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    9 de Agosto.

    Havia um vento forte e frio que trazia o cheiro triste do lugar. Esse cheiro era uma miscelânea de sangue, do doce enjoativo de flores podres que já se acumulavam no portão. Mais do que a violência óbvia, o que sobrava era uma sensação de abandono profundo, como se o próprio tempo tivesse fugido daquele lugar, recusando-se a continuar.

    No exterior, na área demarcada pela fita amarela que separava o mundo dos vivos do dos mortos, uma multidão de pais destronados da sua normalidade sofria em agonia. Os seus gritos formavam uma cacofonia desesperada de acusações lancinantes e preces dirigidas à Deus, com quem a humanidade parecia ter rompido o contrato. 

    Homens desfaziam-se em lágrimas convulsivas, enquanto as mães, de joelhos no asfalto, tremiam num silêncio mais eloquente que qualquer palavra. A dor era muito grande e podia ver-se, mas não se conseguia dizer como era, tal como um fogo que a consumia por dentro.

    O massacre acontecera há menos de 24 horas e já estava sendo dilacerado pela máquina de informação. Especialistas formulavam teorias em transmissões ao vivo, analistas políticos discutiam o efeito da tragédia na segurança nacional, enquanto parlamentares disputavam para transformar o horror em um discurso mais aconchegante. A divisão do país estava prestes a ocorrer entre aqueles que atribuíam a culpa à negligência institucional e aqueles que afirmavam que a verdadeira questão residia em algum aspecto obscuro da moralidade dos jovens.

    Reduzir o debate a uma simples batalha entre a favor e contra as medidas de controle de armas era uma simplificação perigosa, ao transformar uma crise multifacetada em lemas eleitorais.

    Os mesmos políticos que, ano após ano, aprovaram cortes orçamentais para programas de apoio psicológico nas escolas, apareceram agora diante das câmaras para lamentar a lacuna na saúde mental dos jovens. Os mesmos indivíduos que anteriormente se opunham a investimentos em segurança escolar não letal agora exigem respostas imediatas de profissionais sobrecarregados e subfinanciados. A enorme hipocrisia que dominava aquele cenário de luto era tão evidente quanto o sabor da morte suspenso no ar, um veneno político que envenenava qualquer possibilidade de debate honesto.

    Os Estados Unidos mostrava, mais uma vez, a sua contradição trágica, ao conseguir horrorizar-se com consequências que, obstinadamente, se recusa a prevenir. A capacidade de transformar jovens em mártires de uma guerra cultural que nunca precisou de acontecer era revelada como sendo excepcional pelo país do excepcionalismo.

    O interior da escola era um templo desfigurado. As luzes piscavam intermitentemente, projetando sombras incômodas nas paredes encardidas, enquanto a Unidade Expedicionária de Caça trabalhava como se cada segundo fosse uma questão de sobrevivência. Os rádios não paravam de transmitir ordens, relatórios e códigos. Homens e mulheres, vestindo uniformes pretos, circulavam de sala em sala, coletando evidências para tentar decifrar o que restara da carnificina.

    O oficial dirigiu-se para o corredor principal, endireitando o casaco preto comprido que balançava levemente à sua volta enquanto caminhava. Tinha cerca de trinta anos e carregava nos ombros a seriedade de alguém que já tinha visto mais do que desejava. Os olhos escuros, sombreados por sobrancelhas ligeiramente franzidas, penetravam em tudo o que viam, captando os detalhes com tal intensidade que provocava uma certa incomodidade.

    Os seus cabelos castanhos, divididos ao meio, estavam devidamente penteados e brilhavam sob a luz branca. 

    Ajeitou o colarinho da camisa, revelando um relógio caro no pulso. Parou por um instante, olhando para os corpos alinhados sob as lonas brancas, cujas bordas estavam tingidas de um vermelho seco. 

    — É, cá estamos de novo. A mesma merda de sempre. Tragédia, indignação, promessas vazias… e aí tudo volta ao normal, porque, claro, resolver de verdade dá trabalho.

    Próximo a uma poça escura ainda não seca, um jovem agente se abaixava para inspecionar um rastro que se estendia até uma pilha de destroços. Ele era magro, tinha o cabelo raspado e um semblante que os poucos anos na U.E.C. já haviam sido capazes de criar, mas a juventude ainda deixava transparecer a humanidade que seu líder já havia perdido.

    — Ainda acha que dá pra mudar alguma coisa, Becker? — perguntou. — Porque eu tô tentando lembrar a última vez que acreditei nisso.

    O garoto soltou um suspiro pesado, desviando o olhar para o chão. Passou a mão pelo rosto, como quem espanta um pensamento ruim.

    — Não sei, senhor Arthur. Talvez eu só queira acreditar que a gente tá aqui pra algo mais do que limpar o estrago depois que tudo já deu errado. — Ele chutou uma mochila caída no chão, o zíper aberto revelando um estojo manchado de vermelho. — Mas, pra ser sincero, tem dias que nem isso parece verdade.

    O homem tragou o cigarro que acabara de acender, segurando a fumaça por alguns segundos antes de soltá-la lentamente. Seus olhos, escuros e cansados, encaravam o horizonte como se buscassem uma resposta que não viria.

    — Escuta, garoto, vou te dizer uma coisa que ninguém gosta de admitir. — Ele fez uma pausa, apontando o cigarro aos arredores. — Isso aqui não é sobre consertar nada. Nunca foi. É sobre controlar o estrago. Sobre garantir que, quando acontecer de novo, e vai acontecer de novo, eles tenham um nome, uma cara e um motivo fácil pra colocar no noticiário.

    Becker deu uma risada amarga, balançando a cabeça. Ele levantou os olhos e o encarou.

    — Ah, claro, o culpado perfeito. O moleque que era problemático, que ninguém ouviu, que jogava videogame violento ou sei lá. Sempre é assim, né? Eles inventam uma narrativa bonitinha e todo mundo engole. É mais fácil do que olhar pro problema real.

    Arthur sorriu de canto, um sorriso cínico que não tinha nada de alegria. Ele apontou com a cabeça para o resto do pátio.

    — Ninguém quer encarar isso, porque o problema real é o sistema. E o sistema não tá quebrado. Ele tá funcionando exatamente como foi projetado. — Ele tragou novamente. — Esse massacre não é acidente, é consequência.

    A conversa foi interrompida por passos apressados. Uma Agente da Analista de Inteligência aproximou-se com um tablet nas mãos, os olhos fixos nele antes de erguer o rosto para encará-los.

    — Encontramos um sobrevivente. Ala leste. É um garoto. Gravemente ferido, mas consciente. Parece que ele viu tudo.

    O líder virou-se. Seus olhos se estreitaram, analisando a informação.

    — Um sobrevivente… — murmurou, como se estivesse mastigando a ideia. — Cuidem dele. Não importa o estado, ele fala. Preciso saber o que aconteceu.

    A Analista assentiu, já digitando no tablet.

    — E se o que ele disser não agradar ninguém? — perguntou Becker.

    Arthur nem olhou para trás.

    — Então que se foda quem não gostar. Já ouvi mentiras demais pra deixar isso passar.

    Sim, os sobreviventes traziam respostas, mas também levantavam novas perguntas — perguntas que nem sempre possuíam respostas simples. O homem estava ciente de que a investigação se prolongaria por semanas, talvez meses, e que, ao final, o custo emocional acrescentaria mais uma cicatriz à memória coletiva. Era uma cena com a qual ele já estava familiarizado.

    — Certo. — disse, virando-se para ambos. — Vocês dois cuidem disso. Vão até lá e façam o que for preciso. Eu…

    Ele olhou para a entrada da escola, onde um mar de pais angustiados e jornalistas famintos por declarações aguardavam.

    — Eu preciso me resolver com aquela gente.

    O Agente acenou afirmativamente com a cabeça, preparando-se para partir. 

    O líder atravessou as fitas de isolamento até alcançar o grupo de repórteres e pais angustiados.

    Ele conhecia bem o que dizer. Já havia passado por isso inúmeras vezes. Consciente de que suas palavras proporcionariam algumas horas de alívio àquelas pessoas, ele considerava isso suficiente por ora.

    Ao se aproximar dos microfones, os flashes das câmeras banhavam seu rosto com luz. Novamente, ele se encontrava no epicentro de uma tragédia, um líder entre ruínas, empenhado em remendar uma realidade irreparavelmente danificada.

    “Isso vai virar circo.”

    Aproximou-se da porta, observando o que se desenrolava do lado de fora.

    — Sei que todos aqui estão vivendo o pior dia de suas vidas. E sei que nada do que eu disser vai trazer de volta quem vocês perderam.

    O impacto foi instantâneo. Alguns rostos se contorceram, outros foram marcados por lágrimas mudas.

    — A Unidade Expedicionária de Caça está aqui para garantir que a verdade sobre o que aconteceu seja descoberta. Estamos trabalhando junto às autoridades e vamos utilizar todos os recursos disponíveis para trazer à tona o que levou a esse massacre. Vamos investigar cada detalhe, cada pista, e não vamos descansar até termos todas as respostas.

    Ele pausou, observando a multidão. A tensão era quase tangível, como se a qualquer instante, alguém pudesse perder o controle.

    No pano de fundo da multidão, um pai se destacava. Seus punhos estavam tão cerrados que os nós de seus dedos acabavam esbranquiçando. Ele conhecia bem essa expressão. Ela pertencia a alguém que estava à beira do desespero, ansiando por uma explicação, por alguém que explicasse a agonia que estava dominando seu coração.

    Mesmo assim, não podia se acovardar. Sabia de que seu papel ali não se restringia a ser a voz da sensatez, mas também a de direcionar a indignação. E tinha ciência de que o verdadeiro culpado provavelmente não seria descoberto — ao menos, não da maneira que o público ansiava.

    — Eu entendo que nenhuma investigação, por mais completa que seja, vai devolver a vocês os entes queridos que perderam hoje. Mas é nosso dever garantir que essa tragédia não seja esquecida.

    Enquanto discursava, o burburinho entre os jornalistas intensificava-se. Eles registravam cada palavra, captando o discurso com um fervor que o homem reconhecia. Ele estava ciente de que suas palavras teriam um efeito imediato — serenariam os ânimos, dominariam as manchetes. Contudo, não se deixava enganar. Sabia que, passado o ímpeto inicial, a tragédia seria absorvida pela rotina acelerada das notícias, cedendo lugar a outro evento igualmente lamentável.

    — Que as memórias dos que se foram sejam nossa força. Que essa tragédia seja o último de sua espécie. E que, unidos, encontremos um caminho para a justiça.

    Ao concluir sua declaração, o homem deu um passo atrás, abrindo espaço para as indagações. Por agora, tinha desempenhado seu papel. O esgotamento começava a tomar conta dele. No íntimo, compreendia que o pesar voltaria em forma de memórias, como já ocorrera antes. No entanto, por ora, mantinha-se firme.

    10 de Agosto.

    No coração silencioso da escola, nasceu um memorial improvisado da dor coletiva. Fotografias emolduradas foram transformadas no corredor outrora banal num santuário de lembranças espontâneas. Algumas vibrantes e transbordantes de alegria, outras adornadas com mensagens de amor as quais as lágrimas mancharam.

    Naquele lugar, pais, professores e crianças reuniram-se num misto de comunhão que não precisava de palavras para expressar o pesar partilhado.

    Os rostos sorridentes que as fotografias preservam, como testemunhas mudas das vidas interrompidas, ergueram-se como lembretes cruéis da alegria que ofereceram um dia àqueles que mais os amaram. Cada imagem era como um epitáfio para o futuro que não iria acontecer.

    Neste espaço marcado pela dor, a fragilidade da vida mostrou-se de forma crua. A vida mostrou o seu lado mais paradoxal com a sua capacidade de criar belezas tão intensas quanto efêmeras e laços tão fortes quanto frágeis. E no mutismo entrecruzado dos aflitos, uma verdade irrefutável ressoou que o maior louvor às vidas extintas poderia residir na bravura de prosseguir a amar num mundo que, com frequência brutal, evidencia o ônus do amor.

    Mas o silêncio tinha um peso adicional. Além das perdas mútuas, houve uma reviravolta na comunidade. A mídia ficou fascinada com a catástrofe, e um editorial expressou a indignação em ebulição. Foi um grito de angústia e indignação, uma condenação direta da violência que havia destruído o mundo deles.

    “Erguemos as nossas vozes para condenar veementemente o responsável por este ato atroz, exigindo a mais severa punição. Que a memória deste ato de violência hediondo permaneça gravada na história como um terrível e inegável lembrete da nossa necessidade urgente de enfrentar o mal e proteger vidas inocentes.

    Este é o pior dos pesadelos, uma cicatriz profunda e indelével na alma da humanidade que clama por justiça e ação decisiva para garantir que a nossa sociedade seja um lugar seguro para todos, especialmente para as vítimas cujas vidas foram brutalmente ceifadas.

    Entretanto, em vez de nos limitarmos a lamentar, temos de agir, assumir responsabilidades e reformar o país, para que um dia possamos dizer verdadeiramente que honramos a memória daqueles que perdemos.

    Honrar a memória daqueles que perdemos não deve ser apenas uma declaração de condolências vazia, mas um compromisso coletivo de mudança. Não podemos deixar que esta tragédia seja esquecida pelo tempo, como tantas outras. Temos de transformar a nossa dor em ação, a nossa tristeza em determinação. Não podemos continuar a ser prisioneiros da nossa própria negligência. A nação tem de acordar para o custo contínuo da inação, para o preço do nosso silêncio em relação à violência que nos aflige.

    Os nossos corações estão pesados, mas é tempo de agir, de nos responsabilizarmos pela tragédia que permitimos que persista.”– The Boston Globe.

    O editorial publicado nos jornais diários foi um apelo urgente para que a sociedade unisse forças para construir um futuro mais seguro.

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