Índice de Capítulo

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    O tempo passou. Rápido, mas nunca monótono.

    Cada página virada era como um tijolo no castelo que a constituia. Cada novo aprendizado, um pequeno altar à única coisa que ainda fazia sentido: descobrir.

    Um dia, era carpinteira, moldando madeira, praguejando contra tábuas desalinhadas e tentando não martelar os próprios dedos. No outro, desmontava motores, coberta de graxa, amaldiçoando parafusos emperrados e questionando quem teve a brilhante ideia de inventar o motor a combustão.

    Aprendeu a programar, dançar, tocar instrumentos desafinados, consertar eletrônicos que talvez nem precisassem de conserto. O tempo deixou de ser um conceito abstrato e se tornou um projeto infinito, algo que só tinha valor quando preenchido com algo novo.

    Mas em algum momento… percebeu que queria subir.

    Literalmente.

    No começo, foi um desastre. Seu corpo, acostumado a desafios intelectuais, odiou cada segundo. Os braços tremiam, os dedos queimavam, os joelhos se arranhavam contra a parede áspera. A primeira tentativa foi com o muro do quintal e terminou com uma queda feia e um palavrão ainda pior.

    Mas um dia de cada vez, persistiu. Primeiro, superou o maldito muro. Depois, fachadas de comércios baixos, testando apoios improvisados, aprendendo o limite da própria força — que, sejamos honestos, não era grande coisa. Quando conseguiu subir sem sentir os dedos dormentes, percebeu: estava pronta.

    Com uma corda profissional presa à cintura — porque medo da morte certamente não lhe faltava — se arriscou a escalar seu primeiro prédio de verdade. 

    A subida foi cruel. Cada puxada era um lembrete da fragilidade do próprio corpo, cada avanço, uma batalha contra a gravidade. O vento sussurrava zombeteiro, o medo à espreita, esperando um erro. Mas antes que percebesse, agarrou a beirada final e, com um último impulso, ergueu-se sobre o topo do prédio.

    — Cansativo, mas gratificante! — arfou, sentindo os pulmões implorarem por oxigênio.

    Se apoiou nos joelhos, esperando o corpo parar de tremer, já planejando a descida. Mas então, o sol bateu em seu rosto. E ela olhou. E parou.

    Foi como ser atingida por algo invisível, um golpe mudo no estômago.

    O mundo se abriu diante dela.

    As ruas vazias, como se o próprio chão tivesse esquecido sua função. Os prédios desgastados, testemunhas silenciosas do tempo. As nuvens grandes e imponentes, pairando sobre o horizonte azul, indiferentes a tudo. E claro, as montanhas. Tão distantes, tão antigas, tão reais. Como se sempre estivessem ali, esperando que alguém finalmente olhasse para elas.

    Mas não foram as montanhas que fizeram seu peito apertar.

    Foram os pássaros.

    Centenas, talvez milhares, cortando o céu com uma liberdade que ela jamais conhecera. Eles não paravam, não hesitavam. Apenas iam. Algo dentro dela gritou.

    Uma emoção crua, sem nome. 

    Porque, pela primeira vez desde que ficou sozinha, reparou de verdade em algo maior do que si mesma. 

    Porque percebeu, com um frio incômodo na barriga, que… ela queria ir também.

    Não apenas sobreviver. Não apenas aprender. Mas viver.

    “Eu não ia… viajar?”

    A pergunta surgiu em sua mente como um eco esquecido, um sussurro de mais de uma década. Havia sido a primeira coisa que pensou ao acordar naquele fatídico dia.

    Seria incrível sair pelo Brasil. Sem destino. Sem limites. Viver cada paisagem que antes só conhecia através de fotos na internet, cada cidade, cada trilha, cada pedaço de mundo que seus olhos nunca tinham tocado de verdade.

    Mas então, o pensamento morreu antes mesmo de florescer.

    O Grande Vazio a assustava.

    Se viajar já era difícil antes, agora parecia impossível. Era engraçado — ou melhor, trágico — pensar que o desconhecido era tudo o que restava. E ela ainda não conseguia dar um único passo para fora da sua zona de conforto.

    O máximo que já ousara se afastar do pequeno apartamento que chamava de lar eram as cidades vizinhas — e apenas quando os mercados próximos ficaram vazios demais.

    Quando dormia longe dali… os pesadelos vinham.

    Eles sempre vinham.

    Via seus pais se desfazendo diante de seus olhos, como se nunca tivessem existido. Via seus pés presos ao chão, um peso invisível segurando-a enquanto todos ao seu redor partiam, desaparecendo sem olhar para trás.

    Lutava para se mover. Lutava com tudo para dar pelo menos um passo em direção a eles.

    Mas algo a mantinha ali. Parada. Sozinha.

    E então, acordava. Engasgando um grito, o corpo coberto de suor frio, os olhos arregalados fixos no teto, tentando se convencer de que nada daquilo era real.

    Mas era, não era?

    — Ainda não estou pronta… — murmurou para si mesma, tentando dissipar os pensamentos sombrios.

    Se obrigou a inspirar fundo.

    Abriu os braços, observou o céu acima, a cidade ao redor.

    A vista dali era magnífica. O enquadramento perfeito.

    Tentou sorrir, mas os lábios tremeram. Porque sabia, no fundo, que era uma grande covarde. Bateu levemente nas próprias bochechas, afastando qualquer lágrima antes que ousasse cair.

    Então, virou-se de costas para a paisagem. E foi buscar seus pincéis.

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    Foi nessa época que os prédios à sua volta começaram a mudar.

    Cada muro, superfícies antes monótonas, se transformaram em telas para sua mente inquieta. Murais que gritavam a liberdade reprimida pelos seus medos.

    Pintava paisagens de lugares que nunca viu.

    Montanhas distantes, cachoeiras escondidas, cidades de ruas estreitas e vielas convidativas. Lugares que sempre quis conhecer.

    O que via ao escalar também virava tinta — fins de tarde queimando em tons de laranja e dourado, manhãs envoltas na névoa fria.

    Por fim, pintava seus medos.

    Figuras sombrias se dissolvendo em espirais abstratas. Olhos sem rosto a observando das esquinas. Pernas enraizadas no concreto, incapazes de seguir adiante.

    Seus humores coloriam a cidade. Sua essência ficava gravada nos muros.

    Cada pincelada era uma confissão. Cada cor, um fragmento daquilo que ela nunca dizia em voz alta.

    Foi durante um desses dias comuns — se é que comum ainda era um conceito aplicável à sua vida — um ciclo repetitivo, porém quase confortável de estudo, pintura e coleta de suprimentos, que finalmente a viu.

    Estava sentada no chão da cozinha, bem ao lado do Gato, o qual dormia tranquilamente aos pés da mesa. Ana piscou, convencida de que seus olhos estavam pregando peças.

    Mas a figura permaneceu ali.

    O primeiro pensamento foi bela. Mas não um belo humano. Não um belo natural. Um belo que não devia estar ali, que feria as regras da realidade.

    Os cabelos eram loiros, bagunçados de um jeito estranho, como se o vento os tivesse tocado sem permissão e recuado em desconfiança.

    Os olhos… os olhos eram grandes, profundos de um jeito que fazia mal.

    E seu rosto… um paradoxo.

    Tinha a aparência de alguém na casa dos vinte e poucos anos, mas não parecia jovem. No entanto, madura também não era a palavra certa.

    Era como pedra fria, como o silêncio antes da tempestade. Sem idade. Sem tempo. Sem humanidade.

    Vestia roupas brancas de uma pureza intrigante. Lembravam páginas de um caderno antes de serem preenchidas, e isso, de forma estranha, a fez sentir-se menos tensa.

    Haviam também as asas. Enormes e imaculadas.

    Um anjo?

    Ana sentiu a boca secar. Os olhos da aparição estavam cravados nela. 

    Fixos demais. Um olhar que não piscava, não hesitava, que via através dela.

    — É isso.

    Como qualquer pessoa sensata diante da presença de um ser celestial que não deveria estar sentado no meio da sua cozinha, ela chegou a uma conclusão.

    — Finalmente endoidei de vez.

    A frase saiu como um sussurro, mas seu próprio cérebro não a comprou.

    Deu um passo para trás, sentindo o coração martelar dentro do peito. O terror rastejou por sua espinha, apertando sua garganta com dedos invisíveis.

    Instintivamente, puxou Gato com uma vassoura, afastando-o do estranho.

    O felino miou, irritado com a interferência, mas deslizou para um canto mais seguro da cozinha, lançando-lhe um olhar de reprovação.

    Ana não se importou. Permaneceu ali, apenas esperando que ela sumisse, que se dissolvesse como um pesadelo ruim, como um lapso de sanidade, como um delírio passageiro.

    Mas a criatura não se moveu. Apenas a olhava.

    O silêncio cresceu entre elas, se tornando sólido, opressor.

    Ana inspirou fundo. E então… suspirou.

    — Foda-se.

    Se era uma alucinação, que fosse. Se era um sonho, que terminasse logo.

    Não ia fugir disso.

    Caminhou até a fruteira, pegou uma maçã em meio a um pequeno punhado de peras, e se abaixou diante da figura.

    Adorava maçãs, era bom sempre tê-las à mão.

    Ana sentiu o olhar penetrante desviar sutilmente para a fruta, mas logo voltou para seus próprios olhos, queimando sua pele, pressionando seus ossos como um peso invisível.

    Ainda assim, deu uma mordida ruidosa na maçã. O suco escorreu pelo canto da boca, e, com calma, limpou com as costas da mão.

    Franziu a sobrancelha.

    — Você é bizarra pra caralho.

    Nenhuma reação. Nenhum movimento. Só um buraco negro silencioso, sugando toda a lógica da situação. Ana esticou um dedo lentamente, hesitante, levando-o na direção da bochecha do anjo.

    Mas parou no meio do caminho. Sentia que se tocasse aquela pele, algo irreversível aconteceria. 

    Algo que não poderia desfazer.

    A suposta verdade incômoda, sufocante, se instalou em sua mente como um instinto primitivo. Então retraiu a mão, engoliu em seco e forçou um sorriso.

    — Não vou dar moral pra merda de uma alucinação. Humpf.

    Deu outra mordida na maçã, se levantou e saiu da cozinha.

    Sem saber se estava fugindo…

    Ou esperando que o anjo a seguisse.
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