirigiu em direção ao anexo, criado pelo Escolhido dos anões. Provavelmente ele queria ir ao seu novo quarto.
Percebi que, dentre os integrantes do grupo de Alvo, ele era o mais distante. Tobin, Pírio e até mesmo Ven’e interagiram bastante com o restante de nós, o que deixava alguém mais introspectivo como Mendir de lado.
Regi começou a conversar com Thermon sobre alguma coisa sobre Porto-Norte, então tomei uma iniciativa que não parecia decisão minha. Fui em direção a mendir, nos cômodos anexos.
Quando alcancei a porta de seu quarto, ele estava segurando uma espada embainhada, sentado na cama de pedra.
Decidi falar devagar, para não assustá-lo com a intromissão repentina.
— Olá, Mendir… Não nos falamos muito até agora, mas gostaria de ter uma palavrinha com você.
O rapaz pareceu confuso. Ele segurou a espada mais perto do corpo, franziu o cenho e disse:
— Claro… O que quer falar?
Ele estava na defensiva, mas não o culpei. Éramos estranhos. Nos conhecemos há menos de dois dias e não interagimos diretamente nesse período.
— Sei que estou sendo intrometida, mas não pude deixar de notar o modo como você tem interagido com Alvo, ainda mais quando ele falou você podia visitar sua família… — Me aproximei um passo, com as mãos a frente do corpo, mostrando que, figurativamente, não estava ali para machucá-lo. — Pode me contar o motivo de ter reagido daquela forma?
Mendir não sabia o que fazer. Olhou em volta, buscando um apoio, como se estivesse à deriva em alto mar, prestes a se afogar. Ficou óbvio que este tema não era algo que ele queria compartilhar.
— E-Eu… Bem… Não quero falar sobre isso!
O rapaz não foi ríspido ou subiu o tom de sua voz. Ele parecia apenas cansado.
Aproximei mais um passo. Eu pensei: “Por que estou fazendo isso? Deixa ele em paz, Jouci!”. Mesmo assim, continuei:
— Não me importo com esse “título” de “líder”, mas me importo com a estabilidade desse grupo. Preciso que todos estejam dispostos e em sintonia! — Firmei a expressão em minha face, demonstrando seriedade. — Essa luta não é só de nosso grupo. Meu lar corre perigo. Preciso de cada um em seu máximo!
Ele era esperto, dava para notar. Ele entendeu o que eu estava dizendo. “Um grupo rachado é o mesmo que não ter grupo algum”.
— Não se preocupe, Jouci. Sei da seriedade de nossa missão. Apenas fui babaca com Alvo momentaneamente. Não vai se repetir.
Ele quase abraçava sua espada, olhando para os meus pés, como se sentisse vergonha.
— Mendir, o grupo estar em sintonia não significa apenas entre integrantes. Se um de nós tiver algum assunto inacabado, pode acabar nos atrapalhando em nossa jornada — Me sentei ao lado dele na cama improvisada. — Por favor, me diga o que se passa! Às vezes só precisamos de alguém para nos ouvir…
A última frase o afetou mais do que qualquer outra dita por mim ou Alvo.
Ele murchou. Ombros curvados e olhar entristecido.
— Nunca falei sobre isso com ninguém antes… Como espera que eu me abra assim, do nada?
Seu olhar apertou meu coração, tamanha a tristeza que demonstrava. O assunto era realmente delicado, para deixá-lo dessa maneira.
Respirei fundo e coloquei a mão direita em seu ombro esquerdo. Sem palavras eu estava dizendo: “Estou aqui”.
Com isso uma sensação estranha subiu pelo meu estômago, passou pelo meu braço até a palma da minha mão. Era um calor reconfortante, que senti passando de mim para Mendir.
O rapaz respirou fundo, piscou forte algumas vezes e me olhou nos olhos.
— O que fez? Me sinto mais leve, mais disposto… Mais contente? — Seu cenho franziu mais uma vez, tentando entender seus próprios sentimentos.
Tão incrédula quanto Mendir, levantei e observei as palmas de minhas mãos. A sensação quente ainda estava lá.
Percebi Alvo entrar no quarto, assustado. Thermon o seguia de perto.
— Quem está aqui? Senti a mana de alguém diferente… Uma mana que nunca senti antes, vinda desse quarto. O que está acontecendo?
Alvo parecia aflito. Thermon não perguntou nada, mas seus olhos demonstravam muita preocupação.
Meu companheiro se aproximou. Aproveitando a sensação que ainda sentia em minhas mãos, toquei o pulso dele. Thermon arregalou os olhos conforme meu toque modificava suas emoções.
— Thermon, o que está sentindo agora?
Eu, Mendir e Alvo prestamos atenção nele.
— Fiquei mais calmo, do nada. O que é isso?
— Aí, foi isso que senti. Essa mana… O que fez, menina? — Alvo perguntou, com certo espanto na voz.
Pensei um pouco, mas uma resposta objetiva não vinha em minha mente. Expliquei o pouco que entendi:
— Acho que consigo controlar emoções!
“Esse é o último presente que concedo a vocês…”
Deus Verde

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