Capítulo 29 - Guildas
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
Terminou a leitura no meio da noite — quarenta e oito horas se passaram, mas o sol havia baixado pela primeira vez —, fechando o livro com um leve estalo que soou quase criminoso no silêncio absoluto. Brayner dormia, encolhido em um canto, o peito subindo e descendo em um ritmo preguiçoso. Ana se levantou na ponta dos pés, movendo-se com o cuidado de alguém que não quer acordar um urso hibernando. Antes de sair, tomou a ousadia de deixar um pequeno bilhete de agradecimento. Talvez ele ficasse irritado — papel parecia um recurso precioso, pela quantidade limitada que possuía — mas ela o pagaria depois.
Afinal, já tinha um plano.
Estudo, comida, um teto sobre a cabeça. O básico para não morrer em um beco.
Por um instante, considerou a opção mais óbvia: pedir ajuda à mãe. Mas a simples ideia causou um desconforto que se alojou em seu peito como uma pedra incômoda. Não sabia o que esperar ao voltar lá, e sinceramente, não estava com disposição para descobrir agora. Poderia adiar essa reunião por mais um tempo.
Isso significava que precisava de dinheiro.
Ah, o dinheiro. Esse artefato místico que regia o mundo, tão etéreo quanto a mana, mas infinitamente mais impiedoso. A promessa de riqueza já reescrevera impérios, condenara civilizações inteiras à ruína e fizera gente sensata cometer atos de completa estupidez. A sociedade parecia ter sido construída com um princípio simples: ou você tem dinheiro e pode existir com alguma dignidade, ou não tem e se torna uma nota de rodapé na história de quem tem.
Ana preferia a primeira opção.
O caminho mais eficiente para satisfazer todas as suas necessidades de uma vez só? Tornar-se uma caçadora. Oficialmente, desta vez.
Assim, sem muita cerimônia, caminhou sem rumo pelas ruas da cidade. Se andou dois quilômetros, foi muito, pois rapidamente notou que ali estavam eles.
Os prédios.
Pensou que a biblioteca fosse grande, mas as três torres que se erguiam à sua frente eram outra categoria de grandiosidade. Majestosas, suas fachadas remetiam à era renascentista, como palácios de um tempo que já não existia. A decoração, no entanto, misturava o rústico e o moderno, dando a todo o conjunto um contraste peculiar — um luxo ancestral adornado com funcionalidade brutalista. Parecia estranho, mas funcionava.
Pelo fluxo constante de pessoas passando por ali, as bases pareciam sólidas, mas não gigantescas. Guildas locais, sem dúvida. Mas Ana não estava atrás de prestígio, só precisava de um carimbo imaginário em sua carteira de trabalho fictícia.
Sem a menor ideia do que diferenciava cada uma, fechou os olhos e girou algumas vezes. Se era para se jogar no desconhecido, faria isso com estilo. Seus rodopios atraíram olhares confusos de todos os lados, mas quando abriu os olhos novamente, aceitou seu destino e caminhou em direção ao prédio à sua frente.
O brasão adornando a entrada não era o mesmo que vira com Alex e seus companheiros. Aqui, sobre um fundo azul-claro, um grifo dourado planava, as asas abertas em uma exibição de imponência e as garras estendidas, como se estivesse prestes a dilacerar algo particularmente infeliz. Acima dele, uma coroa de louros reluzia, representando a honra e o respeito que a guilda supostamente carregava. Abaixo, a inscrição formalizava sua escolha:
“GUILDA DOS GRIFOS.”
— Um nome espetacular. — Murmurou para si mesma, rindo ironicamente.
Apesar da obviedade, gostou da simplicidade. Parecia funcional, direto ao ponto.
Respirou fundo e cruzou o limiar, determinada a se inscrever e iniciar sua jornada rumo a… bem, riquezas.
O hall de entrada estava mais calmo do que o lado de fora. Pequenos grupos murmuravam pelos cantos, funcionários esporádicos caminhavam apressados pelos corredores, e caçadores solitários descansavam encostados nas paredes, cada um parecendo carregar o peso de um século nas costas.
No centro do salão, um balcão sem graça era ocupado por um recepcionista ainda menos interessante. Um homem alto e magro, com olheiras tão profundas que pareciam ter sido esculpidas pela própria deusa do cansaço. Estava inclinado sobre os braços cruzados no balcão, claramente em um estágio avançado de hibernação.
— Boa tarde!
O atendente ergueu os olhos lentamente, como se o simples ato de existir já fosse um fardo grande o suficiente sem que precisasse lidar com clientes.
— O que você quer?
As palavras escorreram de sua boca com a mesma energia de um funcionário de repartição pública na sexta-feira à tarde. Ana notou de relance um crachá pregado de maneira torta em seu peito. O texto, em um tom animado que parecia um insulto pessoal, dizia:
“Bem-vindo, aventureiro! Pode me chamar de Jorge!”
— Quero me tornar uma caçadora.
Jorge não demonstrou a menor reação. Sem mudar a expressão, esticou o braço para baixo do balcão e puxou um maço de papéis. Seu olhar viu as roupas esfarrapadas de Ana, o saco estranho e bem amarrado que carregava e a armadura destroçada, e sem qualquer cuidado, entregou os formulários à Ana como quem dá ração para um cachorro de rua.
— Preencha e espere na fila.
O espírito de Ana afundou um pouco.
“Onde está a magia? A emoção? Isso deveria ser uma guilda de fantasia, não o Detran!“
Ainda assim, aceitou os papéis e começou a lê-los. O que encontrou foi um festival de cláusulas genéricas, textos redundantes e promessas vagas que pareciam ter sido redigidas por um advogado sem imaginação. Algumas eram simplesmente absurdas.
“O candidato compreende que a Guilda dos Grifos não se responsabiliza por mutilações, perdas de membros ou transformação irreversível em qualquer espécie de criatura.”
“Ao assinar este contrato, o caçador reconhece que receberá pagamentos baseados em desempenho e que atrasos, omissões ou falhas catastróficas no sistema contábil não configuram falta da guilda.”
“A assinatura deste documento implica na compreensão de que há criaturas hostis no mundo e que, acredite ou não, elas podem matar você.”
Ana arqueou uma sobrancelha. Bem, ao menos eram honestos.
Depois de alguns minutos preenchendo cada linha com sua melhor caligrafia entediada, entregou os papéis e seguiu para onde deveria ir.
— Ótimo — disse Jorge, pegando os documentos sem nem olhar para eles. — O processo é simples. A gente vê os dados depois, não somos muito exigentes. Agora, coloque suas mãos sobre a esfera.
Ele apontou para um pequeno dispositivo branco conectado a um computador por meio de fios que pareciam ter sido trançados por um goblin míope.
— O que ele faz?
— Mede sua mana. Mas relaxa, só um detector básico.
Ana hesitou por um instante antes de estender as mãos e pousá-las sobre a esfera. Lisa e fria ao toque, a superfície começou a emitir um brilho suave no instante em que seus dedos tocaram o material.
Seus olhos vagaram até o monitor que Jorge observava. O computador parecia uma relíquia de um passado distante, os fios bagunçados e o isolamento rachado em alguns pontos.
Esperou um momento. Depois outro.
Nada.
Jorge franziu a testa.
— Peraí um minuto.
Sem cerimônia, ele puxou os cabos, assoprou as conexões como se fosse um cartucho de videogame velho e os reconectou. Encostou a própria mão na esfera e, imediatamente, um grande F apareceu na tela. Satisfeito, sorriu.
— Essa porcaria não tá funcionando direito. Pode tentar de novo.
Ana deu de ombros e repetiu o procedimento, pressionando as mãos contra a esfera com um pouco mais de força, como se isso fosse ajudar de alguma forma.
Nada mudou.
Jorge ficou alguns segundos em silêncio antes de pegar o formulário recém-preenchido e, sem o menor traço de emoção, bater um enorme carimbo vermelho sobre o papel.
REPROVADA.
Jogou os papéis de volta para ela e suspirou.
— Bom, parece que você tem menos mana do que um caçador rank F, que é o menor nível detectado pelo dispositivo. O sistema te classificou como um civil sem capacidade.
Ana piscou algumas vezes, processando a informação.
— Você não disse que isso não tava funcionando direito? Não tem outro teste?
O atendente deu de ombros.
— Tamo sem pessoal na área administrativa. Próximo processo só daqui a alguns dias.
Ana gelou.
“Administrativa…?“
A palavra a atingiu como um tiro de aviso, seguida de um arrepio que percorreu sua espinha sem pedir permissão. Suas mãos ficaram frias, seu estômago deu um nó, e sua alma quis bater em retirada.
Ela era uma covarde.
“Não… eu… eu só não posso…“
Ah, pode sim. Só não quer.
“Não. Eu realmente não posso.“
Engraçado. Parece frescura.
Ana mordeu o lábio.
Vê se eu entendi direito. Você enfrentou monstros de uns dois metros com uma faca, mas documentos? Papéis? Formulários? Isso é demais para você?
“É completamente diferente!“
É o quê? Chato demais?
“Isso não é só burocracia! Isso é…”
— Um ciclo!
Seu próprio grito ecoou em sua mente. Seus olhos se arregalaram, suas mãos subiram até as têmporas, apertando com força, como se pudesse esmagar o próprio pensamento para fora de sua cabeça. Ela não ia voltar para o passado.
Não ia de jeito nenhum.
Jorge piscou algumas vezes, sem entender nada do espetáculo acontecendo diante dele.
— Sem gente louca mexendo com os documentos. Dá logo o fora daqui, caralho.
Ana piscou, voltando ao presente.
O atendente já tinha voltado a se recostar no balcão, sem a menor paciência para aprofundar a conversa. Para ele, era apenas mais um dia comum lidando com malucos.
Ana considerou rebater, dizer algo espirituoso, exigir outra chance. Mas tudo o que fez foi soltar uma risada curta e desgastada, o tipo de riso que se tem quando percebe o quão patética a situação realmente é.
Largando o formulário amassado no bolso, saiu sem olhar para trás.
O ar frio a recebeu do lado de fora, um abraço gelado que contrastava com o calor residual da frustração ainda queimando dentro dela. O fluxo interminável de pessoas passava por ela como um rio que ignorava completamente sua existência. Ninguém olhava, ninguém percebia—e ainda assim, tudo aquilo a esmagava.
Foi então que se tocou.
A sociedade estava de volta. O grande mecanismo tinha retornado à sua rotina implacável, funcionando sem esforço, sem parar. Como uma criatura invisível e devoradora de sonhos, girava, girava, girava. E, de alguma forma que não conseguia lembrar bem, esse mesmo mecanismo a tinha prendido antes. Um limbo sem saída, um ciclo que nunca terminava, uma estrada que, não importa o quanto andasse, sempre a levava de volta ao ponto de partida.
A cidade nunca dormia. Mas, naquele momento, sentiu que era a única desperta.
Nem se deu ao trabalho de olhar para as outras duas guildas. Não precisava entrar para saber. Um peso ruim, aquela pressão indistinta na base da nuca, avisava que não valeria a pena. Aprendera há muito tempo que confiar em sua intuição era muito mais seguro do que confiar nas regras que alguém estabeleceu para ela.
Amanhã. Ela resolveria isso amanhã.
Seus dedos tocaram o cabo da faca sem que percebesse. Um reflexo. Uma mania.
Tinha que parar com isso, mãos em armas sempre causam acidentes.
Mas o conforto de algo sólido, de algo real, a ajudava a se manter de pé. Era como um peso que a ancorava ao presente, lembrando-a de que ainda estava ali, de que ainda tinha controle.
— Credo, cê tá parecendo que saiu de um livro de terror! Tá bem, moça? Se for vomitar, pelo amor, sai da frente da minha banca! Vai assustar os fregueses!
A voz cortou seus pensamentos de forma desalinhada e inoportuna. Por instinto, puxou a faca e se virou rápido demais. Não entendia porque as pessoas insistiam em chamá-la do absoluto nada.
Isso também ia acabar causando um acidente.
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REESCRITA – TEMPORARIAMENTE SEM IMAGEM
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