Capítulo 100 - Banho noturno. X
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As pessoas sempre procuravam conforto em tempos de necessidade, este era o caso de Tyrant. A princípio, ela não soube explicar a maneira repentina de como estava agindo. Se fosse no passado, ela nunca teria a coragem de relatar o seu passado de forma honesta e sem esconder os acontecimentos. Isto fugia da sua linha de raciocínio, ainda mais quando a pessoa para quem estava contando era praticamente um desconhecido.
No momento em que recebeu o abraço do garoto, a vidente não o afastou. Decidiu tomar aquele abraço caloroso e se permitir fechar os olhos por um momento.
Depois de alguns minutos, ela recuou e agradeceu aos dois rapazes que tiveram que ouvir toda aquela história; que na visão da senhora, parecia entediante.
— Obrigada por me ouvirem até o final… Eu consegui tomar coragem para contar a minha história… O meu pesadelo, minha tragédia — comentou em agradecimento, embora seu semblante estivesse ligeiramente resignado no rosto.
Em resposta, o homem-fera disse com o timbre áspero e grave de suas palavras que ecoaram nas paredes de madeira escuras do aposento de Tyrant.
— Deve ter sido muito difícil para você. Obrigado por sentir a confiança necessária para nos contar sobre isso.
No momento seguinte a isso, ele logo declarou em pensamentos consigo mesmo: “A sua situação é semelhante à minha, entendo como ela deve estar se sentindo. Embora tenha nos conhecido a pouco tempo, ela teve coragem de nos contar toda a sua história… acho que eu não conseguiria caso Rei não estivesse por perto”.
— Não consigo nem imaginar como deve ter sido doloroso. Eu te admiro pela sua persistência ao querer se libertar daquelas amarras que você chamava de vida — disse Rei da maneira mais educada que conseguiu, contrastando com a sua personalidade grossa. — Você é uma mulher forte, não se preocupe com mais nada, está tudo bem.
“Sério, cara… Que merda de situação. Ela passou por tanto sofrimento. Fico feliz que tenha sobrevivido até aqui, mas seu coração está destruído. Gostaria de ajudar, mas não posso fazer nada em relação a isso.”
Pensou por um instante o estudante, com um leve sorriso no rosto.
— Obrigada.
Agradeceu a vidente, enquanto limpava os resquícios de lágrimas que escorreriam pelo rosto pálido.
— Espero que você tenha entendido tudo que tive que passar durante esses anos. Sendo honesta, não pensei que contaria todas essas coisas.
Acrescentou ela momentos depois, após se acalmar.
— Sim. Foi mais do que o suficiente — comentou Rei, dando um amplo sorriso em resposta.
— Está ficando bem tarde, eu vou subir e preparar o quarto para vocês. O tempo passou tão rápido, não pensei que já estaríamos de madrugada. Vocês precisam descansar também!
Ela disse em surpresa, após olhar para o lado de fora da janela e notar como a posição da lua estava quase em direção ao local em que o sol normalmente ficava. Tyrant levantou-se e seguiu caminho até as escadas, indo para o segundo andar.
Enquanto os dois rapazes esperavam pelo retorno da vidente, o estudante encarou Kazuki e puxou conversa. O homem-fera parecia perdido em pensamentos nesse momento, sequer conseguia manter uma expressão firme em sua face.
— Cara, não esperava que a história dela fosse tão sinistra. Se ela não tivesse fugido, ela seria a rainha do reino humano, certo?
Ele respondeu, mas com o olhar envolto para o chão e o timbre da voz ríspido e seco.
— Eu também fiquei sem saber o que dizer. A história daquela senhora se parece com a minha. Quando pensei que ela finalmente conseguiria alguma paz depois de fugir, os guardas a encontraram e mataram o seu mestre.
Assim que disse isso, Kazuki complementou o seu comentário, depois de perceber como o estudante parecia mais revoltado que o habitual.
— Infelizmente esta é a pura realidade, Rei. Pessoas que não possuem poder acabam tendo que passar por situações similares. A história dela é impactante justamente por ela ter sido de uma posição social elevada, mas outras mulheres nobres, e de famílias mais pobres, também passam por isso. Não é raro no reino dos homens feras, a prometida de uma família nobre fugir. Essa é a dura realidade deste reino dentre outros. Normalmente, essas mulheres nobres acabam tendo o mesmo destino que a Tyrant, ou ainda pior, acabam sendo molestadas ou mortas.
— Ninguém nunca tentou mudar esse sistema? Mas que droga de realidade. Se eu tivesse nascido em um mundo assim, onde até mesmo a moral e a ética são questionáveis, eu preferiria morrer mil vezes!
“Ser forçada a se casar por causa de sua família, eu não entendo, até parece que voltei para a idade média. Já percebi que a liberdade é relativa nesse pedaço de merda, ninguém tem os mesmos direitos…”
Antes que Kazuki pudesse responder, os passos de Tyrant são ouvidas à distância. Nas escadas, a vidente gritou pouco depois de descer.
— Eu arrumei o quarto de vocês, tudo bem vocês dormirem juntos? O outro quarto está uma bagunça, infelizmente deixei as matérias de alquimia nele.
— Certo.
— Eu vou indo primeiro então, estou cansado — disse Kazuki, indo de caminho ao cômodo que a senhora acabara de arrumar.
— Ok.
O estudante estranhou o comportamento apressado do seu companheiro, mas não teve tempo em perguntar e apenas concordou.
— Tyrant, tem algum banheiro aqui? Eu preciso tomar banho.
— Tomar banho? — perguntou ela em resposta, sem entender o que aquele termo significava.
— Tomar banho é igual a se lavar — explicou.
— Ah, sim… bem, infelizmente não, meu jovem. Normalmente eu me limpo no rio Nertyrem que está logo em frente a minha casa.
— Saquei. Bem, não tem jeito então.
— Você vai se lavar agora, jovem?
— Sim, tem algum problema?
— Não.
Ela ficou surpresa com aquela tomada de decisão, ainda mais considerando como estava tarde da noite. A escuridão era visível, era quase impossível ver o interior das águas do rio Nertyrem aquelas horas.
— Vou nessa.
— Espera…
— … Aqui jovem.
Ela comentou após pegar uma pequena toalha de seu armário e o entregar.
— Use esse pano para se secar, e leve essa lampadinha para clarear o arredor. Essa região é segura, mas sempre é bom ter cuidado.
— Obrigado, velhota.
(…)
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