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    Em uma manhã atípica de São Paulo, onde um raro fio de luz solar rasgou o habitual manto cinzento, Ana abriu cansados olhos cor de mel.

    Não por vontade própria, mas porque o despertador decidiu que era hora de lembrá-la de sua insignificância diante da rotina. O barulho estridente não anunciava apenas o início do dia. Ele decretava, com a precisão cruel de um carrasco pontual, o retorno inevitável ao ciclo tedioso que ela ainda insistia em chamar de vida.

    A claridade suave espalhava-se pelo quarto, tocando os objetos dispersos como se tentasse lhes dar algum significado. Livros empilhados na estante, fotografias desbotadas adornando as paredes, plantas que resistiam teimosamente ao esquecimento. Tudo ali era um pedaço dela — ou, talvez, apenas um eco. Pequenos lembretes de quem um dia foi, de onde veio, de todas as promessas que um dia fez a si mesma e esqueceu de cumprir.

    Um suspiro escapou de seus lábios.

    — Mais um dia…

    Entre murmúrios e um espreguiçar preguiçoso, ela se levantou.

    A água do chuveiro escorria pelo corpo, quente o suficiente para embaçar o banheiro inteiro. Mas nem todo o vapor do mundo poderia lavar a sensação de estagnação que a acompanhava.

    No meio da correria matinal, parou.

    O reflexo no espelho devolveu seu olhar com uma intensidade incômoda.

    A roupa social a sufocava.

    Mais um dia. Mais um passo para lugar nenhum. 

    Onde foi parar a menina que corria descalça pelas ruas do bairro? Aquela que ria sem motivo, que sentia o vento bagunçando os cabelos enquanto inventava mil e uma aventuras? Será que ela ainda estava lá, escondida em algum canto, esperando ser lembrada?

    E, se estivesse… seria possível largar tudo para resgatá-la?

    A resposta veio antes mesmo que pudesse formular a pergunta por completo.

    Não.

    Não era tão simples. Nunca era.

    Fez um rabo de cavalo apressado em seu rebelde cabelo castanho e ignorou a sombra de si mesma que a olhava do outro lado do vidro, um resquício do que realmente desejava ser.

    O café foi preparado no piloto automático — o que, convenhamos, não era muito diferente da forma como ela vivia ultimamente. 

    Enquanto passava os olhos pelas notícias, absorvendo as tragédias do dia como se fosse um ritual matinal, seu cérebro ponderou, sem muita convicção, que talvez um apocalipse não fosse uma ideia tão ruim assim. 

    Mas o trânsito continuava caótico, as fofocas das celebridades permaneciam irrelevantes e o mundo, teimoso como era,  não acabaria tão cedo. 

    Infelizmente.

    — Mãe, pai, estou saindo!

    A frase saiu baixa demais, quase um sussurro. Quase um pedido de desculpas.

    O clique suave da porta se fechando foi a única resposta que recebeu.

    Ana já morava sozinha, mas sua família estava passando uns dias ali. Seus pais, ambos na casa dos cinquenta, estavam deitados, ainda dormindo, no colchão improvisado na sala. Jasmim, sua irmã pequena, estava encolhida no velho sofá, os cabelos, uma réplica quase exata do seu próprio,  espalhados sobre o travesseiro.

    Ela os amava. De verdade.

    Mas a presença deles exigia sorrisos.

    E ultimamente, sorrisos eram exaustivos.

    No caminho para o trabalho, Ana observava a cidade despertar ao seu redor. Ou melhor, se arrastar para fora da inconsciência coletiva.

    São Paulo, como sempre, parecia estar de mau humor.

    Ônibus bufavam como dragões mecânicos irritados, expelindo nuvens de fumaça preta que se misturavam ao céu já saturado. Os ambulantes montavam suas barracas com a resignação de quem sabia que enfrentaria outro dia de batalhas contra fiscais, clientes folgados e a própria sorte.

    Era um ritual diário, uma coreografia frenética de pessoas indo e vindo, cada uma afundada demais em sua própria história para notar que todas se pareciam.

    E Ana?

    Ana caminhava como uma peça perfeitamente encaixada na engrenagem da metrópole. Ou pelo menos era isso que tentava se convencer enquanto afundava no fluxo de pessoas sem rosto.

    O escritório onde passava seus dias era uma extensão da selva de concreto que engolia a cidade.

    Uma gaiola de vidro. Um labirinto de cubículos impessoais.

    Apenas mais um tijolo na parede da rotina.

    Sentia-se uma prisioneira de luxo, trancafiada por escolhas que talvez nunca tivesse feito de verdade.

    Assim que entrou, foi recebida pelo burburinho habitual dos colegas de trabalho. O ar condicionado zumbia, misturando-se ao som de conversas rápidas e teclados incessantes. A esse ponto, já nem prestava mais atenção — o ambiente parecia um rádio mal sintonizado que tocava todos os dias na mesma frequência.

    — Bom dia, Ana! Como foi o fim de semana? 

    A pergunta veio junto com um baque seco de pilha de documentos. Havia também ali um sorriso, um protocolo de civilidade que ele provavelmente já esqueceu no instante seguinte.

    — Tranquilo — respondeu a jovem adulta, enquanto pensava em como, na verdade, cada minuto foi preenchido pelo vazio. 

    O silêncio. O tédio.

    A sensação de estar vivendo sem realmente viver. 

    Claro, não era isso que João queria ouvir. Então, tranquilo, bastava

    — E o seu? 

    — Ah, o de sempre. Fiquei em casa assistindo futebol. Você não imagina o jogo do Corinthians!

    Seu entusiasmo era palpável, mas as palavras chegavam até Ana como ruído branco.

    — Parece divertido. Eu nem lembro o que fiz, passou voando…

    E com um encolher de ombros, voltou ao trabalho.

    O silêncio entre eles foi rapidamente preenchido pelo som monótono dos teclados.

    Ela sabia que a conversa anterior não significava nada.

    Os colegas de trabalho, com quem trocava sorrisos e cumprimentos mecânicos, sabiam tão pouco sobre ela quanto ela sabia sobre eles. Falavam de prazos, reuniões e o ocasional comentário sobre o tempo, mas nunca de coisas que importavam de verdade.

    Sonhos? Medos? Propósitos?

    Não havia espaço para isso. E assim, o expediente seguiu.

    Ana mergulhava em suas tarefas como quem se joga num mar sem ondas. Ali não existia qualquer paixão ou desafio, somente o que se esperava dela. Encaixava-se perfeitamente naquele não tão renomado escritório. 

    Competente? Sim. Confiável? Também. 

    Mas, enquanto sua mente se dissipava entre gráficos e planilhas, ela se perguntava, com um cansaço quase cômico, se era só isso.

    Se o grande plano da vida terminava ali.

    Se todo o esforço, todas as escolhas, todos os “um dia eu ainda vou” haviam sido reduzidos a isso.

    E, no fundo, a pior parte não era a monotonia. 

    Era a possibilidade de que a resposta fosse sim.

    Em dias assim, nos intervalos entre um café morno e um e-mail sem importância, Ana fechava os olhos e viajava.

    Não para dentro das telas que a cercavam ou para o próximo prazo apertado.

    Mas para terras desconhecidas.

    Montanhas cobertas de névoa. Mares selvagens cortados por velas negras. Cidades vibrantes de culturas que jamais conheceria.

    “Quando terei meu tão esperado encontro fortuito?”

    O pensamento veio carregado de ironia. 

    Sorriu.

    Pequeno, cínico, daqueles sorrisos que não servem para nada além de lembrar a si mesma que era uma piada ambulante.

    Talvez estivesse lendo webnovels demais, sabia que era melhor dar uma pausa.

    Ajustando a gola da camisa, abriu os olhos.

    O mundo ainda estava ali. E ela ainda estava dentro dele.

    Ainda assim, não desgostava desses devaneios fugazes. Sabia que eram bobeira, mas eram uma bobeira útil — como um gole de café amargo que mantém a sanidade intacta por mais algumas horas.

    O tempo, no escritório, seguia seu próprio fuso horário — um onde os minutos se arrastavam como se estivessem presos em um engarrafamento sem fim. O sol já se punha quando finalmente se levantou, um suspiro longo saindo de seus lábios como um desabafo coletivo de todos os funcionários que se arrastavam para fora dali.

    — Até amanhã, pessoal.

    O aceno se perdeu no ar. Ninguém prestou atenção. E, sinceramente, nem deveria. O fazia apenas por educação.

    O metrô, por outro lado, sempre fora seu verdadeiro portal de fuga. 

    No vagão lotado, entre as dezenas de rostos cansados e os fones de ouvido tocando músicas que ninguém realmente ouvia, Ana encontrava seu próprio espaço.

    Lia um livro.Ou melhor, deixava que as palavras a puxassem para longe.

    Mas às vezes, odiava admitir, até os textos falhavam.  Restava-lhe a janela.

    Os prédios passavam como borrões, suas milhares de janelas iluminadas parecendo pequenas constelações artificiais.

    Estrelas feitas pelo homem.

    Estrelas que substituíam aquelas que um dia habitaram o céu, agora engolidas pelo brilho opaco da cidade.

    Então, apenas imaginava.

    O quê?

    Não importava. Só gostava de imaginar.

    Era uma vida simples. Uma vida de repetições, sim, mas também uma vida de pequenos prazeres. E era o suficiente.

    Até que deixou de ser.

    Seu celular vibrou. O movimento repentino quebrou o transe, a assustando.

    “Bora sair na sexta? O pessoal todo do trampo vai se reunir.”

    A mensagem foi repentina e inesperada, mal conversava com aquele ‘colega’.

    Ficou olhando para a tela. Deveria aceitar o convite? Parte dela queria. 

    Outra parte se encolhia ao pensar no esforço de socializar. Fingir sorrisos, comentar sobre amenidades. Rir de piadas que não achava engraçadas.

    Era mais fácil ir para casa.

    Mas e se estivesse se isolando demais? Não era saudável, diziam. Mas quem disse que ela se importava? Ela se importava? Suspirou. Pegou o celular. Digitou um ‘talvez’.

    Mas não enviou, porque foi nesse momento que, sem aviso, o extraordinário aconteceu.

    O céu decidiu que estava cansado de ser previsível. 

    Lá, entre os prédios, uma luz nasceu. Não um simples reflexo ou um efeito atmosférico qualquer — era algo que desafiava explicação, uma presença, um chamado com um esplendor incomum, impossível de se ignorar.

    Era como se o universo tivesse decidido fazer um espetáculo para a humanidade.  O que, honestamente, parecia um grande erro de logística do cosmos.

    A cidade, pela primeira vez em muito tempo, parou. As pessoas, tão acostumadas a correr, esqueceram do tempo.

    Era como se São Paulo — ou melhor, o mundo — tivesse prendido a respiração.

    Ana também prendeu.

    Porque aquilo… aquilo era tudo o que ela sempre desejou.

    Não apenas uma luz. Não apenas um fenômeno. Mas um… convite?

    Sim, certamente era um convite.

    Para algo maior? Ela não sabia. Mas aquela luz sussurrava promessas de mudança, de um destino além dos dias cinzentos e dos trajetos óbvios. Uma resposta silenciosa às súplicas que nunca ousou fazer em voz alta.

    — Estou sonhando acordada de novo… — murmurou, a voz carregada de descrença e esperança em medidas iguais.

    O tempo passou. Minutos, talvez horas.

    E a luz permaneceu lá, imóvel, intocada.

    Nenhum sinal de nave espacial, de explosões ou portais para outra dimensão. Apenas o brilho impassível, indiferente ao caos emocional que causava.

    Pessoas choravam, murmuravam teorias apocalípticas, e até mesmo seguravam as mãos umas das outras como se iluminadas por uma nova e gentil convicção. 

    O medo era quase palpável e os corações batiam descontroladamente. No entanto, estranhamente, ao contrário do que muitos pensariam, o caos nunca veio.

    Porque aquela luz possuía algo que ninguém conseguia nomear. Por algum motivo, prendia o olhar.

    Mas o mundo, como sempre, logo seguiu em frente.

    E a cidade, lentamente, fez o mesmo.

    Os ônibus voltaram a correr. As buzinas recomeçaram sua sinfonia impaciente. As preocupações voltaram a ocupar seus lugares de direito na mente coletiva.

    — O último ônibus para Barueri sai em cinco minutos! — gritou um cobrador, vendo que Ana ainda estava ali, olhando para o céu.

    Resignada, a jovem despertou. 

    Não havia respostas. Não havia milagres. Mas havia um ônibus.

    — Obrigada.

    Subiu as escadas do veículo, sentindo-se estranhamente… diferente.

    A luz ainda estava lá quando fechou os olhos no assento.

    E mesmo sem entender, mesmo sem saber se aquilo significava algo, deixou-se embalar por um pensamento simples:

    “Sempre há a possibilidade de algo surpreendente acontecer.”

    Pela primeira vez em muito tempo, mesmo exaurida ao limite, dormiu tranquilamente.
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